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Arbitragem Legal

Aspectos atuais do instituto da arbitragem.

Thiago Marinho Nunes
Um dos temas de grande relevância no direito e de rara discussão na doutrina e na jurisprudência diz respeito aos efeitos da prescrição na arbitragem. Tal raridade pode ser facilmente explicada: prescrição é questão de direito substantivo, e se resolve pela competente lei material, ou seja, o CC. Já a arbitragem, regida pela lei 9.307/96 ("lei de arbitragem"), é processo, ou seja, é meio, não havendo motivos, em princípio, para que os efeitos da prescrição na arbitragem pudessem ser suscitados1. No entanto, com a evolução da prática da arbitragem no Brasil e o desenvolvimento das peculiaridades do processo arbitral, dúvidas surgiram e levaram à diversas opiniões a respeito do tema em foco, em especial, à interrupção da prescrição em sede arbitral, dando ensejo à pacificação da questão pelo STJ. Foi o que ocorreu, em recente julgado do STJ, em sede de recurso especial, assim ementado: "RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. INSTAURAÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. INTERRUPÇÃO. lei 13.129/15. FATOS ANTERIORES. IRRELEVÂNCIA. 1. A controvérsia dos autos resume-se a saber se a anterior instauração de procedimento arbitral constitui causa de interrupção do prazo prescricional, mesmo antes do advento da lei 13.129/15. 2. Nos exatos termos do art. 31 da lei 9.307/96, a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário. A instauração do procedimento arbitral, entre outros efeitos, implica a interrupção do prazo prescricional. 3. A inequívoca iniciativa da parte em buscar a tutela dos seus direitos por um dos meios que lhes são disponibilizados, ainda que sem a intervenção estatal, é suficiente para derruir o estado de inércia sem o qual não é possível falar na perda do direito de ação pelo seu não exercício em prazo razoável. Modificação perpetrada pela lei 13.129/15 que veio somente para consolidar a orientação que já era adotada pela doutrina majoritária. 4. Uma vez interrompido o prazo prescricional pela instituição da arbitragem, volta ele a fluir a partir da data do ato que o interrompeu, ou do último ato do processo para o interromper, nos termos do parágrafo único do art. 202 do CC, inteiramente aplicável à espécie, com as necessárias adaptações. 5. Hipótese em que o prazo prescricional da pretensão de cobrar aluguéis e demais consectários da locação foi interrompido com a instauração da primeira arbitragem, voltando a fluir com o trânsito em julgado de ação declaratória de nulidade da sentença arbitral. 6. Recurso especial não provido"2. O caso que deu origem ao referido acórdão dizia respeito à tentativa de anulação de sentença arbitral, na qual se discutia se anterior instauração de uma arbitragem constituiria causa de interrupção do curso do prazo de prescrição. O Juízo de primeira instância acatou o pedido anulatório, por considerar que, entre o início da contagem do prazo prescricional (2007) e a propositura da segunda demanda arbitral (2012) havia transcorrido prazo superior a três anos, operando-se, pois, a prescrição, nos termos do art. 206, § 3º, I, do CC. Tal decisão foi revertida pelo TJGO, provendo-se o recurso de apelação interposto para: "(...) cassar a sentença singular e, por consequência, afastar a prescrição da pretensão de cobrança de aluguéis, determinando o retorno dos autos ao juízo de origem para análise das demais teses suscitadas pela parte autora/recorrida e dar prosseguimento ao cumprimento de sentença que tramita em apenso (...)"3. Tal decisão restou mantida pelo STJ, conforme a ementa acima transcrita. De fato, tanto o TJGO quanto a Corte Superior adotaram posição acertada: pouco importa o meio que a parte interessada tenha se valido para fazer valer seus direitos creditórios. Conquanto a hipótese relativa à interrupção da prescrição em sede arbitral só tenha sido positivada por meio da lei 13.129/15, que alterou a lei de arbitragem, acrescendo-se o § 2º do art. 19 da lei de arbitragem4, a parte interessada quebrou a inércia no limite temporal correto, interrompendo-se o curso do prazo prescricional. Um primeiro ponto abordado de forma tímida pelo acórdão em questão diz respeito ao meio intentado pela parte no caso, isto é, uma ação anulatória de sentença arbitral discutindo a ocorrência de prescrição. De fato, prescrição constitui questão de direito material e, pertencendo ao mérito da controvérsia, não encontra hipótese de anulabilidade, na forma disposta no art. 32 da lei de arbitragem. O segundo e mais importante ponto do acórdão diz respeito ao entendimento de que, pouco importa os fatos que deram ensejo à causa serem anteriores à vigência da lei 13.129/15, eis que a parte interessada efetivamente praticou ato compatível com o exercício de sua pretensão dentro do limite de tempo estipulado pela lei, ruindo a inércia que poderia gerar ocorrência de prescrição: "De fato, a inequívoca iniciativa da parte em buscar a tutela dos seus direitos por um dos meios que lhes são disponibilizados, ainda que sem a intervenção estatal, é suficiente para derruir o estado de inércia sem o qual não é possível falar na perda do direito de ação pelo seu não exercício em prazo razoável". Tal conclusão se alia ao que clássica e autorizada doutrina civilista já preconizava: a suficiência de ato deliberado de cobrança pela parte interessada interrompe o curso da prescrição. Se, por um lado, a prescrição pressupõe a inatividade do titular de um direito lesado punindo-o em razão do ato negligente de não aduzir sua pretensão no prazo estipulado pela lei, por outro lado há que se considerar que toda manifestação defensiva do direito por aquele titular possui o condão de apagar o prazo que já havia começado a transcorrer. Essa manifestação defensiva gera o que a doutrina chama de "interrupção da prescrição"5. A interrupção da prescrição é conceituada por Câmara Leal como a "cessação de seu curso em andamento, em virtude de alguma das causas a que a lei atribui esse efeito"6. Diferentemente da suspensão da prescrição, em que se aproveita o prazo já iniciado, na interrupção o prazo que se iniciou é destruído e, em consequência, a prescrição iniciada é anulada7. Trata-se de um fato superveniente ao começo do curso do prazo prescricional, que resta rejuvenescido com a concretização do ato interruptivo8. Para Santiago Dantas, qualquer ato deliberado de cobrança, de exercício ou proteção ao direito possui o condão de interromper a prescrição, extinguindo-se o tempo já decorrido9. Exceção a essa atitude se dará tão somente nos casos em que houver um comportamento inequívoco do devedor de reconhecimento da existência do direito, o que dispensaria a necessidade do ato de cobrança para interrupção da prescrição10. Em resumo: a prescrição, é certo, existe e é feita para o único e exclusivo interesse do devedor, mas a interrupção é ato que só interessa ao credor, é ato que depende única e exclusivamente de sua diligência. Foi exatamente seguindo essa "raiz" de linha de entendimento que a Terceira Turma do STJ entendeu que o ato de se instaurar uma arbitragem constitui efetivo ato deliberado de cobrança. O que se pode extrair, em essência, do precedente ora comentado é o encerramento de qualquer discussão que diga respeito ao fato de existir ou não regra específica acerca da interrupção da prescrição na seara arbitral. É certo que a nova regra contida no § 2º do art. 19 da lei de arbitragem trouxe mais segurança ao jurisdicionado11, em razão das peculiaridades do sistema arbitral, mas o que realmente importa é o efetivo exercício da pretensão autoral, consubstanciado por ato deliberado de cobrança, que, no caso em exame, foi o requerimento de instauração da arbitragem pela parte interessada dentro do limite temporal imposto pela lei12. ________ 1 Ver, a esse respeito, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo, Atlas, 2014, p. 3. 2 STJ - Terceira Turma, REsp 1.981.715/GO, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 17.09.2024. 3 TJGO - Apelação Cível 0451903-10.2012.8.09.0051, Rel. Reinaldo Alves Ferreira, Segunda Câmara Cível, j. 12.08.2021. 4 Art. 19, § 2º A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição.  5 Nesse sentido, as palavras de Caio Mário da Silva Pereira: "Como corolário de fundar-se a prescrição na negligência do credor por tempo predeterminado, considera-se toda manifestação dele, defensiva de seu direito, como razão determinante de se inutilizar a prescrição" (Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 1, p. 447. 6 CÂMARA LEAL, Antonio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 186. No mesmo sentido, a lição de Clóvis Beviláqua: "A interrupção diz-se natural ou civil, conforme se exercer por um ato do titular, fazendo, diretamente, cessar o estado de fato, preparatório ou formador da prescrição, ou por uma intervenção da autoridade pública" (Teoria geral do direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo, 1955. p. 279). 7 Segundo Caio Mário da Silva Pereira, "Diz-se então que a prescrição fica interrompida quando ocorre um fato hábil a destruir o efeito do tempo já decorrido, e, em consequência, anular a prescrição já iniciada" (Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 1, p. 447. 8 Nesse sentido, v. lição de Carpenter: "A suspensão faz parar, apenas, o curso da prescrição [...] mas não inutiliza o prazo decorrido antes do acontecimento da suspensão, se é que antes dêsse acontecimento já havia decorrido qualquer fração dêsse prazo de prescrição. Ao passo que a interrupção inutiliza, destrói qualquer prazo decorrido antes dela [...]. A suspensão pode ser um fato preexistente ao início do curso do prazo da prescrição da ação nascida [...] ao passo que a interrupção é sempre um fato superveniente ao início do curso dêsse prazo" (Da prescrição. 3. ed. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1958. p. 358). 9 DANTAS, Santiago. Prescrição e decadência. Programa de direito civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito. (1942-1945). Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 404. 10 Nesse sentido, afirma Silvio Rodrigues: "Os casos de interrupção da prescrição, entretanto, envolvem, em regra, uma atitude deliberada do credor. Esta atitude só é dispensada quando, em virtude de um comportamento inequívoco do devedor, reconhecendo a plenitude do direito daquele, torna-se supérfluo interromper a prescrição" (Direito civil: parte geral. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 334). 11 Segundo Eleonora Coelho e Louise Maia: "A alteração da lei, assim, imprimiu certeza e segurança jurídica à questão, além de proteger o instituto, uma vez que eventuais postergações entre o requerimento e a instituição do procedimento arbitral não impedem a justa interrupção do prazo prescricional quando a parte interessada tiver exercido tempestivamente sua pretensão". (Arbitragem e prescrição in Comitê Brasileiro de Arbitragem e a Arbitragem: obra comemorativa ao 20º aniversário do CBAr (coord. NANNI, Giovanni Ettore, RICCIO, Karina e DINIZ, Lucas de Medeiros). São Paulo: Almedina, 2022, p. 167). 12 Nesse sentido, comentam Lucila de Oliveira Carvalho e Raquel Marangon Duffles Neves: "Diante de tal entendimento, e, com a alteração da lei de Arbitragem em 2015, não resta dúvida de que o caminho para que a parte que pretenda interromper a prescrição não é a de notificar judicialmente a outra parte, mas o de efetivamente requerer a instauração da arbitragem, apresentando formalmente o requerimento de arbitragem institucional ou ad hoc" (lei de Arbitragem Comentada (coord. WEBER, Ana Carolina e LEITE, Fabiana de Cerqueira) lei de Arbitragem Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 228).
