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A importância do Direito Comparado para a arbitragem

terça-feira, 31 de março de 2020

Atualizado às 09:27

A arbitragem no Brasil, apesar de ter sua prática existente há muitos anos, consolidou-se a partir da edição da lei 9.307/1996. O anteprojeto de aludida lei, capitaneado por Carlos Alberto Carmona, Pedro A. Batista Martins e Selma Ferreira Lemes, se baseou em experiências alheias. No caso do Brasil, a base de apoio para a redação do anteprojeto de lei foi a antiga lei espanhola de arbitragem, bem como a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da UNCITRAL de 19851. Tais experiências ditas alheias, praticadas em outros povos do globo podem ser benéficas para o aperfeiçoamento do direito nacional2, como o foi no direito arbitral brasileiro. O que o direito brasileiro fez, foi, na realidade, o uso do direito comparado para aperfeiçoar o seu próprio sistema jurídico. A força e importância do direito comparado conduzem a doutrina a classificá-lo como sendo mais do que um método, mas uma verdadeira disciplina jurídica autônoma3.

Como ponderou Leontin-Jean Constantinesco, "no curso do tempo, os juristas se tornam cada vez mais conscientes do fato de que as experiências dos outros povos constituem uma reserva indispensável para qualquer reforma jurídica válida"4. Essa afirmação se coaduna com as metas do direito comparado e se encaixa perfeitamente no propósito das presentes linhas.

O estudo da arbitragem (sobretudo a internacional) sob a perspectiva do direito comparado é fato relevante nesses dias em que, na ausência de uma regra adequada a ser a aplicada num conflito entre partes de diferentes nacionalidades, envolvendo negócios jurídicos típicos do comércio internacional, buscam os árbitros preencher uma lacuna do direito aplicável por meio de soluções advindas do direito comparado. É o que ensina Bénedicte Fauvarque-Cosson:

"International commercial arbitration has become a particularly important context for the use of comparative law in recent years. A comparative approach not only brings a sense of legitimacy to the process, it is also useful as source of law. Arbitrators often like to refer to a variety of legal sources in order to justify the application of one national rule instead of another, or in order to fill a gap when there is no satisfactory solution in domestic law"5.

Com efeito, por meio do direito comparado, é possível encontrar soluções que possam preencher eventuais lacunas jurídicas existentes em um determinado sistema legal, observando os diferentes sistemas legais, suas convergências e divergências, até que se chegue a um denominador comum. Foi num exercício de puro direito comparado, por exemplo, que a nova lei espanhola de arbitragem consolidou num único artigo de seu corpo legal, todas as possibilidades de caracterização da internacionalidade da arbitragem6.

Da mesma forma, aplaude-se o legislador brasileiro, que, também num exercício de direito comparado, tomou por "empréstimo"7 o clássico conceito de "contrato internacional"8 de Henri Battiffol9, na redação da nova lei de franquias de 27 de dezembro de 2019 (lei 13.966/2019)10. Fez-se aqui o que alude Jan Smits, que o direito comparado preenche uma importante função no direito interno pois, influencia na eventual reforma de um direito nacional11, ou, como disse Edward Wise, possibilita e promove o "transplante" de regras dos diversos modelos estrangeiros para o direito nacional12.

Pensa-se que o direito comparado sirva como verdadeira disciplina autônoma do direito, capaz de influenciar legislações e julgados em redor do mundo, aperfeiçoando tais legislações e julgados13.

Um ponto que mereceria particular atenção de nosso legislador, diz respeito às regras sobre prescrição existentes no direito brasileiro e sua compatibilidade com a arbitragem14. Alguns pontos ainda restam obscuros e incompletos no direito brasileiro, merecendo destaque a comparação com diplomas como a Convenção de Nova York de 197415, bem como os Princípios Unidroit 201616 (em especial o capitulo 10 dos referidos princípios) assim como diversas legislações estrangeiras, que trazem um corpo de regras completas e específicas acerca das implicações do instituto da prescrição no âmbito da arbitragem17.

É partir desse ponto que o direito comparado pode oferecer uma relevante contribuição ao direito interno brasileiro, pois, como assevera Marc Ancel, isso permitirá ao jurista uma melhor compreensão do direito nacional, cujas características particulares se evidenciam, muito mais, mediante uma comparação com o direito estrangeiro18.

Mas como, tudo na vida, a cautela deve existir. A utilização do direito comparado dever ser cuidadosa, verificando-se, entre os sistemas legais, a existência de pontos comuns, pontos de divergência e pontos de convergência. Como diria Rodolfo Sacco, uma das maiores referências do direito comparado, "o comparatista [...] não pode transferir uma noção de um sistema estranho ao próprio sistema conceitual sem tomar certas precauções. Ele deve, isto sim, buscar nas regras operacionais os denominadores comuns dos diversos sistemas conceituais, para avaliar divergências e concordâncias"19.

