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A (im)possibilidade de reajuste salarial ao servidor público: análise à luz da LC 173/20

A LC 173/20, que dispõe sobre a ajuda financeira da União aos demais entes federativos, impôs algumas proibições aos estados, municípios e ao DF.

18/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Em 2020 o mundo foi acometido por uma pandemia que causou enormes danos à humanidade. Perdemos vidas, empregos, empresas, enfim, uma catástrofe jamais imaginada até pouco tempo e cujos impactos ainda continuam. Para enfrentar tudo isso, governos tiveram que adotar várias medidas. No Brasil, uma delas foi a edição da lei complementar 173/20, que dispôs sobre a ajuda financeira da União aos demais entes federados. Medida para dirimir os danos causados pela queda brusca da arrecadação tributária, fruto das medidas de isolamento social, tão necessárias, frisa-se.

Em troca dessa ajuda, a lei estabeleceu algumas proibições aos estados, municípios e ao DF. Não temos a intenção, nesse artigo, de tratar sobre eventual inconstitucionalidade desses dispositivos, mas sim, dirimir uma dúvida que vem se tornando frequente, sobretudo, entre servidores públicos.

É que uma das vedações que a lei trouxe foi a impossibilidade de “conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública”. Tal disposição está prevista no art. 8º, inciso I, da omplementar 173/20.

A vedação, diga-se de passagem, tem prazo: 31 de dezembro de 2021. Mas a leitura apressada do dispositivo já causa aflição a muitos agentes públicos, para outros, nem tanto.

A princípio, temos que admitir que a redação é redundante, uma vez que reajuste, necessariamente, implica aumento na remuneração. Isso porque o art. 37, inciso XV, da Constituição Federal, proíbe a redução dos subsídios ou vencimentos, assim, não se pode falar em reajuste para menor.

Outro ponto que merece nota é a questão da revisão salarial. Apesar de não constar expressamente no texto, a revisão, que não se confunde com reajuste, também implica aumento de remuneração, ainda que o aumento seja apenas nominal.

Urge destacar que a revisão geral anual é concedida de forma geral e irrestrita a todos os servidores de determinado ente público, mediante lei específica, em mesmo percentual, e sem distinção de cargos ou funções. Trata-se de uma garantia do princípio da isonomia. Desse modo, o mesmo percentual utilizado na revisão salarial de um profissional cujo cargo é de nível superior, também será aplicado para revisão do vencimento de um cargo de nível fundamental, por exemplo.

O reajuste salarial, de outra banda, é específico, e concedido a determinadas categorias em obediência, por exemplo, ao piso salarial nacional, nível de qualificação, dentre outros critérios. Além do reajuste, há, ainda, progressões, promoções, e cumprimento de bonificações em geral.

A concessão de revisão salarial, garantia prevista no art. 37, inciso X, da CF, carece de uma lei específica. É que a norma que estabelece a revisão geral anual é de eficácia limitada. Tais normas são consideradas aquelas que dependem de uma regulamentação futura para que possam produzir todos os efeitos que pretendem. Ou seja, como toda norma constitucional, elas possuem eficácia, mas não aptidão para produção geral de seus efeitos.

Assim, em que pese ser uma garantia constitucional, a concessão da revisão, à luz da LC 173/20, está vedada até 31 de dezembro de 2021, pois, para que surta efeito, necessita de lei específica encaminhada pelo Chefe do Poder Executivo.

A mesma conclusão não se pode ter, por exemplo, sobre reajustes, promoções e progressões. Sendo imprescindível a análise do caso concreto.

Isso se conclui, pois, a concessão de promoções e progressões se dá mediante a existência de um Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos, estabelecido por lei específica. Desse modo, caso a lei tenha sido aprovada e entrado em vigor antes do período de calamidade pública decorrente do novo coronavírus, não há que se falar em vedação legal a concessão desse direito.

Isso porque, a norma do art. 8º, inciso I, do supracitado diploma normativo traz o seguinte: “exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública”. Assim, existindo lei anterior ao estado de calamidade que preceitue sobre concessão de progressões e promoções, não haverá óbice à concessão dessas vantagens.