A prática da arbitragem no Brasil tem se revelado um sucesso. Sucesso na própria lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") uma das mais modernas e respeitadas no mundo. Sucesso na jurisprudência dos tribunais, maciçamente pró-arbitragem. Sucesso no desenvolvimento de instituições arbitrais, mediante a elaboração de bons regulamentos e adoção de estrutura adequada para a organização de audiências arbitrais. Sucesso no aprimoramento educacional do estudante, seja com a adoção da disciplina obrigatória da arbitragem nos cursos de graduação em Direito e, de forma especializada, em alguns cursos de pós-graduação, seja pelas competições acadêmicas realizadas por diversas instituições a cada ano. Ao fim, sucesso pela existência de um verdadeiro mercado arbitral, no qual players competem e se desenvolvem. E o eixo central desse mercado arbitral é o mercado de árbitros, o maior responsável pela boa maturação do instituto. Portanto, em breves linhas, este texto tem o condão de demonstrar que o crescimento da arbitragem se deve, em muito, ao mercado de árbitros (I), e que as recentes críticas que vem recebendo são, em sua essência, não procedem (II). I. A famosa lição, segundo a qual a arbitragem vale o que vale o árbitro, não representa mero clichê. A arbitragem nasce de uma cláusula (convenção de arbitragem) por meio da qual as partes, de forma consciente, afastam a jurisdição estatal (optam por não serem julgadas pelo Estado - um juiz que não saberão quem é) e escolhem um sistema por meio do qual, elas - as partes - escolherão seus julgadores, isto é, os árbitros. Seja na contratação ex ante em cláusulas compromissórias, seja na contratação ex post em compromissos arbitrais, as partes, no exercício de sua autonomia, escolhem serem julgadas por árbitras e árbitros dentre a oferta disponível no mercado. Se a oferta é pouca e ruim, menor a possibilidade de redução de custos de transação pelas partes e menor será a escolha por arbitragem. Para se entender este mercado, a identificação da oferta e da demanda é essencial.  A demanda. A escolha do árbitro leva em conta uma série de critérios, de natureza jurídica, política e econômica, dentre as quais prevalece a especialidade do julgador e sua neutralidade. São elementos que podem reduzir custos de transação. Tanto o coárbitro, quanto o presidente do tribunal arbitral, são escolhidos exclusivamente pelas partes, que podem, em decorrência da autonomia da vontade, também, delegar a uma autoridade nomeadora1. Se por um lado a oferta permite o aumento da demanda por arbitragem, a demanda - as partes contratantes/litigantes - dita os rumos da oferta, independente da elasticidade deste mercado.  A oferta do mercado de árbitros é composta pelas pessoas que juridicamente podem, mas que sobretudo possuam habilidades que as partes procuram em um árbitro ou uma árbitra. No direito brasileiro, do ponto de vista jurídico, pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes, ostente independência e imparcialidade, e seja competente, diligente e discreta2. Mas não é tudo. O candidato a árbitro necessita, também, ter disponibilidade, ser eficiente, saber trabalhar em harmonia com demais membros do tribunal arbitral, ter coragem para decidir e, acima de tudo, ser ético3. A confiança aqui referida deve ser entendida em seu sentido estrito, isto é, crença na probidade moral, na lealdade e, também, na competência técnica4 do profissional que exerce a função de árbitro. Em outras palavras, não basta ser habilitado pela lei, mas deve ter as habilidades e competências especiais e singulares reunidas em um único profissional. Isso qualifica o mercado de árbitros como um mercado de qualidade. Nessa senda, considerando, que a prática arbitral no Brasil se desenvolve, efetivamente, desde 1996, com a promulgação da lei de arbitragem, considerando o número ainda reduzido de profissionais aptos e com experiência que se qualificam neste mercado de qualidade e, o mais importante, considerando que é direito da parte a indicação do árbitro e, entre elas - partes -, a participação na composição do tribunal arbitral, é natural que exista uma parcela restrita de profissionais a exercer esse mister. O tamanho da real oferta, portanto, decorre justamente da quantidade restrita de profissionais que detém todas as características buscadas pelas partes. É da natureza do mercado de qualidade a tendência à concentração da oferta. A boa notícia é que o mercado de árbitros cresceu na medida em que a prática arbitral crescia no Brasil. Com a inserção de cláusulas compromissórias nos contratos empresariais e desenvolvimento das instituições arbitrais, cresceu sobremaneira a demanda por profissionais qualificados. A resposta do mercado foi muito positiva: houve um recente e expressivo aumento do número de profissionais aptos a atuar como julgadores privados, além de exercer outras funções, como a de pareceristas, advogados, dentre outras. O jurista Carlos Eduardo Stefen Elias, em elogiada tese de doutoramento, explica tal fenômeno: "Não há dúvidas de que a prática da arbitragem ensejou a formação de um conjunto de profissionais especializados nesse método de solução de controvérsias: além do reconhecimento entre seus pares, árbitros, advogados das partes, pareceristas e outros prestadores de serviços jurídicos, estão a atuar em um campo que impõe desafios profissionais, geralmente envolve altas somas de dinheiro e pode proporcionar polpudos honorários. Assim, a procura dos agentes econômicos em situação de conflito pela prestação de serviços jurídicos ligados à arbitragem e a oferta desses mesmos serviços pelos profissionais da área possibilita a constituição de um verdadeiro mercado profissional"5. II. E o mercado de qualidade tem algumas particularidades como o alto custo de entrada: custa caro e toma tempo para que novos profissionais adquiram toda a qualidade buscada pelas partes, o que, se entendido de forma equivocada, pode sugerir uma falsa ideia de oligopólio. É por isso que o aludido "conjunto de profissionais" tem sido objeto de injustas e infundadas críticas, por supostamente haver "barreiras de reputação e precedência, que criam "bolhas" oligopolistas e afastam novos concorrentes".  Não há no Brasil barreira à entrada para profissionais que aspiram a exercer função de árbitro. A ideia é "bolhas oligopolistas" é falsa. O que há é uma dependência da demanda - das próprias partes e não dos candidatos a árbitros - por qualidade e confiança, algo que o novo profissional tarda a conseguir e paga um alto preço. Mas é possível notar verdadeiro incentivo econômico para que novos candidatos se especializem e ganhem confiança das partes - ainda que a um alto custo. Cada vez mais juristas e profissionais reconhecidos em suas disciplinas têm buscado especialização e atuação na função, e galgado posições como competitivos candidatos a árbitro, motivados por importante remuneração6. E o alto custo da barreira de entrada tem ainda o auxílio de outros agentes do mercado da arbitragem, já maduro o suficiente para entender que a maior oferta e concorrência no mercado de árbitros é beneficial ao instituto. As diversas e reputadas instituições arbitrais brasileiras vêm oportunizando a abertura do mercado para profissionais mais jovens, que também vêm buscando o conhecimento, aprimoramento e reputação para exercer a função de árbitro7. Tampouco procede a crítica de que profissionais que exercem a função de árbitro e mesmo as câmaras arbitrais centralizariam as demandas, por especialidade, o que geraria necessidade de reforma e regulação, por duas razões. A primeira, e mais importante, são as partes que nomeiam os árbitros - com liberdade. Se eventualmente a demanda gera concentração de mercado de árbitros, não há, em tese, ineficiência ou necessidade de regulação.  A segunda, eventual ineficiência poderia decorrer de críticas sobre (a) alegadas listas fechadas de candidatos a árbitros que alegadamente poderia restringir a oferta ou (b) decorrentes de conflitos de agência gerado por eventuais escritórios que influenciariam partes em nomeação com tendência à concentração. Mas nenhuma, nem outra hipótese são aceitáveis. Com efeito, as principais câmaras arbitrais brasileiras contêm listas meramente sugestivas (não vinculativas) de profissionais, de toda sorte de especialidade, que podem ser escolhidos pelas partes para atuarem como árbitro. Tais listas surgiram num contexto em que a arbitragem era pouco conhecida no Brasil e à Câmara, como instituição administradora do processo arbitral, cabia prover serviços de excelência às partes (dentro do conceito de mercado de qualidade) em disputa, e, por demanda do empresariado, divulgavam listas com nome de profissionais especialistas8. Mas além de as listas terem multiplicado os nomes disponíveis na maioria das instituições nacionais, não impõe qualquer restrição.  O dito mercado de árbitros (e o seu crescimento no Brasil) representa um fato incontestável e de grande importância no desenvolvimento da arbitragem brasileira e que prescinde de qualquer tipo de regulação. Os árbitros são racionais maximizadores de sua utilidade e inegavelmente o comportamento racional tem impacto positivo na sua atuação, o que, em consequência, pode gerar mais eficiência da função de árbitro e bons incentivos a um bom julgamento.  "Bolhas oligopolistas", repita-se, é uma falsa ideia no mercado de árbitros e não afasta novos concorrentes da arbitragem. O mercado de árbitros e a concorrência em si é ótimo para o desenvolvimento do instituto e aperfeiçoamento do mecanismo alternativo de solução de controvérsias. O que ainda falta (a determinada parcela dos players da arbitragem no Brasil) é a boa compreensão do funcionamento do mercado de árbitros, da sua natureza de mercado de qualidade. Acima de tudo, falta ainda a compreensão da mecânica do processo arbitral, entendida como um processo de início, meio e fim9, e cuja sentença possui efeito imediato e não comporta recurso10, e que, justamente por essas características, se insere no aludido mercado de qualidade e faz sucesso.  Com essa linha de pensamento, e mediante escolha consciente e informada pelo método arbitral, é possível aprender a conviver com o resultado de uma demanda, seja na vitória, seja na derrota, mas certamente resultado de um procedimento eficiente, disponível e acessível graças ao mercado de árbitros. __________ 1 Ver, a esse respeito: Disponível aqui. Acesso em 25 out. 2024. 2 Art. 13, e seus parágrafo da Lei de Arbitragem. 3 Ver, a esse respeito, GREBLER. A Ética dos Árbitros. Revista Brasileira de Arbitragem, (Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB 2013, Volume X Issue 40) p. 72 - 77. 4 Segundo Antônio Lopes de Sá: "O conhecimento, no caso, não é apenas a acumulação de teorias, teoremas e experiências, mas também o domínio pleno sobre tudo o que é abrangido pela tarefa que se encontra sob a responsabilidade direta de um profissional (...). É dever ético-profissional dominar o conhecimento, como condição originária da qualidade ou eficácia da tarefa". (Ética Profissional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 155). 5 ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. Imparcialidade dos Árbitros. Tese de Doutoramento. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, p. 101. 6 Como afirma Bruno Guandalini: "The first step is to accept that arbitrators are rational economic agents. The arbitrator's function is susceptible to market mechanisms, because, even though in its roots the arbitrator's contract is not onerous, it is in practice. As money is the most efficient incentive mechanism, and the function's main objective is to render justice, the market may exert some influence on the function's main goal: rendering justice". (Economic Analysis of the Arbitrator's Function, International Arbitration Law Library, v. 55, Kluwer Law International 2020, p. 5). 7 A esse respeito, citam-se o Comitê de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CJA-CBMA), New Generation do CAM-CCBC, a CAMARB Jovem, a ARBITAC Jovem, entre outros. 8 A esse respeito, ver: NUNES, Thiago Marinho. As Listas Fechadas de Árbitros das Instituições Arbitrais Brasileiras. Arbitragem: Estudos Sobre a Lei nº13.129, de 26.5.2015 (org.: Francisco José Cahali, Thiago Rodovalho e Alexandre Freire). São Paulo: Saraiva, 2016, p. 543-558. 9 Ver, a esse respeito: Disponível aqui. Acesso em 25 out. 2024. 10 Art. 18 da Lei de Arbitragem: O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.
terça-feira, 24 de setembro de 2024

Autonomia procedimental da arbitragem e o CPC

Em 21 de agosto de 2024, foi proferido julgamento do Recurso Especial nº 1.851.324-RS, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, da 3° turma do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), em que se rejeitou decisão que anulava sentença arbitral cuja fundamentação se baseava, dentre outros, em prova objeto de tradução de idioma estrangeiro para o português feito por preposto da parte e não por tradutor qualificado, como auxiliar da justiça processual civil. Transcreve-se abaixo parte da ementa do correspondente acórdão1:  "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO PROCEDIMENTO ARBITRAL, ESPECIFICAMENTE EM SUA FASE INSTRUTÓRIA, EM RAZÃO DA ATUAÇÃO DO PREPOSTO DA PARTE COMO TRADUTOR, POR OCASIÃO DA OITIVA DE TESTEMUNHAS DE NACIONALIDADE CHINESA. CIRCUNSTÂNCIA EXPRESSAMENTE ADMITIDA PELO ÁRBITRO, EM DIÁLOGO PARTICIPATIVO TRAVADO COM AS PARTES, ASSEGURANDO-LHES, AO FINAL, A DISPONIBILIZAÇÃO DA DEGRAVAÇÃO DOS DEPOIMENTOS E DA TRADUÇÃO, E DEIXANDO ASSENTE A POSSIBILIDADE, CASO HOUVESSE ALGUMA INCONGRUÊNCIA DA TRADUÇÃO, DE A QUESTÃO SER LEVADA AO CONHECIMENTO DO TRIBUNAL ARBITRAL, COM FIXAÇÃO DE PRAZO A ESSE PROPÓSITO. CONCORDÂNCIA MANIFESTADA PELAS PARTES. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, À REVELIA DAS NORMAS PROCEDIMENTAIS ELEITAS PELAS PARTES. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO".  No caso em tela, a prova testemunhal colhida por meio de pessoas de nacionalidade chinesa fora objeto de tradução feito por prepostos da própria parte que arrolara as referidas testemunhas, tendo sido a adoção de tal prática acordada entre as partes contendentes no curso do processo arbitral.  Provavelmente irresignada com o resultado da arbitragem, a parte perdedora ajuizou ação de anulação de sentença arbitral perante o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul o qual adotou postura formalista, ao fazer alusão à regra disposta no art. 148 do Código de Processo Civil ("CPC"), isto é, pelo impedimento e suspeição do tradutor utilizado pela parte, que no caso, era preposto da própria parte. Assim, resumidamente, entendeu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ("TJRS"2):  "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. ANULATÓRIA. SENTENÇA ARBITRAL. NULIDADE VERIFICADA. ART 32 DA LEI Nº 9307/96. HIPÓTESES TAXATIVAS. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CPC. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA VAZIA. SUSPEIÇÃO DE TRADUTOR OU INTÉRPRETE. ART. 148 DO CPC. Procedimento arbitral que, embora possua regramento próprio, estabelecido pela lei 9.307/96, sendo lícito às partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios de direito, nos costumes e nas regras internacionais de comércio, nos termos do art. 2°, § 1° da referida lei, não prevê hipóteses de suspeição e de impedimento dos intérpretes e tradutores. Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, ante a eleição, pelas partes, da lei brasileira como norma de regência. Manutenção da sentença que se impõe. Caso concreto em que o preposto do apelante foi nomeado, em audiência no procedimento arbitral, como tradutor/intérprete de uma das testemunhas. Aplicação do art. 148 do CPC Sentença anulatória da audiência e da sentença arbitrai que se impõe. Honorários majorados pela disposição contida no art. 85, § 11, do NCPC. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME".  Tal premissa foi rechaçada pelo STJ no precedente acima, de forma unânime, tendo aquela corte adotado entendimento de vital importância no processo arbitral: são as partes as verdadeiras comandantes da arbitragem, cabendo a elas, por meio de suas convenções estabelecer o regramento a ser seguido no processo pelo tribunal arbitral, dando-se, assim, plena vigência ao disposto no art. 21, caput, da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"): "A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento". A esse respeito, destacam-se as seguintes passagens do acórdão:  "O procedimento arbitral é, pois, regido, nessa ordem, pelas convenções estabelecidas entre as partes litigantes - o que se dá tanto por ocasião do compromisso arbitral ou da assinatura do termo de arbitragem, como no curso do processo arbitral -, pelo regulamento do Tribunal arbitral eleito e pelas determinações exaradas pelo árbitro.  Pode-se antever, assim, que o rito da arbitragem guarda, em si, como característica inerente, a flexibilidade, o que tem o condão, a um só tempo, de adequar o procedimento à causa posta em julgamento, segundo as suas particularidades, bem como às conveniências e às necessidades das partes (inclusive quanto aos custos que estão dispostas a arcar para o deslinde da controvérsia), reduzindo, por consequência, eventuais diferenças de cultura processual própria dos sistemas judiciais adotados em seus países de origem".  Pensa-se que é a partir da valoração dessa dita autonomia procedimental que deve ser lido e interpretado o acórdão de lavra do STJ e não pela pretensa inaplicabilidade do CPC à arbitragem.  Conforme já se tratou em outro estudo3, tratar da aplicação do direito processual no âmbito da arbitragem constitui tema sensível e que deve ser tratado de forma extremamente cautelosa. Isso porque, conforme lecionado por autorizada doutrina. no âmbito interno, por mais que os dispositivos do CPC não sejam aplicados à arbitragem, não há dúvidas de que seus princípios se aplicam4.  Apesar de tal premissa ser correta, ela precisa ser mais bem dosada, uma vez que não apenas os princípios de direito processual-constitucional se aplicam à arbitragem, mas outras regras processuais gerais e de caráter principiológico também se aplicam. Isso vale para o princípio da duração razoável do processo (art. 4º do CPC), para comportamento processual conforme a boa-fé (art. 5º do CPC), para o princípio da cooperação processual (art. 6º do CPC), para a vedação da decisão surpresa (art. 9º do CPC), dentre outros.  E não só as normas de índole principiológica acima citadas se aplicam a qualquer processo arbitral, mas outras, que compõem o escopo do direito processual civil se aplicam a qualquer processo de natureza cível: a regra atinente à distribuição do ônus da prova (art. 373 do CPC), os elementos essenciais da sentença, em especial a sua fundamentação (art. 489 do CPC) o conceito de coisa julgada material (art. 502 do CPC), o conceito de litispendência (art. 337, § 3º do CPC), a aplicação de regras sobre sucumbência (art. 85 e seguintes do CPC), quando esta é autorizada pelas partes, a imposição de astreintes (art. 537 do CPC), quando necessário, dentre outros. Trata-se de regras que se aplicam, por analogia e de forma natural em qualquer processo, inclusive no arbitral, sobretudo em razão da escassez de regras processuais gerais no sistema arbitral5.  