Espera-se que essas breves linhas tragam à lume as ideias desenvolvidas em outros povos, seja do ponto jurídico ou mesmo do ponto de vista sócio-político e econômico, de modo que o Brasil possa se aperfeiçoar ainda mais, aprimorando sua legislação, e sua forma de se portar perante o mundo.

__________

1 Ver, nesse sentido, STRAUBE, Frederico José. A Evolução da Arbitragem no Brasil Após a Lei 9.307/96 in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol. 50. São Paulo: RT, (jul-set. 2016), pp. 177-183.

2 Nesse sentido, v. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. No mesmo sentido, v. SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49.

3 Sobre o objetivo do direito comparado, na condição de disciplina autônoma do direito, afirmam Mary Ann Glendon, Michael W. Gordon e Christopher Osakwe: "Comparative law then, as an academic discipline in its own right, is a study of the relationship, above all the historical relationship, between legal systems or between rules of more than one system" (Comparative Legal Traditions. Saint Paul: West Publishing, 1985. p. 7)

4 CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 152

5 FAUVARQUE-COSSON, Bénédicte. Development of Comparative Law in France. In: REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 59-60). De igual forma é o pensamento de Emmanuel Gaillard: "Il n'est pas surprenant que le droit comparé soit, aux cotés de la jurisprudence arbitrale, des conventions internationales, et de tous les autres éléments permettant de montrer l'existence d'une acceptation générale de la règle, la première des sources auxquelles les arbitres ont recours lorsqu'ils souhaitent faire usage de la méthode des règles transnationales [...]" (Aspects philosophiques du droit de l'arbitrage international. Leiden/Boston: Les livres de poche de l'académie de droit international de l'Haye, Martinus Nijhoff Publishers, 2008. p. 84).

6 Nesse sentido, ver Lei 60, de 23.12.2003, revista em 2011. Texto integral em: https://noticias.juridicas.com/base_datos/Anterior/r2-l60-2003.html. Acesso em 30.03.2020. Ver ainda, nosso estudo publicado nesta Coluna no seguinte link: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/303150/arbitragem-domestica-vs--arbitragem-internacional. Acesso em 26/3/2020.

7 Nesse sentido, ao explicar a prática do "empréstimo" de regras jurídicas, em vez de inventar uma regra própria, diz Edward Wise o seguinte: "The history of law is characterized by prodigious amount of borrowing. Lawmakers are apt to use foreign models, with minor modifications, rather than invent entirely new rules". WISE, Edward M. The Transplant of Legal Patterns. The American Journal of Comparative Law, v. 38, p. 5, 1990

8 Nesse sentido, o art. 7º, § 2º da nova lei de franquia: "Para os fins desta Lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico."

9 O texto do parágrafo segundo do art. 7º da nova Lei de franquias adota o exato conceito de contrato internacional estabelecido por Henri Batiffol, que ensina que o contrato é internacional "quando, pelos atos concernentes à sua conclusão ou sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à localização de seu objeto, ele tem liames com mais de um sistema jurídico" (Contrats et conventions. Répertoire Dalloz de droit international privé, n. 9, p. 379, tradução livre).

10 Nesse sentido, vide nosso estudo publicado nesta Coluna no seguinte link: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/319283/a-nova-lei-de-franquia--arbitragem-e-contratos-internacionais. Acesso em 26/3/2020.

11 Nos dizeres originais do referido autor: "It is well known that alongside the scholarly pursuit of knowledge of similarities among and differences between legal systems, comparative law may fulfil a role in national legal practice. The most obvious example of this is the use of comparative law by national legislatures and courts in creating, reforming, and interpreting national law". SMITS, Jan M. Comparative Law and its Influence on National Legal Systems. In: REINMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: University Press, 2008. p. 514

12 Nesse sentido v. WISE, Edward M. The Transplant of Legal Patterns. The American Journal of Comparative Law (AJCL), v. 38, p. 1-22, 1990.

13 Já dizia René David que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4.).

14 O que há, até hoje, é a criticável norma prevista no art. 19, parágrafo 2º da Lei nº 9.307/1996.

15 Convenção sobre Prescrição em Matéria de Venda Internacional de Mercadorias, firmada em Nova York, em 14.06.1974. Íntegra em: https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/limit_conv_e_ebook.pdf. Acesso em 26/3/2020.

16 UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts 2016. Íntegra em: https://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2016/principles2016-e.pdf. Acesso em 26.03.2020.

17 Exemplos disso, são: o Código Civil Italiano, o Código Civil Português assim como o Código de Obrigações da Suíça. A esse respeito, ver NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014.

18 ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado: elementos de introduçao geral ao estudo comparado dos direitos. Tradução de Sérgio José Porto. Porto Alegre: Fabris, 1980. p. 17-18

19 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 67).