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Propriedade intelectual de software e o dever de mitigação de danos pelos fornecedores: Uma análise à luz da boa-fé objetiva nas relações contratuais

O artigo examina como a proteção dos direitos autorais de software no Brasil deve estar combinada com a boa-fé objetiva, especialmente o dever de mitigação de danos.

18/9/2025

A proteção jurídica dos programas de computador no Brasil é regulamentada pela lei 9.609/1998 (lei do software). O art. 2º da referida lei determina que "o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País", estabelecendo o regime de direitos autorais como fundamento para a tutela da propriedade intelectual de software.

Essa proteção garante ao titular de programa de computador o direito exclusivo de exploração econômica, conforme disposto no art. 281 da lei 9.610/1998 (lei de direitos autorais). A utilização não autorizada de software configura contrafação, nos termos do art. 5º, inciso VII2, da lei de direitos autorais, que define como tal "a reprodução não autorizada". Esta violação gera o dever de indenizar, conforme reconhece reiteradamente a jurisprudência pátria.

Visando desestimular práticas ilegais, o STJ possui julgados3 condenando usuários que utilizaram programas de computador de forma indevida (ou seja, sem a devida remuneração) ao pagamento de indenização equivalente a 10 vezes o valor do licenciamento do software.

Surge, porém, uma questão relevante: essa jurisprudência garante aos fornecedores de software uma proteção absoluta, mesmo em hipóteses de alteração dos termos de uso sem a devida comunicação ao usuário, ou quando há uma demora excessiva na cobrança de valores em tese devidos?

Dessa forma, o presente estudo visa examinar a tensão existente entre a proteção dos direitos autorais sobre software e os deveres de cooperação e mitigação de danos, que decorrem da boa-fé objetiva, aplicados em todas as relações negociais, inclusive aos contratos de licenciamento de software.

O instituto jurídico da mitigação de prejuízos (duty to mitigate the loss), representa uma evolução natural do Direito Contratual contemporâneo, buscando estabelecer padrões de conduta que promovam o equilíbrio e a justiça nas relações obrigacionais. A mitigação de prejuízos consiste na imposição ao credor do encargo4 de adotar medidas razoáveis para evitar ou reduzir os danos decorrentes do inadimplemento contratual. Trata-se de instituto que pretende responder a uma questão aparentemente singela, mas de grande complexidade prática: deve o credor ser responsabilizado quando, diante do inadimplemento alheio, permanece inerte e permite o agravamento de seus próprios prejuízos?5

O viés econômico é evidente, pois busca-se evitar os desperdícios, impedindo que a parte inadimplente seja penalizada com a obrigação de indenizar prejuízos que, embora derivem de seu inadimplemento, resultaram da negligência do credor em proteger seu próprio patrimônio. No Direito brasileiro, a mitigação encontra fundamento jurídico no princípio da boa-fé objetiva6, consagrado no art. 422 do CC/02. O enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal expressamente reconhece que "o princípio da boa-fé deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo". A boa-fé objetiva, em sua função criadora de deveres anexos, estabelece um padrão de conduta baseado na honestidade, probidade e lealdade, impondo às partes contratantes um comportamento cooperativo mesmo após o inadimplemento7.

Essa concepção solidarista do contrato afasta a visão tradicional das partes como meros antagonistas, reconhecendo-as como parceiros em um processo dinâmico voltado ao adimplemento da obrigação. Embora tradicionalmente denominado "dever de mitigação", há consenso doutrinário de que não se trata propriamente de um dever jurídico, pois seu descumprimento não gera direito de ressarcimento em favor do devedor. A natureza jurídica mais adequada é a de ônus ou encargo, uma vez que a inércia do credor limita seu próprio direito à indenização pelos danos evitáveis. Como dever anexo decorrente da boa-fé objetiva, a mitigação não se vincula diretamente à prestação principal, mas sim a um interesse de proteção, sendo que seu descumprimento não configura inadimplemento propriamente dito, mas sim limitação do direito indenizatório8.