No caso ora discutido, o STJ, acertadamente, afastou a aplicação de um dispositivo isolado do CPC, não pela sua inaplicabilidade propriamente dita - trata-se de dispositivo aplicável ao procedimento estatal6 -, mas muito mais no sentido preservar o regramento procedimental acordado entre as partes para a instrução da arbitragem7, combinado com diversas regras processuais (que estão dispostas no CPC, mas não foram mencionadas no julgado), atinentes ao contraditório participativo, à cooperação das partes e a vedação da decisão surpresa8). No caso ora comentado, ambas as partes concordaram que o preposto da parte que arrolara a testemunha serviria de tradutor, dispensando-se qualquer regramento formal a respeito da figura de auxiliar do julgador, na forma do CPC. Trata-se de prática comum no âmbito arbitral, em que a flexibilidade procedimental prevalece sobre a rigidez das regras adotadas nos processos judiciais, devendo eventual regra do CPC se aplicar quando compatível com o sistema arbitral9.  Não se está aqui a falar de aplicabilidade do CPC à arbitragem, mas do próprio direito processual civil à arbitragem. Destarte, não se deve perder de vista o caráter processual da arbitragem, que, como no processo civil, tem como fim o estabelecimento de uma prestação jurisdicional e não podem e não devem ser tratados de forma isolada10. Ambos os sistemas geram efeitos paralelos semelhantes.11 Nesse sentido, cita-se a clássica lição de Francesco Carnelutti: "(...)Todavia, a meu aviso, com a arbitragem já estamos no terreno do processo, onde não creio que - diferentemente da transação e do processo estrangeiro - seja no caso de compreendê-la entre os equivalentes processuais. A razão está em que, à diferença do processo estrangeiro, o processo arbitral é regulado pelo nosso ordenamento jurídico não apenas no sentido de controle dos requisitos da sentença arbitral e dos seus pressupostos, mas também e acima disto, pela ingerência do Estado no desenvolvimento do próprio processo (...)"12. O objetivo dessas linhas é não apenas aplaudir o precedente ora discutido, mas procurar dar um enfoque interpretativo distinto do que tem sido preconizado por renomada doutrina13-14: pensa-se, que não se trata de extirpar a aplicabilidade de eventuais normas do CPC à arbitragem, mas de privilegiar a sua autonomia procedimental e, assim, dar plena vigência ao disposto no art. 21, caput, da Lei de Arbitragem. __________ 1 STJ - Terceira Turma, REsp nº 1.851.324/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 21.08.2024. 2 TJRS - Décima Oitava Câmara Cível, Apelação Cível nº 0241542-14.2017.8.21.7000, Rel. Des. João Moreno Pomar, j. 26.04.2018. 3 Ver, a esse respeito: Disponível aqui.  4 Ver, nesse sentido: CARMONA, Carlos Alberto. O Processo Arbitral. In: Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, V. 1, n. 1, jan-abr, 2004, p. 28. 5 Nesse sentido, ao tratar da insuficiência de regras sobre a prova na Lei de Arbitragem, ensina Cândido Rangel Dinamarco: "Diante da escassez de normas sobre a prova na Lei de Arbitragem e particularmente em seu art. 22, devem ter-se por importadas ao processo arbitral, ainda que cum grano salis, certas disposições, exigências e ressalvas presentes na disciplina probatória do processo civil comum, as quais, como normas gerais de processo, são de aplicação subsidiária ao processo arbitral regido pela lei brasileira. Essa é também uma consequência natural da inserção do microssistema da arbitragem no sistema do processo civil comum (...). (DINAMARCO, Cândido Rangel. O Processo Arbitral. Curitiba, Editora Direito Contemporâneo, 2ª edição, 2022, p. 181). 6 Ver, a esse respeito: APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Normas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 34-35. 7 Segundo o acórdão ora comentado: "Especificamente sobre a prova testemunhal - sem nenhum paralelo com o modo como a prova testemunhal é produzida no processo judicial -, ficou convencionado que as partes deveriam encaminhar, em data especificada pelo árbitro (antes da designada para a audiência), o depoimento por escrito das testemunhas, elaborado pelo próprio depoente, respondendo os questionamentos do patrono da parte que o arrolou, sobre o qual versará a inquirição da outra parte em audiência (que dele terá acesso com antecedência). Também se convencionou que a parte que arrola a testemunha deverá auxiliá-la na elaboração da declaração testemunhal e na preparação de sua inquirição em audiência, sendo, pois, responsável pelas correlatas despesas (...). Registra-se, por oportuno, não ter havido qualquer insurgência, por parte da Usimec, quanto aos depoimentos escritos das testemunhas indicadas pela Citic, acostados aos autos, com as correlatas traduções, realizadas por seu preposto. Tampouco houve irresignação quanto à informação trazida àqueles autos de que a Citic, por ocasião da realização da audiência, disponibilizaria tradutor, que atuaria, portanto, como seu preposto (...)". 8 A esse respeito, alguns trechos do acórdão merecem ser citados: "Veja-se que, na fase instrutória desenvolvida no procedimento arbitral, de toda descolada do formalismo próprio do processo judicial, cabe ao árbitro, exclusivamente, definir - em um contraditório participativo - não apenas a pertinência de determinada prova para o deslinde da controvérsia e o momento em que dará a sua produção, mas, principalmente, o modo como esta será produzida. Por contraditório participativo compreende-se a postura cooperativa das partes com o árbitro e deste com aquelas, de modo que a coordenação dos atos processuais e as decisões, ainda que se refiram a matérias cognoscíveis de ofício, sejam exaradas após a oitiva das partes, garantindo-lhes não apenas a informação/ciência a seu respeito, mas, principalmente, a possibilidade de se manifestar, de agir, bem como de influir no vindouro provimento arbitral Essa salutar e conveniente interação entre as partes e o árbitro impede não apenas a prolação de uma decisão surpresa, mas também obsta, por outro lado, que as partes apresentem comportamento e pretensões incoerentes com a postura efetivamente externada durante todo o diálogo processual travado no procedimento arbitral". 9 A esse respeito, leciona Cândido Dinamarco: "Em resumo, e com outras palavras: a) o Código de Processo Civil só se aplica quando não houver lex specialis contida na Lei de Arbitragem nem a escolha de qualquer outra fonte normativa pelas partes; b) a Lei de Arbitragem sobrepõe-se ao Código de Processo Civil mas só se aplica naquilo que não haja sido disciplinado pelas próprias partes, diretamente ou mediante remissão ao regulamento de alguma instituição arbitral; c) nada dispondo as partes acerca do procedimento, "caberá ao árbitro ou ao tribunal arbitral discipliná-lo"; d) as regras de procedimento traçadas pelas partes ou pelo árbitro sobrepõem-se às contidas no Código de Processo Civil e na própria Lei de Arbitragem sempre que não contrariem a ordem pública e as garantias integrantes da tutela constitucional do processo". (DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p .46-47). 10 A nocividade de tal isolamento é bem detalhada por Ricardo de Carvalho Aprigliano: "É imperioso reconhecer que não pode haver um processo arbitral completo sem o recurso a noções que são externas à Lei de Arbitragem. Como já afirmado, "se houvesse a aplicação da Lei de Arbitragem, sem qualquer recurso a noções, conceitos e institutos que lhes são exteriores, teríamos uma figura sem forma, um processo sem base, um procedimento sem propósito"163. A questão não é tanto a de se discutir a autonomia do processo arbitral, ou aceitar que se trata de método com suas peculiaridades, mas a de, para assegurar essas diferenças, sustentar um isolamento conceitual que, no frigir dos ovos, retira do processo arbitral a sua operabilidade, por lhe retirar a espinha dorsal, os conceitos fundamentais nos quais qualquer manifestação de processo deve se basear". (Normas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 77). 11 O paralelismo dos efeitos das vias judicial e arbitral é assim explicado por Donaldo Armelin: "(...) até porque a via arbitral serve, assim como o processo civil, de veículo legal e constitucional para o acesso à Justiça, observando os mesmos princípios garantidores do devido processo legal guardadas as peculiaridades desses dois institutos" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 79, out.-dez. 2007). 12 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Pádua: Cedam, 1936. v. 1, p. 179 (tradução de Carlos Alberto Carmona em A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 19). 13 Ver, a esse respeito, as notas de José Antonio Fichtner e Rodrigo Salton sobre o caso objeto dessas linhas: Disponível aqui. 14 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: em xeque, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil a procedimentos arbitrais. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 125, 2024. Disponível aqui.
Em 17 de abril de 2024 foi entregue ao Senado Federal o texto final contendo as propostas legislativas visando à atualização da lei 10.406/2002 ("Código Civil" ou "CC").  As presentes linhas não possuem o objetivo de tecer críticas ao texto do aludido anteprojeto, mas tão somente levantar algumas considerações a respeito de tema de direito material crítico e com reflexos no processo arbitral: a interrupção da prescrição.  As relações entre as causas extintivas do direito de ação e a arbitragem comercial não foram objeto de debates antes da vigência da lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"), que instituiu de forma completa o processo arbitral no Brasil. A razão da ausência de qualquer debate a respeito da incidência da prescrição na arbitragem era evidente: por ser a prescrição um instituto de direito material e a Lei de Arbitragem um diploma processual, não haveria motivo para discussão a respeito da prescrição. Tudo se resolveria por meio da lei material.  Com o passar o do tempo e o desenvolvimento crescente da prática arbitral no Brasil, as dúvidas a respeito dos efeitos do instituto da prescrição extintiva foram surgindo entre os operadores do direito. Considerando-se especialmente as peculiaridades das regras do processo arbitral, algumas proposições foram feitas (por esse autor, inclusive1), com apoio no direito comparado, de modo a garantir segurança jurídica a respeito da certeza do ato interruptivo da prescrição no âmbito da arbitragem.  Diante da peculiaridade e importância da matéria, sobreveio a lei 13.129/2015 que, entre outras importantes disposições, criou o § 2º ao art. 19 da Lei de Arbitragem, estabelecendo regra acerca do momento da interrupção do prazo de prescrição no âmbito de uma arbitragem: "§ 2o A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição".  Ainda que louvável a iniciativa do legislador, tal regra não encontra uma correspondente direta nas hipóteses de interrupção da prescrição ditadas pelo art. 202 do CC, considerando-se insuficiente e insegura2 para resolver o problema da interrupção da prescrição na arbitragem.  Muito provavelmente em razão disso, tal matéria não passou despercebida pela diligente comissão que elaborou o anteprojeto visando mudanças no CC, tendo proposto o seguinte regramento em relação às hipóteses de interrupção da prescrição:  "Art. 202. A interrupção da prescrição dar-se-á: I - pelo despacho que ordenar a citação, retroagindo seus efeitos para a data da propositura da ação, mesmo que incompetente o juiz ou o árbitro para o exame do mérito, e desde que o autor a promova no prazo e na forma da lei processual; II - por qualquer outra forma de interpelação judicial ou extrajudicial, como a notificação do devedor ou o protesto de documentos que contenham obrigação exigível III - pela apresentação do título da dívida em juízo de inventário, em procedimento de concurso de credores, em procedimentos de arrecadação de bens ou em protesto no rosto dos autos de processo judicial ou arbitral IV - por qualquer ato judicial ou extrajudicial que constitua em mora o devedor V - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor, inclusive pela propositura de ação revisional".  No entanto, por mais que se louve os esforços da comissão, tal proposta de alteração, em princípio, ainda gera dúvidas e não parece ser a ideal, ao menos, no que se relaciona à arbitragem. A proposta do inciso I parece se alinhar ao disposto no art. 19, § 2º da Lei de Arbitragem, mas faz menção ao termo "citação", inexistente no âmbito arbitral3. E, ainda que se faça uma interpretação teleológica da referida disposição4, isto é, de que haveria a retroatividade dos efeitos da interrupção à data da "propositura da ação", remanesceria dúvida quanto a tal ponto no âmbito da arbitragem, que se inicia com um requerimento de instauração de processo arbitral, em que sequer há a obrigatoriedade da formulação de pedidos. Como bem afirma Cândido Rangel Dinamarco, no processo arbitral, a verdadeira demanda arbitral se dá com a apresentação das alegações iniciais pela parte requerente e não no requerimento de instauração da arbitragem5.  A proposta legislativa, tal como se encontra, pode até resolver a dificuldade inerente à interrupção da prescrição no âmbito da arbitragem, não pelos incisos que mencionam o instituto da arbitragem, mas pelo inciso II, segundo o qual a prescrição resta interrompida "por qualquer outra forma de interpelação judicial ou extrajudicial, como a notificação do devedor ou o protesto de documentos que contenham obrigação exigível". Nesse caso, há uma possibilidade mais plausível de se equiparar o requerimento de instauração da arbitragem à dita "notificação do devedor em caráter extrajudicial" e resolve-se, sem preocupações, o problema relativo à interrupção da prescrição. Ou mesmo com o útil instrumento do protesto judicial (também abarcado pelo inciso II), certamente o mais seguro, na atualidade, para a garantia da interrupção da prescrição no âmbito da arbitragem6.  Vale, ao final, lembrar dos benefícios que o direito comparado traz visando à reforma ou a melhor compreensão de nosso direito nacional. O direito italiano, por exemplo, contém regra muito clara acerca da interrupção da prescrição no âmbito de uma arbitragem. Assim dispõe o Código Civil Italiano, em seu art. 2.943: "A prescrição é também interrompida por qualquer outro ato capaz de constituir o devedor em mora ou por uma notificação em que uma parte, na presença de convenção de arbitragem, declara à outra parte a sua intenção de instituir procedimento arbitral, apresentando a sua demanda e indicando o seu árbitro"7.  Por seu turno, o direito suíço, no art. 135 (2) do respectivo Código de Obrigações dispõe: "A prescrição é interrompida [...] 2. Quando o credor faz valer seus direitos por meio de demandas judiciais, por meio de uma ação ou uma exceção perante um tribunal ou árbitros, pela intervenção da falência ou por uma citação ou conciliação"8.  Por fim, conquanto não mencione o termo "arbitragem" o Código Civil Francês simplificou a questão, excluindo o termo "citação" e mencionando tão somente "demanda em justiça"9 para efeitos de interrupção da prescrição, o que certamente se aplica à arbitragem, conforme já demonstrado pela jurisprudência da Corte de Cassação Francesa10.  Os exemplos acima, demonstram a utilidade que o direito comparado pode exercer no aperfeiçoamento do direito nacional11. O Brasil pode, certamente, se socorrer do direito comparado de modo a encontrar a melhor solução para a definição do momento exato da interrupção da prescrição em sede de arbitragem, fixando-se regra direta e clara no CC a respeito de tal tema.  O objetivo essas linhas é demonstrar que o tema relativo à interrupção da prescrição no âmbito da arbitragem é bastante peculiar e difícil de ser resolvido. Muito mais em razão das peculiaridades do processo arbitral, o qual se insere em sistema próprio e dissociado do processo estatal. Espera-se que as novas regras legislativas sobre tal tema possam se alinhar com o que já consta da Lei de Arbitragem, evitando-se confusão aos operadores da arbitragem. __________ 1 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014. 2 Tema tratado em: Arbitragens de construção e interrupção do prazo prescricional - Migalhas. Acesso em, 25 ago. 2024. Em sentido contrário, ver: COELHO, Eleonora e MAIA, Louise. Arbitragem e prescrição in Comitê Brasileiro de Arbitragem e a Arbitragem: obra comemorativa ao 20º aniversário do CBAr (coord. NANNI, Giovanni Ettore, RICCIO, Karina e DINIZ, Lucas de Medeiros). São Paulo: Almedina, 2022, p. 155-181. 3 Ver, a esse respeito, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 214. 4 Ver, nesse sentido: CARVALHO e SILVA, Olympio. A prescrição no direito internacional privado brasileiro. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, 2011. 5 DINAMARCO. Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 140. 6 Ver, a esse respeito: LEE, João Bosco. A internacionalidade da arbitragem - A lei aplicável à prescrição - A interrupção do prazo prescricional em procedimento arbitral (parecer). Estudos de arbitragem. Curitiba: Juruá, 2008. p. 372; PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p. 145-146. 7 Para referência no original. Acesso em 23 ago. 2024. 8 Para referência, no original: RS 220 - Loi fédérale du 30 mars 1911 complétant... | Fedlex (admin.ch). Acesso em 23 ago. 2024. 9 O revogado art. 2.244 do Código Civil Francês era assim redigido: "Une citation en justice, même en référé, un commandement ou une saisie, signifiés à celui qu'on veut empêcher de prescrire, interrompent la prescription ainsi que les délais pour agir." Após o advento da lei 2008-561, as causas de interrupção da prescrição foram simplificadas e a referida disposição deu lugar ao novo art. 2.241 do CC, cuja redação é a seguinte: "La demande en justice, même en référé, interrompt le délai de prescription ainsi que le délai de forclusion. Il en est de même lorsqu'elle est portée devant une juridiction incompétente ou lorsque l'acte de saisine de la juridiction est annulé par l'effet d'un vice de procédure". 10 Decisão proferida pela Corte de Cassação Francesa (2ª Ch. Civ.) em 11.12.1985, Guilbert c/Société de Développement de Transport Artisanal par Eaux (S.D.T.A.E), com nota de Jacques Pellerin, Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité Français de l'Arbitrage, p. 387-390, 1987. 11 Com efeito, entre os objetivos do presente estudo, encontra-se o de utilizar o direito comparado como subsídio para melhorar o direito interno. Já dizia René David que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. No mesmo sentido, v. SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49; e ainda, v. CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 157).
