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Filantropia familiar e planejamento patrimonial

Cresce a importância de integrar arquiteturas jurídicas voltadas para a filantropia familiar na assessoria jurídica às famílias.

17/12/2025

As discussões contemporâneas sobre patrimônio e sucessão apontam para uma transformação silenciosa, porém decisiva, na forma como famílias estruturam seu futuro. A organização do legado deixou de se limitar à partilha de bens e passou a envolver a definição de valores, princípios e do papel que a riqueza exercerá na sociedade. Nesse contexto, a filantropia familiar emerge como elemento estruturante do planejamento patrimonial e sucessório, articulando identidade, propósito e responsabilidade.

Em debate recente na AASP1 sobre o tema, destacamos a importância de integrar cada vez mais a assessoria jurídica às famílias com as arquiteturas jurídicas voltadas para a filantropia familiar. Temas como a constituição e apoio a fundos patrimoniais, estruturação de associações e fundações, governança familiar, doações em vida e expressas em testamento, bem como a compreensão dos impactos tributários, em especial os relacionados ao ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, são conhecimentos importantes para atuar com Terceiro Setor e Filantropia.

Aliado a isso, a necessária organização familiar prévia - que contempla também o alinhamento de valores que norteiam os laços que unem os núcleos - é circunstância que merece especial atenção dos atores envolvidos na sistematização dos planejamentos que envolvem afetos, legados e patrimônio.

É fato que todo planejamento sucessório, para se mostrar eficiente, não pode prescindir de prévia análise da realidade familiar na qual a família planejadora está inserida, com substancial exame pormenorizado e amplo da realidade em que se encontra o patrimônio que se pretende planejar a sucessão. Diagnosticar as condições jurídicas que envolvem as pessoas (e famílias) que visam pensar em sua sucessão é a primeira (e mais importante, diga-se) etapa para estruturar um planejamento que atenda às reais necessidades dos planejadores e precisa necessariamente contemplar também a observância de elementos subjetivos ligados aos legados que as famílias pretendem construir socialmente. Somente assim será possível a proposição de instrumentos efetivos para a transmissão segura e eficaz não só do patrimônio, mas também dos valores familiares.

Esses instrumentos, considerados de maneira coordenada, permitem que famílias organizem doações a terceiros, assegurem continuidade institucional dos seus legados e reduzam disputas futuras, ao mesmo tempo em que atribuem direção à sua atuação social e à redução da desigualdade econômica no país. A filantropia familiar, assim compreendida, deixa de ser vista como ação paralela e passa a compor um elemento importante do planejamento intergeracional.

O recém-lançado Censo GIFE 2024–20252 reforça a relevância dessa abordagem ao descrever um ecossistema filantrópico em processo de amadurecimento, marcado por maior profissionalização, diversificação de instrumentos jurídicos e fortalecimento de estruturas formais. O levantamento evidencia que Fundações e Institutos Familiares têm uma média de tempo de 15 anos, menor que outros grupos pesquisados, a despeito de ocuparem posição relevante no investimento social privado brasileiro, o que confirma a importância das famílias na sustentação de iniciativas de longo prazo nos últimos anos.

No que se refere a investimentos alinhados com políticas públicas, o apoio à ações de advocacy, que causam transformações de médio e longo prazo, são mais disseminadas entre o grupo de Fundações e Institutos Familiares (71%), o que reforça a importância da participação das famílias em temas estruturantes, como são as mudanças regulatórias necessárias no país. É um capital que arrisca mais em causas menos apoiadas por empresas.  

O Censo também identifica que governança, continuidade institucional e transição entre gerações figuram entre os principais desafios do setor, temas que dialogam diretamente com questões enfrentadas no planejamento patrimonial e sucessório. A presença crescente de novas gerações remodelando prioridades e práticas, apontada pelo Censo, evidencia ainda mais a necessidade de instrumentos capazes de organizar expectativas e valores distintos dentro de um mesmo núcleo familiar.

A importância dessa integração também é reforçada pelo estudo Filantropia & Family Offices3, recentemente publicado com apoio do Movimento Bem Maior e do Instituto ACP, que traz um retrato abrangente sobre a relação entre famílias de alta renda e sua atuação filantrópica no Brasil. O levantamento revela que a filantropia já entrou no repertório patrimonial, ainda que com maturidades distintas.