A doutrina identifica três pressupostos essenciais para a incidência da regra de mitigação: o inadimplemento imputável ao devedor, a existência de prejuízo efetivo decorrente do inadimplemento, e a possibilidade razoável de o credor evitar ou reduzir o prejuízo9

Voltando para os casos de licenciamento de software, como regra, os termos de uso são contratos de adesão unilaterais que definem direitos e obrigações entre provedores e usuários de aplicativos/sites, sem possibilidade de negociação. Usuários frequentemente aceitam esses termos sem leitura adequada, o que pode gerar uso inadequado de softwares e prejudicar direitos autorais dos titulares. Esta negligência na análise contratual é comum tanto entre pessoas físicas quanto empresas10.

Entretanto, não apenas o comportamento do usuário deve ser analisado: também o fornecedor pode contribuir para o agravamento dos danos. Imagine-se o seguinte caso:

A empresa “X” ofereceu gratuitamente, durante anos, um software para análise de dados. Em 2016, alterou seus termos de uso, passando a exigir licença paga para empresas com mais de 300 funcionários. A empresa “Y”, com mais de 5 mil empregados, utilizava o software desde antes da mudança e continuou a usá-lo como freeware. Contudo, apenas em 2024 - oito anos após a alteração - a empresa “X” notificou formalmente a utilização indevida, sem adotar barreiras técnicas ou comunicação proativa nesse período.

Nesse cenário, é legítimo questionar se a conduta do fornecedor contribuiu para o surgimento e o agravamento do prejuízo. A proteção da propriedade intelectual de software no ordenamento brasileiro, embora robusta, não é absoluta. O exercício dos direitos autorais deve observar os princípios da boa-fé objetiva, especialmente o dever de mitigação de danos e a os deveres anexos, como a supressio.

A jurisprudência brasileira, especialmente o STJ, tem reconhecido e aplicado o dever de mitigação de danos, bem como teorias correlatas, como a supressio, em diferentes contextos11. Esses entendimentos destacam que a demora injustificada do titular em exercer seus direitos pode afetar diretamente o montante indenizatório devido ou, em alguns casos, até mesmo inviabilizar cobranças retroativas, especialmente quando configurada a inércia prolongada ou a tolerância tácita do credor12

Exemplo paradigmático é o REsp 1.643.20313, onde a 3ª turma aplicou o instituto da supressio para negar indenização de direitos autorais após mais de 40 anos de utilização da obra sem cobrança. Os ministros negaram o pedido de um compositor para que a Rádio Globo e a Globo Comunicação e Participações fossem condenadas a pagar indenização pelo uso de vinhetas como "Rádio Globooo" e "Fluminenseee", criadas por ele em 1969 e veiculadas permanentemente na programação da emissora desde então.

Para fornecedores, isso significa a necessidade de adotar medidas proativas para proteção de seus direitos, sob pena de verem limitadas suas pretensões reparatórias. Para os usuários, demonstra que a boa-fé objetiva e a ausência de comunicação adequada podem constituir elementos defensivos relevantes.

O equilíbrio entre a proteção dos direitos autorais e os princípios gerais do Direito Contratual representa desafio constante para a jurisprudência, que tem encontrado na boa-fé objetiva um critério para harmonizar interesses aparentemente conflitantes, promovendo segurança jurídica e justiça material nas relações envolvendo propriedade intelectual de software.

________________________

1 Lei 9.610/98. “Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.”

2 Lei 9.610/98. “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: (...) VII - contrafação - a reprodução não autorizada;”

3 Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. AgRg nos EDcl no REsp n. 1.158.622/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe, 22 mar. 2012. e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp n. 1.127.220/SP. Rel. Min. Sidnei Beneti. Julgado em 19 ago. 2010. DJe, 19 out. 2010.