Um dos tópicos mais discutidos na seara arbitral brasileira nos últimos anos diz respeito ao alcance e extensão da norma contida no art. 14, § 1º da lei 9.307/96 ("lei de arbitragem"). Tal regra delimita uma obrigação considerada de meio do profissional que pretende exercer a função de árbitro, o dever de revelar, de modo a gerar total transparência ao processo arbitral. Fato é que, considerado o processo arbitral como tendo início meio e fim1, sendo a sua decisão final irrecorrível, para todos os efeitos, partes não satisfeitas com o resultado da demanda têm-se utilizado de subterfúgios que procuram induzir em erro magistrados no que diz respeito à má aplicação da regra prevista no art. 14, § 1º da lei de arbitragem. Tal indução se traduz pela seguinte tática: Se profissional que exerce a função de árbitro deixou de revelar algum fato, qualquer que seja, e mesmo que irrelevante, tal conduta macularia de vez o processe arbitral. Talvez tenha sido essa, inclusive, a ideia (não levada a cabo) por um projeto de lei que não avançou junto ao Poder Legislativo justamente por sua deficiência técnica. Mas, tal tática, totalmente contrária à boa-fé processual, restou rechaçada em precedente recentíssimo emanado do STJ, o qual já pode ser considerado o mais importante julgado em matéria de dever de revelação daquela corte e que servirá de paradigma para casos que perquiram a mesma estratégia, a qual, no fundo, é desconstituir o julgado arbitral de forma completamente artificial. O caso ora referido é o REsp 2.101.901/SP, julgado no dia 20/6/24 de competência da Terceira Turma do STJ, que precisou responder ao seguinte questionamento: A eventual ausência de revelação de determinado fato no curso de uma arbitragem acarretaria, automaticamente, a anulação da sentença arbitral? A resposta foi negativa. Abaixo, transcreve-se a ementa do correspondente acórdão: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL. DEVER DE REVELAÇÃO. DÚVIDA JUSTIFICADA. CERCEAMENTO DE DEFESA. IMPARCIALIDADE DO ÁRBITRO. ORDEM PÚBLICA. NULIDADE. PRESSUPOSTO DE VALIDADE. COMPETÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. FATO NOVO. ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR. (...) 4. Cabe às partes colaborar com o dever de revelação, solicitando ao árbitro informações precisas sobre fatos que eventualmente possam comprometer sua imparcialidade e independência. 5. A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, ainda que não haja prejuízo de posterior exame do Poder Judiciário competente, nos termos do art. 33 da lei da arbitragem. (...) 9. O fato não revelado apto a anular a sentença arbitral precisa demonstrar extinguir a confiança da parte e abalar a independência e a imparcialidade do julgamento do árbitro. Para tanto, são necessárias provas contundentes, não bastando alegações subjetivas desprovidas de relevância no que tange aos seus impactos."2 Trata-se, na origem, de ação declaratória de nulidade de sentença arbitral, ajuizada em 10/9/21 perante a 2ª Vara Empresarial e Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP, sob a alegação de que, inter alia, teria havido vício na formação do painel arbitral. Nesse sentido, alegou o autor como fatos comprovadores da quebra do dever de revelação do árbitro: (i) indícios de que o árbitro teria faltado com a verdade ao informar que até então não havia atuado como árbitro, e (ii) o árbitro teria omitido que atuava como advogado de uma sociedade que dependeria financeiramente da única sócia da parte vencedora da arbitragem. Após a estabilização da demanda, os autores abordaram fatos novos, cuja obtenção se deu mediante a realização de uma investigação mais apurada. O juízo sentenciante indeferiu a alteração da demanda e julgou a ação improcedente, reafirmando a higidez da sentença arbitral. Contra a sentença foi interposto recurso de apelação, objeto de julgamento pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, sob relatoria do desembargador Jorge Tosta. Em seu voto, o referido magistrado confirmou o entendimento do juízo sentenciante de que os fatos novos aduzidos pelos autores após a estabilização da demanda não deveriam ser considerados no julgamento da causa. Aduziu ainda, que o recurso não comportava provimento, visto que os fatos não revelados seriam incapazes de afetar a imparcialidade do árbitro e, ainda que fosse este o caso, os autores teriam falhado com seus deveres de lealdade, transparência e colaboração, ao deixarem de informar (ou questionar) o árbitro sobre estes fatos, que já eram (ou poderiam ser) de seu conhecimento quando da revelação, deixando para fazê-lo apenas após a prolação de sentença arbitral desfavorável, violando assim os arts. 15 e 20 da lei de arbitragem. Por fim, o relator concluiu não haver a alegada dependência financeira entre as empresas ou relação societária que impusesse ao árbitro o dever de revelar, eis que se tratava de mera relação comercial. O desembargador Ricardo Negrão abriu divergência da maioria, declarando voto dando provimento ao recurso para declarar a nulidade da sentença arbitral, manifestando o entendimento de que a comprovação da falha no dever de revelar é suficiente para anular a sentença arbitral, sendo desnecessário que o autor comprove a parcialidade do árbitro.3 Contra este acórdão foi interposto REsp. As razões recursais indicaram que o árbitro teria deixado de revelar que (i) foi sócio de um dos patronos da parte adversa em 2007, (ii) enquanto sócios, atuaram juntos em diversos processos, (iii) ao se retirarem daquela sociedade e abrirem seus próprios escritórios, teriam dividido endereço profissional e número de telefone por dezesseis meses, (iv) em escritórios distintos, teriam atuado em conjunto em diversos processos. A relatora, ministra Nancy Andrighi, proferiu voto negando provimento ao recurso, o qual sintetizou da seguinte forma: "No presente julgamento, objetiva-se definir se, na ação anulatória de sentença arbitral, cabe ao Poder Judiciário analisar o cumprimento do dever de revelação de forma objetiva, isto é, anular a sentença arbitral se comprovada a violação  ao  dever  de  revelação,  ou  de  maneira  subjetiva,  exercendo  uma verificação casuística sobre o que não foi revelado, a fim de decidir se a omissão feriu a independência e a imparcialidade do árbitro para, somente então, declarar a nulidade da sentença." Demonstrando profundo conhecimento jurídico sobre a matéria sub judice, realizou importante distinção entre dever de revelação e parcialidade do árbitro, sendo o primeiro apenas um dos elementos que auxiliam o magistrado a concluir pela parcialidade, e a última, capaz de anular a sentença arbitral. Com efeito, a relatora conclui que: "não basta que o fato não revelado abale a confiança da parte, é preciso que ele demonstre a quebra de independência e imparcialidade do julgamento feito pelo árbitro. Para tanto, são necessárias provas contundentes, não bastando alegações subjetivas desprovidas de relevância no que tange aos seus impactos." O voto da ministra relatora foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze e do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, vencidos os ministros Humberto Martins e Moura Ribeiro.4 O STJ demonstrou, neste julgamento, acurado conhecimento da matéria, afastando a nefasta possibilidade de anulação de sentença arbitral por mero descumprimento do dever de revelação pelo árbitro. Mais uma vez, comprovando ser o verdadeiro guardião do instituto da arbitragem no país. Muito tem se comentado que referida decisão teria afastado aquilo que se convencionou denominar "nulidade de algibeira"5, visto que tanto a sentença quanto ambos os acórdãos fizeram a regra disposta no art. 20 da lei de arbitragem. No entanto, pensa-se que o ponto central da decisão, é a uniformização do entendimento que a falta de revelação pelo árbitro não resulta, automaticamente, em nulidade da sentença arbitral. Entendimento, de há muito, estudado e ensinado pela melhor doutrina, que sempre distinguiu a quebra do dever de revelação do árbitro de uma atuação parcial: "O dever de revelação não se confunde com a imparcialidade, nem o seu descumprimento leva, ipso facto, à invalidade do processo arbitral."6 "Portanto não é a falta de revelação que justifica a ação de anulação, mas se o fato não revelado é importante, real e capaz de influenciar o julgamento do árbitro."7 "Sem embargo, o descumprimento do dever de revelar não é, per se, hipótese listada no rol de nulidades da sentença arbitral."8 O entendimento exarado pela divergência parte de uma premissa equivocada: não poderia ser árbitro aquele que falha no cumprimento do dever de revelar. Todavia, o comando legal não prevê a quebra do dever de revelar como hipótese de nulidade, mas sim a falta de imparcialidade. Com efeito, afirmar que a falha no dever de revelação é prova de parcialidade, logo, a sentença arbitral é nula, implica estabelecer nexo de causalidade direto e automático, ou imputar má-fé ao árbitro, pois presume-se que a falta de revelação se deu não apenas de forma deliberada, mas com verdadeiro intuito de esconder o fato não revelado. Dessa forma, com as vênias de praxe, o entendimento da divergência se mostra equivocado, tanto do ponto de vista da arbitragem, quanto do ponto de vista legal, vez que no ordenamento jurídico brasileiro a má-fé há de ser comprovada, o que não ocorreu no caso sob análise. O caso objeto dessas linhas representa um verdadeiro marco no rol dos mais importantes julgados em matéria de arbitragem pelo STJ. Essa Egrégia Corte, contribuiu (como vem contribuindo) para, mediante o uso de fundamentos jurídicos adequados, assegurar a viabilidade do instituto da arbitragem no país e garantir segurança jurídica a seus usuários. ___________ 1 Disponível aqui. Acesso em 28 jul. 2024. 2 STJ - Terceira Turma, REsp nº 2.101.901/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.06.2024. 3 Cf. declarado em seu voto: "A violação do dever de revelação é em si mesmo causa de invalidade de todo o processo. Ou há ou não há violação do dever de revelação. O Judiciário não pode perquirir sobre a existência de prova de parcialidade ou de dependência.". (TJSP - Apelação Cível nº 1097621-39.2021.8.26.0100, Rel. Jorge Tosta, j. 22.11.2022) 4 O Ministro Humberto Martins abriu divergência, dando provimento ao recurso, por entender que "não cabe uma avaliação subjetiva a respeito da relevância e do impacto da omissão na imparcialidade do árbitro". Acompanhando a divergência, e votando no mesmo sentido, Ministro Moura Ribeiro. 5 Ver, a esse respeito, artigo assinado por José Rogério Cruz e Tucci. Disponível aqui. Acesso em 27 jul. 2024. 6 ELIAS. Carlos. Imparcialidade dos Árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 219. 7 LEMES. Selma Ferreira. O dever de revelação do árbitro, o conceito de dúvida justificada. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 36, p. 231-251, Jan-Mar, 2013. 8 MARTINS. Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem: comentários à lei 9.307/96. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 205.