Nos Single Family Offices, a pauta aparece com maior institucionalização: 52% tratam o tema de forma estruturada e 93% rastreiam sistematicamente os valores doados, demonstrando alinhamento entre governança, sucessão e impacto social. Nos Multi Family Offices, a filantropia se manifesta de maneira mais reativa, surgindo quando trazida por sucessores ou por mulheres da família, cuja influência crescente redefine prioridades e introduz uma visão de legado mais conectada a propósito.

Outro dado relevante do estudo indica que a principal barreira não é financeira. Para 78% das famílias entrevistadas, o obstáculo reside na falta de preparo técnico e de conexão entre valores e estratégia. Trata-se de um ponto sensível para a advocacia. A ausência de orientação qualificada tende a fragmentar iniciativas e a afastar o tema do centro das decisões patrimoniais. Quando não há linguagem jurídica capaz de transformar intenções em estruturas duradouras, como fundos patrimoniais, associações ou fundações, doações ou disposições testamentárias específicas, com uso planejado do ITCMD, a filantropia permanece episódica e vulnerável a descontinuidades geracionais.

O conflito geracional também pode ser uma questão relevante. A governança familiar tem sido uma resposta para apoiar e organizar os processos decisórios, com conselhos que tenham, inclusive, membros independentes, que ajudam a arejar as reflexões das famílias e trazer bons subsídios. Para esta estruturação e funcionamento, ter uma assessoria jurídica qualificada é fundamental.

A advocacia é uma profissão que tem a confiança como elemento central. Pode oferecer um bom resultado para essa sensibilização das famílias e apoiá-las com caminhos jurídicos concretos. Oferecer formação sobre filantropia para advisors é uma das sugestões da publicação do Instituto de Desenvolvimento do Investimento Social intitulada de Caminhos para a Filantropia Familiar4.

Todos os estudos mencionados mostram que a filantropia pode organizar conversas complexas dentro das famílias. Ao funcionar como espaço de aprendizado intergeracional, aproxima membros que, muitas vezes, têm visões distintas sobre o patrimônio. A sucessão passa, assim, a ser compreendida não apenas como transmissão de bens, mas como transmissão de sentido.

A atuação jurídica, nesse cenário, não se limita ao desenho de estruturas. Ela contribui para reduzir conflitos futuros, alinhar expectativas e fortalecer legados, pontos reconhecidos como essenciais para a perenidade do financiamento de atividades de organizações no Terceiro Setor.

Esse conjunto de evidências reposiciona a responsabilidade da advocacia. A prática jurídica contemporânea deve ser capaz de oferecer às famílias instrumentos que unam segurança e coerência, permitindo que o patrimônio seja administrado com eficiência e, simultaneamente, orientado para finalidades que expressem a trajetória e os valores de quem o constituiu. Ao incorporar a filantropia ao desenho patrimonial e sucessório, cria-se uma base mais estável para a atuação social das futuras gerações.

O campo da filantropia familiar avança rapidamente no Brasil. Sua consolidação depende não apenas do interesse das famílias, mas da capacidade dos profissionais que as assessoram em reconhecer a dimensão estratégica e especializada desse tema.

Integrar filantropia e sucessão é fortalecer a perenidade do patrimônio e ampliar seu impacto. É também reconhecer que legados se constroem tanto por aquilo que se transmite quanto pela forma como se escolhe participar da vida coletiva. As famílias têm, ainda que de maneira incipiente, percebido a importância de pensar socialmente a sua consolidação patrimonial. A advocacia que compreende essa convergência cumpre papel decisivo na formação de estruturas sólidas, consistentes e alinhadas às transformações do nosso tempo.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

Colunistas

Clarissa Höfling é advogada criminalista e sócia fundadora do escritório Höfling Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico GVLaw. Pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela EPD. Cursou, também, Governança Corporativa e Compliance na INSPER e Gestão de Riscos e Compliance na FIA Business Schooll. Atuou como relatora presidente da 4ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP no triênio de 2022 a 2024. Professora de Compliance Criminal no Damásio Educacional.

Claudia Bernasconi é advogada criminalista. Sócia do escritório Joyce Roysen Advogados. Conselheira Estadual da OAB/SP e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP.

Danyelle Galvão é advogada criminalista e sócia fundadora do escritório Galvão & Raca Advogados. Doutora pela USP. Professora.

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