4 Definição encontrada em artigo do autor Daniel Dias. Cf. DIAS, Daniel Pires Novais. O duty to mitigate the loss no Direito Civil brasileiro e o encargo de evitar o próprio dano. Revista de Direito Privado, São Paulo, a. 12. n. 45, p. 89-144, jan./mar. 2011.

5 MARTINS, José Eduardo. A recepção do duty to mitigate the loss no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 41, p. 325-351, dez. 2019. DOI: .

6 Em sentido distinto da maioria da doutrina está o autor Daniel Dias, o qual afirma que o Direito Civil brasileiro já possui um arcabouço de regras que tornaria desnecessária a menção à cláusula geral da boa-fé. Cf. DIAS, Daniel Pires Novais. O duty to mitigate the loss no Direito Civil brasileiro e o encargo de evitar o próprio dano. Revista de Direito Privado, São Paulo, a. 12. n. 45, p. 89-144, jan./mar. 2011.

7 MARTINS, José Eduardo. A recepção do duty to mitigate the loss no direito brasileiro, cit..

8 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de; RUAS, Celiana Diehl. Mitigação de prejuízo no direito brasileiro: entre concretização do princípio da boa–fé e consequência dos pressupostos da responsabilidade contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 117-144. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

9 CHONG, Paulo Araujo. O duty to mitigate the loss no direito brasileiro: é justo o credor ser indenizado por prejuízos que deixou de mitigar?. Cadernos Jurídicos da Faculdade de Direito de Sorocaba, SP |Ano 1| n. 1| p.190-209| 2017. Disponível em: O duty to mitigate the loss no direito brasileiro | Cadernos Jurídicos da Faculdade de Direito de Sorocaba. Último acesso em: 25 ago. 2025.

10 VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. “Os termos de uso: você já leu?”. Migalhas, São Paulo, 14 dez. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/398919/os-termos-de-uso-voce-ja-leu. Último acesso em: 19 ago. 2025.

11 Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 758.518/PR. Relator: Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS). Julgado em 17 jun. 2010. Terceira Turma. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 1 jul. 2010. 

12 SANTOS JÚNIOR, Clodoaldo Moreira dos; COSTA, Tiago Magalhães. “Da teoria do duty to miti-gate e a sua repercussão nos tribunais”. Migalhas, São Paulo, 11 fev. 2022. Disponível em: Da teoria do duty to mitigate e a sua repercussão nos tribunais. Último acesso em: 19 ago. 2025.

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão nº 1.643.203, 17 nov. 2020. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2003555&num_registro=201603265465&data=20201201&formato=PDF. Acesso em: 14 jul. 2025.

Beatriz da Costa Galvao Mascarenhas Gomes
Pós- graduada em Direito Empresarial pelo IBMEC Business School. Advogada Sênior na Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras), com atuação em Direito Digital, Proteção de Dados e Propriedade Intelectual de Software.

Juliana Salim Mello Gallo
Mestranda em Direito Civil Contemporâneo e Prática Jurídica na Pontifica Universidade Católica (PUC-Rio). Especialista em Direito Público pela Faculdade Anhanguera. Especialista em Gestão de Pessoas com Foco em Liderança e Inovação pela Faculdade Getúlio Vargas. Advogada Sênior na Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras), com atuação em Direito Digital, Proteção de Dados e Propriedade Intelectual de Software.

Raphael Lobato Collet Janny Teixeira
Doutorando em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (Uff). Pós-graduado (latu sensu) em propriedade industrial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). MBA em gestão na Fundação Dom Cabral (FDC). Advogado Master da Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras), especializado em Direito Digital, Proteção de Dados e Novas Tecnologias. Coordenador da pós-graduação em Direito Digital da Faculdade Mar Atlântico (FMA). Diretor Executivo de Pesquisa do Centro para Estudos Empírico-Jurídicos (CEEJ).

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