Em 04 de junho de 2024 entrou em vigor a lei 14.879/2024, segundo a qual: "Altera a lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício".  Com a promulgação da aludida nova lei, altera-se o parágrafo 1º e inclui-se o parágrafo 5º ao art. 63 do Código de Processo Civil de 2015 ("CPC/2015"). O antigo parágrafo 1º do art. 63 do CPC, ora revogado, era assim redigido: "A eleição de foro só produz efeito quando constar de instrumento escrito e aludir expressamente a negócio jurídico". A partir da nova redação, referido artigo passa a vigorar com a seguinte redação:  "§ 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.  § 5º O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício." (NR).  Não há dúvidas de que reformas legislativas podem ser benéficas a determinado sistema jurídico. Com efeito, o ponto fulcral de uma reforma legislativa, ainda mais de natureza processual, como é o caso ora em discussão, é justamente estabelecer um ponto de equilíbrio para que a celeridade, a coibição de abusos, dentre outros elementos do processo, venham a fortalecer e melhorar a defesa do direito e não a enfraquecer1. De fato, visou o legislador, com o novo regramento acima transcrito, evitar o ajuizamento de demandas em foros "aleatórios", com o intuito de coibir o chamado "fórum shopping", fenômeno muito verificado no âmbito do direito internacional, no qual se pratica o ato de se esquivar da competência normal de um país para tentar obter uma decisão mais favorável em outro2.  No entanto, nem sempre o legislador será bem-sucedido em suas sempre boas intenções. Isso ocorreu, por exemplo, quando da promulgação da lei 11.280/2006 que, ainda sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973 ("CPC/1973"), acresceu-se ao art. 219 daquele código um parágrafo 5º, que dispunha que "juiz pronunciará, de ofício, a prescrição". Apesar desta redação não constar no CPC/2015, tal código mantém a aludida regra nos arts. 332, § 1º e 487, inciso II. Nesse caso, trata-se da quebra de uma "tradição milenar - pois desde Roma a prescrição sempre foi tratada como uma exceção de direito material cuja arguição é da livre disponibilidade do devedor"3. Ainda que tecnicamente equivocada, a comunidade jurídica ainda convive com tal regramento.  No caso ora em discussão, por mais que se compreenda a intenção do legislador (claramente a de desafogar determinado foro e coibir a prática de "fórum shopping"), causa reflexos diretos no sistema arbitral, ainda que a nova regra processual não faça qualquer menção à arbitragem.  Isto porque, na arbitragem, é comum as partes elegerem uma sede, bem como câmara arbitral incumbida de administrar o processo, normalmente localizada no mesmo lugar da sede. O chamado lugar ou sede da arbitragem é aquele em que, normalmente, o processo arbitral se desenvolve, onde as audiências são realizadas e, finalmente, onde a sentença arbitral é proferida, inter alia4. Trata-se de um elemento de operacionalidade da arbitragem, em que a sede se torna de suma importância, sobretudo para os efeitos práticos do processo arbitral5.  Normalmente as cláusulas compromissórias de arbitragem, estipulam uma sede, independentemente do local do domicílio das partes ou do cumprimento das obrigações do contrato. A sede eleita, não só servirá para fixar o local de desenvolvimento do processo, mas, principalmente, para fixar o poder judiciário do respectivo local que trabalhará de forma coordenada com o juízo arbitral6, seja pela apreciação de medidas cautelares pré-arbitrais, cumprimento de cartas arbitrais, cumprimento da sentença arbitral, dentre outros, de natureza coercitiva e/ou executória.  Pela nova regra processual criada, tais medidas que normalmente seriam adotadas junto ao juízo da sede da arbitragem deverão, em tese, ser ajuizadas em locais que guardarem pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação. Tal regra, afastaria, por exemplo, o ajuizamento de determinada medida junto à sede da arbitragem, caso seja escolhida, por exemplo, São Paulo/SP, se tal local não guardar qualquer relação com o domicílio das partes ou com o local de cumprimento da obrigação contratual. Em princípio, pensa-se não ser essa a solução ideal para a arbitragem.  Em São Paulo/SP, cidade em que diversas câmaras arbitrais são sediadas, por exemplo, funcionam as chamadas Varas Empresariais e de Conflitos de Arbitragem. Devido à importância da especialização (sobretudo em arbitragem) o TJ/SP expandiu tais varas especializadas para o interior de São Paulo, com a criação da 1ª e 2ª Varas Regionais Empresariais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem, com competência na 4ª e na 10ª Regiões Administrativas Judiciárias. Tal regra atrai a competência destas varas para todas as questões relacionadas à arbitragem, como as que foram listadas no parágrafo anterior. Com efeito, as varas especializadas, em especial as da comarca de São Paulo/SP, contam com magistrados com profundo conhecimento da matéria arbitral, o que é de suma importância para as atividades coordenadas entre tribunais arbitrais e juízes estatais, garantindo-se efetividade e segurança jurídica ao instituto e seus usuários.  A prevalecer, ipsis literis, nova regra processual do art. 63 do CPC, e, é claro, a depender das disposições de determinado contrato, perder-se-ão todas as vantagens que se teria com a competência originária das varas especializadas, uma vez que, dado que a aludida regra ignora a autonomia da vontade das partes na fixação do foro de eleição no contrato, as partes ficariam reféns, em muitos casos, de tribunais locais para tratar de questões específicas da arbitragem, que demandam certo grau de especialização.  A não ser que a nova regra processual seja interpretada de forma sistemática e coerente com as especificidades do chamado Juízo de Apoio, muito conhecido na doutrina francesa como "juge d'appui"7, isto é, assistência e colaboração com o processo arbitral, primando pela sua efetividade. A nova regra do art. 63 do CPC/2015, com efeito, é a de prevenir ajuizamento de ações em foro aleatório e não impedir que foros específicos analisem questões de arbitragem. Em outras palavras, a nova regra processual precisa ser interpretada em consonância com as especificidades das funções da sede da arbitragem.  Como já frisado alhures8, Poder Judiciário e arbitragem funcionam dentro de um sistema de intercomunicação, em que o primeiro interfere no segundo apenas no sentido da eficácia9. Ou seja, é de suma importância a cuidadosa redação dos contratos empresariais (que normalmente possui clausula de resolução de disputas pela via arbitral) de modo que se deixe clara as funções da sede da arbitragem considerando, ainda, que o Poder Judiciário do respectivo local servirá de Juízo de Apoio para eventuais medidas que escapem à jurisdição ou à atividade cognitiva dos árbitros, como medidas cautelares pré-arbitrais, cumprimento da sentença arbitral, dentre outros.  Como tal regra possui efeito imediato10 e pode causar impacto nos contratos em vigor, recomenda-se aos advogados que atentem para o regramento estabelecido pela lei vis-à-vis a competência do Poder Judiciário do local da arbitragem, fazendo com que haja um alinhamento entre a vontade das partes e a vontade do legislador prevista no novo § 1º do art. 63 do CPC, além de mitigar quaisquer percepções de abusividade, prevista no novo § 5º da referida disposição. __________ 1 Nesse sentido, oportuna e pertinente a lição de José Rogério Cruz e Tucci, que, com apoio nos ensinamentos de Celso Agrícola Barbi, afirma que "as sucessivas reformas processuais têm sempre o objetivo de encontrar o ponto de equilíbrio, em que a celeridade desejável não provoque o enfraquecimento de defesa do direito de cada um" (Tempo e processo. São Paulo: RT, 1997. p. 38-39) 2 Ver, a esse respeito, NUNES. Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 139. 3 Vide, nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição - Liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, nº 40, p. 64-78, jul. 2006; do mesmo autor, A exceção de prescrição no processo civil. Impugnação do devedor e decretação de ofício pelo juiz. In: FABRÍCIO, Adroaldo Furtado; CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro (Coord.). Meios de impugnação ao julgado civil. Estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 303-323. Ver, ainda, APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 124. 4 No direito brasileiro, a escolha da sede da arbitragem configura fator que define a nacionalidade da sentença arbitral, em virtude da redação do parágrafo único do art. 34 da lei 9.307/1996: "Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional". 5 Nesse sentido, explica Adriana Braghetta: "A sede da arbitragem deve ter estrutura logística adequada para que os atos procedimentais, especialmente as audiências, se realizem sem percalços, apesar de não ser imprescindível que os atos procedimentais aconteçam na sede. A estrutura compreende hotéis, locomoção, tradução, possibilidade de obtenção de vistos, serviços de degravação das audiências, etc. No Brasil, por exemplo, ainda não é simples obter serviços de alta qualidade para gravação e degravação de audiências em línguas estrangeiras" (A escolha da sede da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, p. 13, set. 2006). 6 Como bem frisado por Carlos Alberto Carmona, trata-se de uma relação (entre o Poder Judiciário e a arbitragem) vista sob o prisma cooperativo (ou de "coordenação") e jamais de supremacia ou hierarquia (ou "subordinação"). A esse respeito ver CARMONA. Carlos Alberto. Das Boas Relações entre os Juízes e os Árbitros. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, n.º 51, pp. 17-24, out. 1997. 7 Expressão utilizada no direito francês, para caracterizar o papel dos juízes estatais perante a arbitragem ("Juiz de Apoio"). No âmbito do direito francês, Philipe Fouchard discorre como o Presidente do "Tribunal de Grande Instance" coopera com o sistema da arbitragem, como, por exemplo na formação do Tribunal Arbitral. (La coopération du Président du Tribunal de Grande Instance à l'Arbitrage. Philippe Fouchard: Écrits - Droit de l'arbitrage e droit du commerce international. Paris: Comité français de l'arbitrage, 2007. p. 5-33). 8 Ver, a esse respeito: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 18 jun. 2024. 9 PARENTE. Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e Sistema. São Paulo: Atlas, 2012. 10 CPC, "Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada."
Tema que tem sido objeto de recentes debates na comunidade arbitral brasileiro diz respeito ao uso de declarações testemunhais escritas nas arbitragens. Tal prática, classicamente adotada em arbitragens internacionais tem alimentado os debates no Brasil a respeito da eficiência ou não desta técnica. Em particular, o Chartered Institute of Arbitrators, em sua divisão brasileira ("CIArb Brazil") tem procurado elementos para desenvolver diretrizes sobre o uso desta técnica nas arbitragens domésticas.  Os depoimentos testemunhas escritos, em sua essência, nada mais são do que uma técnica criada no mundo da arbitragem internacional de modo a garantir mais eficiência à coleta da prova, em especial a prova oral. Além de facilitar a coleta da prova, o mecanismo também possibilita que as partes adiantem ao tribunal arbitral questões de fato que considerem essenciais para a comprovação do direito alegado. Por sua vez, isso permite que os árbitros adquiram conhecimento de questões que, se o mecanismo não fosse implementado, seriam expostos apenas em futura audiência de instrução do caso.  Segundo Leonardo Ohlrogge e Rodrigo Salton Roturno Saydelles: "Nesse sentido, o witness statement pode ser considerado como o documento formal que contém o relato de uma testemunha sobre fatos pertinentes às questões debatidas no procedimento"1. Já para Maurício Gomm F. dos Santos e Ana Carolina Martins Santoro, "são declarações escritas que as testemunhas, em processo adjudicatório, submetem aos autos em momento anterior à audiência de mérito. Denominam-se Witness Statements as Declarações Escritas feitas pelas testemunhas fáticas enquanto Expert Reports são chamados os trabalhos apresentados por testemunhas técnicas. Independentemente do método de produção da prova testemunhal acordado entre as Partes - se Regras da IBA, Regras de Praga, combinação das duas ou nenhuma - a diferença entre a testemunha fática da técnica pode ser assim resumida: aquela fala do que sabe enquanto esta sabe o que fala. Ambas servem para auxiliar o livre convencimento do árbitro, sempre respeitando-se a igualdade das partes, contraditório e a discricionariedade do árbitro, como destinatário final da prova"2.  Assim, ao invés de a testemunha ser apenas intimada a depor sobre fatos em eventual audiência de instrução, a parte que a arrola apresenta nos autos uma declaração escrita da testemunha. Em respeito ao contraditório e à ampla defesa, a validade de tal testemunho estará condicionada à efetiva oitiva da testemunha em audiência, de modo que a parte contrária possa realizar a chamada contra inquirição ("cross examination"), momento em que procurará identificar as deficiências do depoimento testemunhal.  Tal tema, apesar de muito estudado pela doutrina estrangeira permanece pouco debatido na arbitragem brasileira. Quando muito, discutiu-se sobre o conceito das declarações testemunhais escritas bem como a admissibilidade de seu uso nas arbitragens regidas pelo direito brasileiro3. No entanto, os precitados e recentíssimos estudos procuram demonstrar um maior detalhamento do uso desse mecanismo e suas vantagens na arbitragem.  Contudo, a riqueza de tal tema faz com que diversos pontos relacionados ao uso da declaração testemunhal escrita sejam desenvolvidos. A esse respeito, é digno de citação algum desses pontos, elencados em recente pesquisa realizada pelo departamento de educação do CIArb Brazil4:  Competência para determinar a utilização dos depoimentos escritos; Eventual nulidade da sentença se apenas uma parte utilizar os depoimentos; Momento de juntada dos depoimentos escritos; Emendas aos depoimentos escritos; Efeitos da renúncia ao depoimento escrito; Liberdade das partes com a testemunha e sua preparação; Limitação aos temas dos depoimentos escritos; Inquirição direta e depoimento escrito; Uso do depoimento escrito sem inquirição cruzada; Objeto da prova constante do depoimento escrito; Análise da admissibilidade do depoimento escrito pelas próprias partes Como proceder, em eventual inadmissibilidade dos depoimentos escritos; Opiniões da testemunha de fatos no depoimento escrito.  Nessas breves linhas, objetiva-se discutir sobre o momento da juntada nos autos do processo arbitral das declarações escritas. Dessarte, não se vislumbra qualquer regramento que especifique o momento dessa apresentação. As Regras da IBA sobre Produção de Provas, por exemplo, apenas afirmam em seus arts. 4.4 a 4.8, aspectos relativos à forma de produção e conteúdo das declarações escritas. Mas, indaga-se, qual a razão de se preocupar com o momento da juntada aos autos dessas declarações? A resposta é uma só: higidez da prova produzida e eficiência procedimental.  Quanto a esse tema, Leonardo Ohlrogge e Rodrigo Salton Roturno Saydelles expressam: "Quanto ao momento de produção, percebe-se que, em regra, os depoimentos escritos são apresentados com as petições das partes conforme estabelecido no calendário procedimental. Contudo, há situações nas quais o tribunal arbitral solicita a submissão dos depoimentos escritos em outros momentos, a depender das peculiaridades do caso concreto"5. A primeira parte do quanto exposto pelos referidos autores, se afigura correta. Ainda que não teçam uma opinião sobre o que seria ou não correto, os autores afirmam que, em regra, os depoimentos escritos são apresentados com as petições das partes. Além de ser a hipótese mais comum em arbitragens internacionais6, tal modalidade gera maior eficiência ao processo, permitindo que a contraparte produza suas eventuais declarações testemunhais escritas, garantindo-se a sua ampla defesa. Essa é, por exemplo, a opinião de Dieter Hofmann e Tobias Zuberbuhler:  "33. If the witness statements are submitted together with the briefs, the arbitral tribunal and the opposing party come to know the content of the witnesses' testimony immediately. This can lead to an acceleration of the proceedings, in particular since the opposing party can comment on the content of the witness statements in its next brief and can have its witnesses deal with issues raised in the witness statements of the opposing party. However, the claimant will often deem it as a disadvantage if it must disclose its witness testimony first. In addition, the claimant will usually want to submit supplementary witness statements in response to the respondent's factual allegations and witness statements, because it does not know, at least not definitively, the respondent's assertions of fact at the time when it must submit its own witness statements"7.  Gary Born igualmente parece opinar no mesmo sentido, aduzindo que eventuais declarações testemunhais escritas juntadas a posteriori, poderiam gerar uma espécie de efeito surpresa no processo arbitral:  "In dealing with witness testimony, care must be exercised to avoid "surprise" witnesses or "ambush" testimony. In principle, parties should be required to provide written witness statements or to identify witnesses who will testify and the substance of their testimony. Parties should not be permitted, save in exceptional circumstances, to adduce testimony from a new, previously-unidentified witness, during the evidentiary hearing. Relatedly, significant direct testimony, not mentioned in a witness's written witness statement, should presumptively be viewed with caution. New issues or controversies may develop in the course of the arbitration, explaining the "late" testimony, or a witness may genuinely have failed to recall particular facts, but tribunals are often cautious in crediting such evidence"8.  Apesar de não ser proibida a juntada aos autos de declarações testemunhais escritas após a fase postulatória, tal método não se afiguraria o ideal, uma vez que a prova seria produzida de trás para a frente, com as testemunhas tendo tido prévio acesso às alegações das partes e com o risco de testemunharem além do que tenha sido objeto de debates nos autos. O autor Ragnar Harbst descreve bem essa situação:  "But there are also disadvantages to consider. First, it can be risky to put off the preparation of witness statements until a point in time when the written submissions have been filed. The allegations that are to be proved by way of witness statements have already become part of the written submissions. It may therefore turn out that the witnesses will not be able to confirm the allegations presented in the submissions. In order to prevent such a situation, it is axiomatic to interview the witnesses at an earlier stage even if witness statements will be kept for a separate stage; but if so, it is usually more economic to take the witness' written statement straightaway. There is a further downside of keeping witness statements for a separate phase after the exchange of written submissions: There is an increased risk that new factual statements will appear in the witness statements that were not raised in the written submissions. In most international arbitrations, it is common practice for the parties to present their complete factual allegations already in the submissions; the purpose of offering witnesses, and accordingly, the purpose of witness statements, is to show that the alleged facts are correct"9.  A não ser que o uso posterior à fase postulatória das declarações escritas sirva para tentar reduzir um eventual alto número de testemunhas que tenham sido arroladas, otimizando a prova com a obtenção de declarações de testemunhais que deponham sobre fatos diversos. Mas, ainda assim tal método pode gerar o risco anteriormente exposto, de realizar a prova de trás para a frente e, ainda, de que novos fatos (não discutidos nas alegações) sejam trazidos nos depoimentos.  O objetivo dessas linhas é, portanto, situar os operadores da arbitragem acerca da correta metodologia na produção de provas, quando houver a intenção do uso de declarações testemunhais escritas. É preciso que as partes, verdadeiras comandantes do processo arbitral10, procurem se organizar, de forma conjunta e cooperativa desde cedo, de modo a fazer constar em eventual termo de arbitragem ou uso das declarações testemunhais escritas e sua juntada com as respectivas alegações, preservando-se assim, não só a higidez da prova, mas como a eficiência do procedimento. __________ 1 OHLROGGE, Leonardo e SAYDELLES, Rodrigo Salton Rotunno. Depoimento escrito (witness statement) na arbitragem internacional in Provas e Arbitragem. Teoria, cultura e prática (org. LESSA NETO, João Luiz e GUANDALINI, Bruno). São Paulo: Thomson Reuters-Revista dos Tribunais, 2023, p. 333. 2 SANTOS, Mauricio Gomm F. dos e SANTORO, Ana Carolina Martins. Declaração escrita de testemunha. Quem tem medo de Virginia Woolf? In Práticas de Arbitragem. Técnicas, agentes e mercados (coord. MUNIZ, Joaquim de Paiva e MENDES, Lucas V. R. da Costa). Rio de Janeiro: Curso Prático de Arbitragem, 2ª ed., 2020, p. 168. 3 A esse respeito ver CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à lei 9.307/96. São Paulo: Atlas, 3ª edição, 2009, p. 320-322. 4 Tal pesquisa foi objeto de relatório oficial. Acesso em 25 mai. 2024. 5 OHLROGGE, Leonardo e SAYDELLES, Rodrigo Salton Rotunno. Depoimento escrito (witness statement) na arbitragem internacional in Provas e Arbitragem. Teoria, cultura e prática (org. LESSA NETO, João Luiz e GUANDALINI, Bruno). São Paulo: Thomson Reuters-Revista dos Tribunais, 2023, p.338-339. 6 Dieter Hofmann e Tobias Zuberbuhler: "32. The question at what point in time the witness statements must be submitted is of great practical relevance. There are two main alternatives: (i) submission of the witness statements together with the corresponding brief (simultaneously with the documentary evidence), or (ii) simultaneous submission of all witness statements by both parties after conclusion of the exchange of briefs and before the witness hearing. The first option is much more common in international arbitration". 7 ZUBERBÜHLER, Tobias; HOFMANN, Dieter, et al. IBA Rules of Evidence: Commentary on the IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration. 2nd Ed. Zurich: Schulthess, 2022. 8 BORN, Gary. International Commercial Arbitration. Third Edition. The Hague: Kluwer Law International, 2021, p. 2447-2448. 9 HARBST, Ragnar. A Counsel's Guide to Examining and Preparing Witnesses in International Arbitration. Kluwer Law International; Kluwer Law International, 2015, p. 86. 10 A esse respeito, dispõe o art. 21, caput, da Lei nº 9.307/1996: "A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento".