Porém, se as progressões ou promoções tiverem sido concedidas através de lei aprovada no período de vedação da LC 173/20, ainda que o envio do projeto de lei tenha sido antes do estado de calamidade pública, evidentemente, o aumento da despesa está proibido pela lei complementar.

O mesmo pode ser dito com relação ao reajuste salarial. Se houver previsão em lei anterior, a concessão do reajuste, mesmo antes de 31 de dezembro de 2021 não é defeso. É o caso, por exemplo, dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias, cujo reajuste salarial de 2021 já constava em lei anterior, notadamente, no art. 9º-A, § 1º, da lei 11.350/06, inserido pela lei 13.708/18.

Referido diploma normativo estabelece que, a partir de 1º de janeiro de 2021, o vencimento dessas categorias será de R$ 1.550,00 (mil quinhentos e cinquenta reais), face os R$ 1.400,00 (mil e quatrocentos reais) do ano anterior.

Essa situação difere, por outro lado, do reajuste salarial do piso nacional do magistério. Isso se dá porque o valor do reajuste nacional do vencimento dos professores é feito com base no aumento do valor mínimo anual por aluno. É o que dispõe a lei 11.738/2008 em seu artigo 5º.1

A Portaria Interministerial 4, de 27 de dezembro de 2019, reduziu o valor anual mínimo nacional por aluno de R$ 3.643,16 para R$ 3.349,56. Desse modo, estando o reajuste do piso do magistério vinculado ao valor mínimo anual por aluno, e, considerando que esse valor diminuiu, não há que se falar em reajuste salarial aos professores por enquanto.

Há, ainda, a possibilidade de aumento salarial oriundo de sentença judicial transitada em julgado. Por exemplo, ação de obrigação de fazer consistente na implantação de algum direito já previsto em lei, ou pagamento correto de remuneração, progressões não concedidas no tempo e modo que a lei determina, dentre outras situações.

Assim, havendo sentença condenatória ou homologatória de eventual transação entre as partes nos processos judiciais, não há que se falar em vedação pela LC 173/20. Nesse caso, o eventual aumento se daria por força de decisão judicial transitada em julgado e não por discricionariedade administrativa, consistindo em uma exceção à regra do art. 8º da lei complementar.

Por derradeiro, destaca-se que a concessão de vantagens salariais aos profissionais de saúde e assistência social, desde que relacionadas às medidas de combate à calamidade pública e desde que não ultrapassem a duração desse estado, poderão ser concedidas, ainda nesse período, e mesmo que causem aumento com despesa de pessoal. Uma vez que, o § 5º do art. 8º da LC 173/20 traz a seguinte exceção: “o disposto no inciso VI do caput deste artigo não se aplica aos profissionais de saúde e de assistência social, desde que relacionado a medidas de combate à calamidade pública referida no caput cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.”

Nesse ponto, deve-se destacar que o estado de calamidade pública já se exauriu, foi decretado somente até o dia 31 de janeiro de 2020. Embora haja discussões sobre a prorrogação do estado, até a presente data, tal medida ainda não se concretizou. Portanto, em tese, a concessão de vantagens salariais aos profissionais de saúde e assistência social nos termos descritos acima já não seria mais possível.

Desse modo, em que pese as vedações trazidas pela lei complementar 173/20, não merece prosperar a tese de que o aumento salarial estaria vedado em absoluto. Há exceções claras à regra que devem ser observadas de modo a garantir o cumprimento dos planos de cargos, carreiras e vencimentos dos servidores públicos.

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1 Art. 5º- O piso salarial profissional nacional do magistério público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês de janeiro, a partir do ano de 2009.

Parágrafo único. A atualização de que trata o caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei nº11.494, de 20 de junho de 2007.

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Antonio Nestor Cunha de Sá
Advogado. Graduado pela Universidade Federal do Piauí-UFPI. Pós-graduando em Licitações e Contratos. Atuação em direito administrativo, sindical, trabalhista e previdenciário.

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