Tema dos mais comentados ultimamente na jurisprudência brasileira diz respeito à imparcialidade das pessoas que exercem a função de árbitro. Tal tema foi enfrentado em decisões recentes de lavra do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), sendo que, em uma delas, foi feita a menção ao termo "porta giratória" como fundamento para justificar a ausência de imparcialidade do árbitro e, ao fim e ao cabo, suspender o curso da execução da sentença arbitral ou mesmo anulá-la1.  No caso em questão, o TJSP entendeu que o "Judiciário deve ser muito severo quando se depara com demandas fundadas em impedimento ou suspeição de árbitros. É imperioso cuidar dessas situações ao menos com o mesmo rigor dedicado ao impedimento ou à suspeição de juiz. Afinal, os árbitros não têm a mesma independência que as prerrogativas constitucionais da Magistratura procuram assegurar aos juízes; não têm, consequentemente a mesma proteção contra as situações que, no dia a dia dos julgamentos, podem caracterizar situação de constrangimento a livre voto (...)"2.  Ademais, constou da mesma decisão, a seguinte passagem: "O caso em exame remete àquilo que, em doutrina estrangeira, se convencionou depreciativamente denominar revolving door (porta giratória): situação, frequente no mundo da arbitragem, de uma pequena quantidade de pessoas passar a ocupar (como advogados, árbitros, testemunhas técnicas, pareceristas, dirigentes de Câmara Arbitral) todas as cadeiras, a desempenhar todos os papéis. Comprometem-se, com isso, os mencionados princípios fundamentais do sistema arbitral de resolução de disputas, especialmente a neutralidade e a imparcialidade (...)"3.  Apesar de ser compreensível a posição do judiciário a respeito do rigor que dever ser imprimido na aferição de eventual impedimento ou suspeição do árbitro, com a máxima vênia, o voto vencedor declarado incorre em equívoco de fundamentação ao entender que a aludida tese da "porta giratória" comprometeria a neutralidade e imparcialidade dos árbitros.  O estudo a respeito da mencionada porta giratória, citada pelo referido decisum, partiria do pressuposto de que uma pequena quantidade de pessoas passaria a ocupar (como advogados, árbitros, testemunhas técnicas, pareceristas, dirigentes de Câmara Arbitral) todas as cadeiras, a desempenhar todos os papéis, o que poria em xeque a imparcialidade dos árbitros. Ao menos, a parte do estudo mencionado no acórdão em questão leva em conta essa percepção.  No entanto, o estudo a respeito da "porta giratória", desenvolvido por acadêmicos da Universidade de Bergen e Universidade de Oslo, na Noruega4, leva em consideração, essencialmente, as arbitragens de investimento, as quais possuem características bastantes peculiares e diferentes em relação às arbitragens comerciais (que são as que prevalecem no Brasil e na maior parte do mundo).  Arbitragem de investimento se caracteriza como um procedimento para resolver disputas entre investidores estrangeiros e Estados anfitriões e, "desde meados do século XX, um dos principais mecanismos de proteção a investidores estrangeiros em face de condutas estatais lesivas a seus bens e interesses, diante das naturais dificuldades em se buscar a reparação destes danos por meio do Direito interno, seja no país receptor do investimento, seja no país do investidor"5. Diante do caráter internacional das operações de investimentos estrangeiros e a necessidade de um foro neutro para a resolução de eventuais disputas entre o investidor e o Estado receptor, foi assinada em 18 de março de 1965 a Convenção de Washington, por iniciativa do Banco Mundial, com o objetivo de criar um mecanismo de resolução de controvérsias relativos a investimentos entre Estados e nacionais de Outros Estados. Por meio da referida convenção, criou-se o Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos ("ICSID"), instituição que busca facilitar a mediação e a arbitragem de litígios entre Estados signatários e entre investidores estrangeiros e esses mesmos Estados.  Naturalmente, diante do número limitado de players no mercado (o que ocorre com frequência nas arbitragens de investimento e também se revela presente nas arbitragens comerciais) é absolutamente normal e usual que pessoas que atuem como advogados, possam, se o caso, atuarem como árbitros. As especificidades inerentes ao sistema arbitral fazem com que a pessoa que aspire a advogar em processos arbitrais ou tenha a ambição de atuar como árbitro, tenha conhecimento, não só dos aspectos processuais da arbitragem (bastante peculiares em relação ao do processo estatal) mas que igualmente tenha experiência razoável nos aspectos de mérito da demanda (como, por exemplo, aspectos do direito da construção, do direito do agronegócio, do direito da energia elétrica, inter alia). Aliar tais conhecimentos não é tarefa fácil, o que acaba proporcionando um limitado número de players, que ora exercem uma função (advogados) ora outras (exercício da função de árbitro)6. A esse respeito, é digna de nota as conclusões alcançadas por Carlos Eduardo Stefen Elias, em sua elogiada obra intitulada "Imparcialidade dos Árbitros":  "Em qualquer das hipóteses, deve ser notado o critério de: (...) amplitude do mercado de árbitros disponíveis e sua especialidade na matéria objeto de disputa. De fato, quanto menor o número de especialistas disponíveis para funcionar como árbitro em determinado conflito (por envolver conhecimento técnico, jurídico ou não, detido por poucos), menos aparente será a parcialidade do árbitro e mais provável será o seu contato com as partes ou com os demais envolvidos no processo arbitral"7.  Ainda, a célebre tese de doutoramento de Bruno Guandalini, esclarece, com base em minuciosa pesquisa científica, que o mercado de árbitros não é apenas importante do ponto de vista econômico, mas que não contém qualquer resquício de imoralidade ou de ausência de ética. Assim, afirma o referido autor:  "Several factors have turned the arbitrator's function into a real market object. At first glance, the expansion of the arbitration market would be considered the first and main reason. Mr. Mosk and Mr. Ginsburg summarize that the growth of international arbitration has been caused by the increase in international trade, the reduction of political and trade barriers, the growth of international law firms, and the expansion of arbitration itself as an alternative dispute resolution method. But it is also attributed to systemic factors such as the continuous development of a global legislative framework supportive of arbitration, arbitration-friendly reforms at the judicial and legislative level in different jurisdictions, and the recognition of the advantages of arbitration by end users"8.  ***  "Despite such critiques, it was shown that there is no moral or unethical problem if the arbitrator is motivated by remuneration or by market forces as long as she respects formal or procedural justice. It is more important that the arbitrator respects due process, equality, freedom to decide, and efficiency. Inefficient procedure is immoral, and the market for arbitrators could generate the motivation and competition necessary to contribute to better arbitrator's services"9.  O que se pretende demonstrar nessas brevíssimas linhas, e com o objetivo de não destoar a atenção dos operadores da arbitragem, é que a invocação da tese da "porta giratória" não se revela substancialmente concreta a ponto de caracterizar a imparcialidade do árbitro. Tratada de forma genérica e dissociada da realidade brasileira, tal tese constitui muito mais uma conjectura ou uma constatação real do quão restrita e especializada é a prática arbitral. Dedicada à verificação de dados existentes nas arbitragens de investimentos, não pode tal tese ostentar qualquer utilidade para se aferir a imparcialidade da pessoa que exerce a função de árbitro. Como bem afirma Bruno Guandalini, "The moral legitimacy of the arbitrator's function will only be threatened if the arbitrator changes her behavior toward her own interests to the detriment of the parties' best interests (.)"10. A mera tese de suposta existência de uma "porta giratória", não é, com efeito, suficiente para retirar a imparcialidade da pessoa que exerce a função de árbitro.  Por fim, o grande balizador da imparcialidade do árbitro é o cumprimento do dever de revelação, previsto no art. 14, 1º da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem")11. É a partir da revelação, considerando, por óbvio, todas suas nuances e regras delimitadoras do que é ou não é revelável, que se garante a imparcialidade do árbitro e se preserva a higidez do processo arbitral12.  Que tais considerações sejam observadas pelas partes contendentes, advogados e, especialmente pelos magistrados, em ações que tenham por objeto destruir um trabalho realizado com esmero e segurança, pela simples irresignação com o resultado da arbitragem. __________ 1 A esse respeito: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento nº 2166470-26.2019.8.26.0000, rel. Des. Fortes Barbosa, j. 09 de outubro de 2019. 2 Trecho da Declaração de Voto Vencedor, de lavra do Des. Cesar Ciampolini nos autos do Agravo de Instrumento nº 2166470-26.2019.8.26.0000. 3 Trecho da Declaração de Voto Vencedor, de lavra do Des. Cesar Ciampolini nos autos do Agravo de Instrumento nº 2166470-26.2019.8.26.0000. 4 LANGFORD, Malcom, BEHN, Daniel e LIE, Runar Hilleren. The Revolving Door in International Investment Arbitration, in Journal of International Economic Law, Oxford University Press, 2017, p. 301-331. 5 FARIAS, Rodrigo Vieira. Arbitragem de Investimentos: um breve panorama in R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 164-186, Mai.-Ago. 2022. 6 A esse respeito, leciona Carlos Eduardo Stefen Elias, ao explicar sobre a proteção do "mercado simbólico inerente à arbitragem: Dada a amplitude ainda restrita dos participantes do mercado da arbitragem e a proteção do seu capital simbólico, é comum que os coárbitros escolham como presidente do tribunal arbitral o profissional que conhecem e em quem, de certa foram, confiam. Tal confiança pode ser retribuída na escolha da presidência de outro tribunal futuro. Não só. Esses mesmos profissionais frequentemente trocam os papéis não apenas na constituição dos tribunais arbitrais, mas também quando um deles é o advogado de uma das partes e nomeia outro profissional do grupo para a função de coárbitro". 7 ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. Imparcialidade dos Árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 145. 8 GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function. International Arbitration Law Library, Volume 55, Kluwer Law International, 2020, p. 59. 9 GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function. International Arbitration Law Library, Volume 55, Kluwer Law International, 2020, p. 69. 10 GUANDALINI, Bruno. Economic Analysis of the Arbitrator's Function. International Arbitration Law Library, Volume 55, Kluwer Law International, 2020, p. 191. 11 Art. 14, § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. 12 A esse respeito, merece destaque as s Diretrizes do CBAr sobre o dever de revelação do(a) árbitro(a), que podem ser acessadas no seguinte link: diretrizes-do-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa.pdf. Acesso em 28 abr. 2024.
Atualmente, tem-se visto o uso crescente do mecanismo da arbitragem para a resolução de disputas decorrentes de relações agrárias e agroindustriais. Com efeito, o aumento do uso da arbitragem na seara agrícola é uma realidade no Brasil e que merece aplausos, uma vez que comprovada a efetividade desse meio de resolução de conflitos. Os tipos contratuais que normalmente fundamentam o uso e exploração de terras agrícolas são o arrendamento rural e a parceria agrícola. O regramento jurídico de tais tipos constam da lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 ("Estatuto da Terra"), regulamentada pelo decreto 59.566 de 14 de novembro de 1966 ("decreto  59.566/66") No que tange à parceria, o proprietário de determinada terra agrícola (uma fazenda, por exemplo), cede o uso do imóvel a determinado contratante, o qual, por sua vez, promoverá o desenvolvimento econômico de tal terra, mediante plantio de determinada cultura agrícola, para revenda, por exemplo1. Trata-se, com efeito, de um verdadeiro empreendimento rural, com plena simetria de informações entre as partes contratantes, em que ambas estão sujeitas ao risco, seja ele inerente à terra agrícola, à qualidade de seu solo, ao conhecimento técnico das partes que compõem a relação contratual, dentre outros. No bojo de tal relação, de cunho comercial, não é incomum que as Partes estipulem uma cláusula de resolução de disputas por meio de arbitragem, na forma da lei  9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). Ao inserir tal método de disputa, devem as partes estarem cientes das consequências dessa escolha. A consequência direta é o afastamento das jurisdições estatais para apreciação do mérito da demanda, ressalvados os casos em que o Poder Judiciário atua de forma cooperativa com o Juízo Arbitral2, seja por meio da apreciação de medidas de urgência pré-arbitrais, seja pelas medidas constritivas, reservadas ao juízo estatal. Nas presentes linhas, objetiva-se examinar a hipótese de existência de conflito, no bojo de determinado instrumento de parceria agrícola, que contenha cláusula de arbitragem para a resolução de todo e qualquer litígio que decorra da referida avença. Uma hipótese que poderia ocorrer, por exemplo, seria quando o parceiro outorgante se sentisse lesado por algum ato praticado pelo parceiro outorgado e iniciasse uma arbitragem sustentando a ocorrência de uma das hipóteses dispostas no art. 32 do pelo decreto 59.566/66, por exemplo: término do prazo contratual, cessão ou empréstimo do imóvel sem o consentimento do parceiro outorgante, ausência de pagamento do aluguel pelo uso da terra, danos causados à terra, dentre outros. No caso da referida disposição legal, o remédio conferido pelo legislador é o despejo3. A ação de despejo, como se sabe, se processa pelas vias ordinárias. Apesar de sua dúplice natureza (cognitiva e executória). trata-se de ação por meio do qual a parte lesada manifesta o seu interesse pessoal na desconstituição de uma relação jurídica (no caso hipotético objeto dessas linhas, o instrumento de parceria agrícola), para, em seguida, caso procedente a sua demanda, obter a ordem de despejo. O devedor, em sede de contestação, pode até mesmo oferecer depósito a título de caução sobre o valor que entende ser devido e se defender normalmente nos autos4. Outro tipo de ocorrência que pode ser utilizada na defesa da parte requerida em casos de pedido de retomada de terras agrícolas, dá-se na hipótese de que o parceiro-outorgado promove pedido contraposto, alegando a existência de benfeitorias nas terras cuja retomada é requerida. Ou mesmo quando exerce a prática da rotação de culturas5 e logra êxito em comprovar que tal prática foi benéfica ao solo, gerou melhorias ao plantio e, ao fim e ao cabo, gerou ganhos financeiros para as terras agrícolas cuja retomada por meio do despejo é pleiteada. Os pontos acima elencados podem e são recomendáveis que se desenvolvam por meio da arbitragem. A natureza de ação de despejo não confere o direito, supostamente automático, de a parte requerente se dirigir ao Poder Judiciário para o exercício de sua pretensão, sob a alegação de que o despejo teria natureza executória. A natureza de "ação executiva lato sensu"6 de tal demanda, ou seja, que exige prévia atividade cognitiva, de tal demanda gera a inevitável consequência de se exercer a pretensão de retomada da terra e pedido de despejo por meio da arbitragem livremente consensuada entre as partes. No entanto, por meio de recente decisão, o STJ entendeu que "Em razão de sua peculiaridade procedimental e natureza executiva ínsita, com provimento em que se defere a restituição do imóvel, o desalojamento do ocupante e a imissão na posse do locador, não parece adequada a jurisdição arbitral para decidir a ação de despejo"7. Apesar do entendimento isolado do STJ, há uma série de precedentes emanados dos tribunais pátrios que, ainda que considerem a ação de despejo como sendo de natureza executória, determinam que as partes discutam a questão em sede arbitral, quando a sua avença contiver cláusula compromissória. A esse respeito, cita-se julgado emanado do TJ/PR: "Como se vê, antiga lacuna deixada acerca da possibilidade de concessão de tutelas cautelares e de urgência na Lei de Arbitragem foi suprida, mediante previsão de que, antes da instauração do procedimento arbitral - vale dizer, em caráter antecedente - caberá ao Poder Judiciário concedê-la, sendo da alçada dos próprios árbitros, após (ou seja, incidentalmente), dá-las ou nega-las. E, postas assim as coisas, não há motivo para justificar a cisão da competência para a apreciação das pretensões do locador de resolver a locação e obter a condenação do locatário ao pagamento de encargos locatícios, multas e indenizações pela depreciação do imóvel, sendo de todo recomendável que isso fique concentrado na Câmara de Arbitragem, inclusive para evitar a prolação de decisões conflitantes - por exemplo, uma da Justiça Estadual que, sem fazer coisa julgada (CPC, artigo 504), reconheça que o não pagamento de aluguel configurou infração contratual e outra da Justiça Arbitral que reconheça que a ausência de pagamento foi justificada, ante a inexigibilidade da obrigação Note-se que não há incongruência em deixar a cargo da Câmara de Arbitragem decretar o despejo por falta de pagamento - inclusive liminarmente, na forma admitida pelo artigo 59, § 1º, IX da Lei 8.245/1991 - e reservar para o Poder Judiciário apenas a execução da medida; afinal, é assim que se procede também em relação aos provimentos condenatórios por ela editados, não se ignorando a distinção entre as ações condenatórias e as ações executivas lato sensu que deram sustentação ao voto condutor do julgamento do REsp 1.481.644/SP. Resumindo, tanto o pedido de despejo quando o de cobrança devem, em respeito à cláusula compromissória exigido pelo Réu na contestação (mov. 40.1), ser submetidos à Câmara de Arbitragem, devendo ser confirmada, destarte, a sentença que extinguiu o processo, sem resolução do mérito, porquanto inviável, em razão da incompatibilidade dos sistemas e procedimentos dela e da Justiça comum, a mera declinação da competência"8. Com efeito, é preciso de extrema cautela ao se rotular uma ação de despejo como sendo automaticamente de natureza executória como se revelou o entendimento exarado pelo STJ. É preciso que não se confunda o processamento da ação de despejo com a respectiva ordem de concessão do despejo. Ou, como bem afirma Heitor Vítor de Mendonça Sica, é preciso observar e tratar de forma metodologicamente correta o que se chama de "sincretismo processual"9.  Não se trata de processos diferentes, mas de procedimentos diferentes de natureza diversa que ocorrem numa mesma demanda. Nesse sentido é a lição do saudoso Sylvio Capanema de Souza: "No que tange ao pedido de despejo, concorda a doutrina que a ação é executiva lato sensu, já que a executividade do comando que decreta a desocupação do imóvel é fase do procedimento e não um processo subsequente. Daí se conclui que, nas ações de despejo não se verifica a actio judicati, ou seja, um procedimento autônomo para o cumprimento da sentença, que se fará imediatamente, após a intimação de réu para que desocupe o imóvel no prazo concedido"10. No caso de tentativa de retomada de terras agrícolas, caso o instrumento de parceria contenha cláusula compromissória, tal pretensão (retomada-despejo) deverá ser exercida pela via arbitral, por meio pedido de instauração de processo arbitral que vise:   a desconstituição da relação jurídica mantida com o parceiro outorgado, mediante a resolução do instrumento de parceria agrícola e, em ato subsequente;  a decretação da ordem de despejo, de modo que o parceiro outorgante retome as terras agrícolas cedidas. Não havendo um procedimento pré-determinado para o exercício dessa pretensão seja no Estatuto da Terra, seja no âmbito do decreto 59.566/66, pode a parte requerente se valer, por analogia, das regras atinentes à ação de despejo, previstas na Lei nº 8.245/91 ("Lei do Inquilinato"), em que se determina que a ação de despejo se processo pelo rito ordinário11, com plena atividade cognitiva do julgador, seja ele estatal ou arbitral. A natureza executiva "lato sensu" da ação de despejo não deve servir de motivo para que uma parte deixe se cumprir o que pactuou com seu parceiro: o de exercer sua pretensão (de caráter cognitivo) por meio da arbitragem, garantindo-se à contraparte o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, com dilação probatória, se necessário, reservando-se ao juízo estatal tão somente atos de constrição (como o processamento de eventual ordem de despejo concedida na arbitragem), não devendo tal ato se confundir com a natureza coercitiva de determinado ato que pode, perfeitamente, ser decidido por árbitros investidos da função jurisdicional. A esse respeito, cita-se, por todos, o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco: "Enquanto as constrições atuam fisicamente sobre as pessoas ou coisas, as coerções têm por alvo o espírito. Daí dizer-se que aos árbitros falta o poder de constrição, mas que poderes de coerção não lhes faltam, os quais são exercidos mediante decisões e não atuações físicas sobre pessoas ou coisas"12. Que tal lição seja observada pelas partes contendentes e magistrados em ações que tenham por objeto a retomada de terras agrícolas ou mesmo de forma genérica, de modo anão desvirtuar a natureza da ação de despejo, compatibilizando-a com o seu processamento pela via arbitral. __________ 1 Segundo Thiago Soares Gerbasi: "Regra geral, o objeto deste contrato é a cessão do uso do imóvel rural de propriedade ou sob posse do cedente ao contratante sem terra para desenvolvimento de empreendimento rural específico, eleito em conjunto pelas partes. Importante destacar que, neste tipo de contrato". (Contratos de parceria rural. Qualificação, regime jurídico e questões polêmicas. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: 2016, p. 15. 2 Ver, a esse respeito: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 23 mar. 2024. 3 Nos termos da referida disposição: Art. 32. Só será concedido o despejo nos seguintes casos:  I - Término do prazo contratual ou de sua renovação; II - Se o arrendatário subarrendar, ceder ou emprestar o imóvel rural, no todo ou em parte, sem o prévio e expresso consentimento do arrendador; III - Se o arrendatário não pagar o aluguel ou renda no prazo convencionado;  IV - Dano causado à gleba arrendada ou ás colheitas, provado o dolo ou culpa do arrendatário;   V - se o arrendatário mudar a destinação do imóvel rural; VI - Abandono total ou parcial do cultivo; VII - Inobservância das normas obrigatórias fixadas no art. 13 dêste Regulamento; VIII - Nos casos de pedido de retomada, permitidos e previstos em lei e neste regulamento, comprovada em Juízo a sinceridade do pedido; IX - se o arrendatário infringir obrigado legal, ou cometer infração grave de obrigação contratual.        4 A esse respeito, dispõe o Art. 32, parágrafo único do Decreto nº 59.566/66: No caso do inciso III, poderá o arrendatário devedor evitar a rescisão do contrato e o conseqüente despejo, requerendo no prazo da contestação da ação de despejo, seja-lhe admitido o pagamento do aluguel ou renda e encargos devidos, as custas do processo e os honorários do advogado do arrendador, fixados de plano pelo Juiz. O pagamento deverá ser realizado no prazo que o Juiz determinar, não excedente de 30 (trinta) dias, contados da data da entrega em cartório do mandado de citação devidamente cumprido, procedendo-se a depósito, em caso de recusa. 5 A esse respeito, ver: Arbitragem nos contratos agrários e agroindustriais - Migalhas. Acesso em 23 mar. 2024. 6 "A existência de processos sincréticos - e de ações com a estrutura das executivas lato sensu - justifica-se porque as atividades de conhecimento e execução são, a rigor, indissociáveis. Não há execução (lato sensu) sem prévia atividade cognitiva, por mais superficial ou "rarefeita" que esta seja. Assim, mesmo no processo de execução essas atividades se entremeiam. O juiz primeiro examina o requerimento de penhora (atividade cognitiva) para só então expedir o mandado que irá individualizar o bem sujeito à execução (atividade executiva). Bronzatto, Alexandre Novelli. Ação executiva lato sensu. Mestrado em Direito - PUCSP, 2006, P.58. Disponível em; Microsoft Word - Disserta..o.Alexandre.Novelli.Bronzatto.doc (pucsp.br). Acesso em 23 mar. 2024. 7 STJ, Quarta Turma, Recurso Especial nº 1.481.644-SP, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 01.06.2021, DJe 19.08.2021. 8 TJPR, 18ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 0033256-46.2019.8.16.0001, Rel. Des. Juiz de Direito Substituto em 2º Grau Luiz Henrique Miranda (em substituição ao Desembargadora Denise Kruger Pereira), j. 08.07.2022. 9 Na lição do referido autor: "Se a atividade executiva já invadiu, há tempos, o campo dominado pela atividade cognitiva, impõe-se observar em que medida o fenômeno se apresenta também na direção oposta, o que poderia representar um passo adiante do que se vem chamando há muito de "sincretismo processual". Em outras palavras: a reaproximação de cognição e execução se dá em duas direções: a realização de atividade executiva de forma coordenada e combinada com as atividades cognitivas e o desenvolvimento da atividade cognitiva a propósito do desempenho da atividade executiva". SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do Juiz na Execução Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 23. 10 SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 8.ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 334. 11 Nesse sentido, o art. 59, caput, da Lei do Inquilinato, dispõe: "Com as modificações constantes deste capítulo, as ações de despejo terão o rito ordinário". 12  DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 48
Muito já se discutiu na doutrina arbitral, tanto nacional quanto estrangeira, a importância da fixação dos pedidos no instrumento denominado termo de arbitragem, para o desenvolvimento regular e seguro do processo arbitral. Vale relembrar aqui que o termo de arbitragem é o instrumento em que há a delimitação do objeto da lide e contém os pedidos das partes a serem, necessariamente, detalhados e quantificados nas alegações escritas. Isso representa o que a doutrina denomina "estabilização da demanda"1. No entanto, um ponto de igual importância para a garantia de segurança do processo arbitral diz respeito à fixação dos pontos controvertidos da respectiva demanda. Tal fixação ocorre, normalmente, quando as partes especificam as provas que pretendem produzir e apresentam, seja de forma conjunta ou individual, os pontos da demanda que entendem ser controvertidos e que deverão ser objeto de análise e decisão pelo tribunal arbitral. Apesar de o ponto controvertido não se confundir com a figura jurídica do pedido propriamente dito, a necessidade de sua fixação no âmbito de um processo arbitral não configura uma prática uníssona. Em certos casos, os julgadores possuem um entendimento que a fixação prévia de pontos controvertidos limitaria o poder investigatório do tribunal arbitral, o que, ao fim e ao cabo, prejudicaria o julgamento da demanda. Tal posição, apesar de respeitável, é minoritária, sejam em âmbito doméstico, mas, principalmente, na seara internacional. Com efeito, a identificação e fixação dos pontos controvertidos ao final da fase postulatória do processo arbitral não apenas garante previsibilidade e, pois, segurança, às partes contendentes no que realmente interessa a ser investigado, garantindo-se fluidez da fase instrutória e higidez da futura sentença2-3, mas, ainda, promove celeridade e eficiência no julgamento da demanda. A esse respeito, confira-se o que dispõem as "UNCITRAL Notes on Organizing Arbitral proceedings"4: "(a) Should a list of points at issue be prepared 43. In considering the parties' allegations and arguments, the arbitral tribunal may come to the conclusion that it would be useful for it or for the parties to prepare, for analytical purposes and for ease of discussion, a list of the points at issue, as opposed to those that are undisputed. If the arbitral tribunal determines that the advantages of working on the basis of such a list outweigh the disadvantages, it chooses the appropriate stage of the proceedings for preparing a list, bearing in mind also that subsequent developments in the proceedings may require a revision of the points at issue. Such an identification of points at issue might help to concentrate on the essential matters, to reduce the number of points at issue by agreement of the parties, and to select the best and most economical process for resolving the dispute. However, possible disadvantages of preparing such a list include delay, adverse effect on the flexibility of the proceedings, or unnecessary disagreements about whether the arbitral tribunal has decided all issues submitted to it or whether the award contains decisions on matters beyond the scope of the submission to arbitration. The terms of reference required under some arbitration rules, or in agreements of parties, may serve the same purpose as the above-described list of points at issue."  [p. 17]  "(b) In which order should the points at issue be decided 44. While it is often appropriate to deal with all the points at issue collectively, the arbitral tribunal might decide to take them up during the proceedings in a particular order. The order may be due to a point being preliminary relative to another (e.g. a decision on the jurisdiction of the arbitral tribunal is preliminary to consideration of substantive issues, or the issue of responsibility for a breach of contract is preliminary to the issue of the resulting damages). A particular order may be decided also when the breach of various contracts is in dispute or when damages arising from various events are claimed. 45. If the arbitral tribunal has adopted a particular order of deciding points at issue, it might consider it appropriate to issue a decision on one of the points earlier than on the other ones. This might be done, for example, when a discrete part of a claim is ready for decision while the other parts still require extensive consideration, or when it is expected that after deciding certain issues the parties might be more inclined to settle the remaining ones. Such earlier decisions are referred to by expressions such as "partial", "interlocutory" or "interim" awards or decisions, depending on the type of issue dealt with and on whether the decision is final with respect to the issue it resolves. Questions that might be the subject of such decisions are, for example, jurisdiction of the arbitral tribunal, interim measures of protection, or the liability of a party." [p. 18] No mesmo sentido dispõem as diretrizes do Chartered Institute of Arbitrators ("CIArb") sobre redação de sentenças arbitrais5: "2. Awards should also contain the following essential elements: i) the names and addresses of the arbitrators, the parties and their legal representatives; ii) the terms of the arbitration agreement between the parties; iii) a summary of the facts and procedure including how the dispute arose; iv) a summary of the issues and the respective positions of the parties; v) an analysis of the arbitrators' findings as to the facts and application of the law to these facts; and vi) operative part containing the decision(s)" [p. 12] [.] "b) The award should also clearly identify and present in a logical order the issues which need to be decided. They are often phrased as questions. The issues can be found in the parties' submissions or the arbitrators themselves can draft a list based on the parties' submissions. It is good practice to request the parties to provide a list, preferably agreed between them, and/or ask them to comment on the list prepared by the arbitrators in order to make sure that all of the disputed issues have been included and that all matters fall within the arbitrators' jurisdiction. In any case, the list of issues should be presented in a logical sequence and in the order in which they will be discussed". [p. 13] O direito, como bem lembra Mário Guimarães, é inseparável dos fatos. E sem fato jurígeno, não há sentido na atuação de quem exerce a função de julgador. Regra básica e útil para qualquer julgamento, já dizia o referido autor, é a "fixação dos fatos" (nos quais se englobam os pontos controvertidos e as "regras jurídicas que a regulam"6). Tal ensinamento, destinado ao processo estatal é claramente aplicável, a qualquer processo, inclusive o arbitral. Levando-se em consideração que o processo possui início, meio e fim, não comportando recurso contra a sentença arbitral7, entende-se ser de bom alvitre que as partes colaborem com o processamento seguro do processo, identificando, seja de forma conjunta (o que é sempre preferencial8) ou separadamente, os pontos controvertidos da demanda. Trata-se de uma via de mão dupla: a cooperação das partes nesse ponto certamente permitirá que os julgadores promovam um julgamento célere, eficiente, eficaz, mas, principalmente, seguro, do processo arbitral, entregando-se, de forma definitiva9, a tutela jurisdicional. __________ 1 "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral." (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005). No mesmo sentido, aduz Cândido Rangel Dinamarco: "Seja como for, o objeto do processo arbitral é determinado sempre pelo pedido endereçado aos árbitros, qualquer que haja sido o iter de sua formulação. Quando o compromisso não for claro, o pedido será especificado por solicitação dos árbitros, chegando-se com isso à estabilização da demanda (CPC, art. 294), que outra coisa não é senão a definitiva delimitação do objeto do processo arbitral. Quando tudo houver sido feito, havendo as partes ajustado concretamente um compromisso e nomeado os árbitros, vindo estes a aceitar o encargo, o instrumento desse ato complexo terá desde logo definido o objeto do processo arbitral que assim se instaura, cabendo ao conselho arbitral pronunciar-se afinal sobre a divergência pendente entre os contendores." (DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO, Andre Gomma de (ORG.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação - volume 2. Brasília/DF/Brasil: Grupos de Pesquisa, 2003. p.19-33). 2 Em arbitragens administradas pela Câmara de Comércio Internacional ("CCI"), o chamado "ICC Award Checklist" estabelece: "7. Parte dispositiva, sede da arbitragem, data, assinatura [...] B. A sentença arbitral considera todas as questões e todas as demandas das partes (que deverão estar incluídas com clareza e exatidão em alguma parte da sentença arbitral, comparadas com a Ata de Missão), inclusive seus pedidos mais recentes, e decide apenas tais questões e demandas (especificar claramente se determinadas demandas ficam reservadas para uma ou mais sentenças arbitrais futuras). Disponível em: ICC Lista de verificação para sentenças arbitrais da CCI (iccwbo.org). Acesso em 24 fev. 2024. 3 A esse respeito, vale citar o Guia para Elaboração de Sentenças Arbitrais da Internacional Bar Association (IBA). "4.6 Pedidos das partes e identificação de pontos controvertidos. A sentença arbitral deve descrever os pedidos das partes conforme o seu status no momento do encerramento da instrução, isto é, considerando todos os pedidos, reconvenções ou outros requerimentos que exijam uma decisão do tribunal arbitral, incluindo quaisquer emendas aos pedidos iniciais das partes, desistências ou renúncias. A sentença arbitral deve declarar os pontos controvertidos a serem decididos. Às vezes, esses pontos são identificados pelas partes ou pelo tribunal arbitral mediante referência às manifestações das partes. Os pedidos das partes e os pontos controvertidos a serem decididos delimitam, em conjunto, o escopo do mandato do tribunal arbitral. Pode-se utilizá-los como um checklist para assegurar que o tribunal arbitral não exceda o seu mandato ou, inversamente, deixe de decidir questões que exijam resolução. Quando for adequado, a sentença arbitral também pode identificar que a resolução de certas questões depende do resultado de outras, razão pela qual tal resolução só se faz necessária após a decisão da questão preliminar (por exemplo, uma decisão sobre danos depende de uma determinação prévia sobre responsabilidade" (p. 43). Disponível em: guia-para-elaboracao-de-sentencas-arbitrais-da-iba-traducao-e-notas.pdf (cbar.org.br). Acesso em 24 fev. 2024. 4 Disponível em: UNCITRAL Notes on Organizing Arbitral Proceedings. Acesso em 24 fev. 2024. 5 Disponível em: drafting-arbitral-awards-part-i-_-general-2021.pdf (ciarb.org). Acesso em 24 fev. 2024. 6 Nas exatas palavras do referido autor: "Nem se pretenda que o Direito é inseparável dos fatos. Há um sentido em que se diz, com verdade, que o Direito é inseparável do fato. É que o direito nasce do fato - jus ex facto oritur. Sem um fato jurígeno, não há ingresso nos pretórios, porque juízes e tribunais não têm a função de discutir teses acadêmicas, que não tenha aplicação a determinado feito. Mas isso não exclui a possibilidade de se extremarem no julgamento, duas operações intelectuais: a fixação exata dos fatos e a das regras jurídicas que os regulam". (O Juiz e a Função Jurisdicional, Forense, 1958, § 208, pág. 78) 7 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 24 fev. 2024. 8 Prática, aliás, que está em harmonia com o disposto no art. 6º do Código de Processo Civil ("CPC"), cujo caráter principiológico e plenamente aplicável a qualquer arbitragem: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". A respeito desse dispositivo, anota José Rogério Cruz e Tucci: "Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado 'dever de cooperação recíproca em prol da efetividade', o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal." (Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 13.) 9 Na forma do art. 31 da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), a sentença arbitral configura título executivo judicial: "A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo".
Em 14 de dezembro de 2023 foi proferido acórdão de lavra da 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP"), cuja ementa se encontra abaixo transcrita: "Ação de nulidade de procedimento arbitral. Relação pessoal de árbitro e advogado. Participação comum em organização de ensino. Visibilidade em redes sociais. Violação do dever de revelação. Art. 14, §1º, da Lei de Arbitragem. Reclamação da nomeação ignorada pelo árbitro. Indevida afirmação de concordância na sentença arbitral. Fatos suficientes para o reconhecimento da quebra do atributo da imparcialidade. Art. 13, §6º, da Lei de Arbitragem. Vício bem reconhecido. Sentença de procedência mantida. Art. 252 do RITJSP. Verba honorária ora adequada aos termos do §2º do art. 85 do CPC. Indeferimento da gratuidade da justiça mantido. Recurso do autor provido. Recurso do réu improvido"1. A referida decisão manteve, na íntegra, sentença proferida em 19 de julho de 2023, proferida pelo Juízo da 1ª Vara Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Central da Comarca de São Paulo, Estado de São Paulo, nos autos de ação anulatória de sentença arbitral2, que, em linhas gerais, anulou sentença arbitral fundamentado em duas razões: (i) a primeira, porque os autores da referida ação teriam sido tolhidos da participação no processo de nomeação de árbitro único e de terem acesso a documentos relevantes para a aferição da imparcialidade do árbitro; (ii) a segunda, porque fatos não revelados pelo árbitro, por si só, levariam ao reconhecimento de sua imparcialidade. O acórdão proferido pelo TJSP que manteve a sentença de primeiro grau, em especial a sua ementa, passa a percepção de que o grande motivo que ensejou a anulação da sentença arbitral teria sido a ausência de revelação do árbitro de certos fatos conduziria à perda de sua isenção. Conforme se analisará a seguir, o referido decisum está, com a devida vênia, equivocado, ao menos em parte. Trata-se, em breve síntese, de ação anulatória na qual os autores alegam que a ré instaurou procedimento arbitral sob alegação de inadimplemento dos autores ao pagamento integral do preço ajustado em negócio jurídico celebrado entre as partes para a cessão de quotas de determinada sociedade empresária. Segundo os autores, contudo, a sentença arbitral proferida no âmbito do procedimento seria passível de anulação em razão (i) da existência de vínculo pessoal entre o árbitro e o patrono da parte contrária; (ii) de alegado cerceamento de defesa; (iii) de vícios de fundamentação; (iv) da ausência de recolhimento de custas e (v) da ausência de organização das peças processuais em autos. São esses os fundamentos da referida ação anulatória. De todas as razões acima, a sentença de primeiro grau e o acordão do TJSP encamparam duas: (i) a da ausência de intimação dos autores para participarem do processo de nomeação do árbitro único e (ii) a não revelação das alegadas relações acadêmicas e aquelas mantidas por meio de redes sociais entre o árbitro único e o patrono da ré. Não há dúvidas, de que, como bem-posto na sentença judicial de primeiro grau e mantido pelo acórdão, falta de oportunização à parte de participar da escolha do profissional a atuar como árbitro único constitui vício grave3. Com efeito, na arbitragem, a constituição do tribunal arbitral configura momento crucial para regular desenvolvimento do processo. Isso vale tanto para aqueles profissionais indicados diretamente pelas partes - o coárbitro, e defende-se, com vigor, que tal regra também valha para aquele exercerá a função de presidente do tribunal como o de árbitro único4. No caso sob análise, os autores da ação anulatória sequer foram intimados a participar do processo de nomeação do árbitro, e, frisou ainda, o juízo sentenciante, "tampouco tiveram acesso a documentos de qualificação do árbitro e questionários de conflito". Trata-se, evidentemente, de situação grave e que fulmina a sentença arbitral de nulidade. No entanto, a decisão objeto dessas linhas foi além do que era necessário e culminou por incorrer em falha de intepretação jurídica dos limites do dever de revelação do árbitro. Isso porque, de forma equivocada, o Juízo Sentenciante, seguido pelo TJSP, fez constar como motivo para anulação da sentença arbitral a não revelação de que o árbitro único e o patrono da parte ré na ação anulatória seriam colegas de magistério na mesma instituição e que manteriam "amizade nas redes sociais". O primeiro equívoco se dá pela suposta necessidade de revelação pelo árbitro de relações acadêmicas mantidas entre este os patronos das partes. Com efeito, as questões atinentes às relações acadêmicas mantidas entre o profissional que exerce a função de árbitro e os advogados de quaisquer das Partes, não só não geram o impedimento do árbitro, como sequer têm a necessidade de ser reveladas5. E, justamente por isso, tal hipótese encontra-se encartada nas IBA Guidelines on Conflicts of Interest, que servem de parâmetro internacional de melhores práticas na verificação de conflito de interesse, no campo reservado às matérias que não precisam ser reveladas (lista verde)6. Além disso, tal decisão parte de premissa de caráter subjetivo7 do Juízo Sentenciante e da turma julgadora da apelação, fazendo letra morta o disposto no art. 14, § 1º da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), o qual é claro: "As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (ênfase acrescentada). O segundo equívoco do decisum, se dá pela ausência de verificação da materialidade e prejudicialidade do fato não revelado, quando se afirma como razão de decidir, que o árbitro único e o patrono da parte manteriam amizade em redes sociais e que a não revelação de tal fato macularia a sentença arbitral de nulidade. Assim, concluiu a sentença de primeiro grau, mantida pelo acórdão: "(...) o entendimento que parece mais razoável é o de que esse fato deveria ter sido revelado, garantindo-se a oportunidade para que a parte contrária, ciente do fato, avaliasse ou não a necessidade de endereçar questionamentos ao árbitro ou até mesmo a examinasse a possibilidade de impugnar a sua atuação, na medida em que todos os participantes do procedimento arbitral devem sentir-se confortáveis diante da figura do julgador". A suposta relação de amizade mantida entre o árbitro único e o patrono de uma parte em redes sociais não se enquadra no conceito de dúvida justificada, a ponto de necessitar revelação prévia. Além de públicas e de fácil acesso, tais questões não são relevantes para macular a independência e imparcialidade do profissional que pretende exercer a função de árbitro8. Com efeito, o uso das redes sociais tem se intensificado nos últimos tempos, de modo que as pessoas e organizações lá inscritas possam desenvolver e expor suas atividades. No campo do direito, é normal a divulgação de eventos, como lançamentos de livros, congressos, seminários, cursos, dentre outros, ligados a determinada área. Assim, as ligações mantidas entre profissionais que atuam como árbitro, outros advogados e outros profissionais, não denotam proximidade, tampouco representam laços de amizade íntima, capazes de gerar o impedimento do árbitro9. As razões adotadas pelo TJSP para acolher o pleito de anulação da sentença arbitral, especialmente no que tange às relações acadêmicas e aquelas mantidas por meio de redes sociais entre o árbitro único e o patrono da parte foram de cunho subjetivo e, com a devida vênia, violam o art. 14, § 1º da Lei de Arbitragem. É preciso que os julgadores se aprofundem no conceito de dúvida justificada no momento de decidir questão tão crucial e que pode anular processo desenvolvido com esmero e cautela10. Para tanto, o julgador deve voltar suas atenções à plausibilidade da dúvida, isto é, "aquela que depende de materialidade e da comprovação do nexo de causalidade entre violação do dever de revelação e a suposta imparcialidade ou dependência do árbitro"11. __________ 1 TJSP - 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1038255-35.2022.8.26.0100, Rel. Des. Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, j. 14.12.2023. 2 Processo nº 1038255-35.2022.8.26.0100. 3 A esse respeito, o próprio TJSP já decidiu no célebre caso Paranapanema: "ARBITRAGEM. Caso envolvendo litisconsórcio de partes com interesses distintos no mesmo polo. Omissão do Regulamento da Câmara de Arbitragem quanto à indicação de árbitros em casos de multipartes com interesses distintos no mesmo polo. Integração do regulamento pelo Presidente daquele órgão que não se deu com melhor técnica jurídica por fazer prevalecer a indicação de árbitro de apenas uma das partes, suprimindo o direito de indicação das outras. Inobservância de princípios basilares da isonomia e imparcialidade que viciaram a formação do painel arbitral. Parte prejudicada que invoca a reserva legal de apreciação de tal questão pelo judiciário. Inocorrência de preclusão nos termos do art. 19, § 2º, da lei 9307/96. Sentença arbitral anulada. Recursos dos réus não providos. No juízo comum (estatal), o julgador é investido diretamente pelo próprio Estado; no juízo arbitral, diferentemente, o julgador é investido diretamente pelas próprias partes.  Portanto, se há algum momento em que não pode haver qualquer espécie de dúvida, incerteza ou mácula este reside no ato dessa verdadeira "investidura" manifestada pelas partes. Afinal, o poder de dizer o direito sobre um caso concreto outorgado ao juiz arbitral só goza de tal predicado de impor decisão com eficácia vinculante para as partes porque estas assim o quiseram (...)" (ênfase acrescentada) (TJSP - 11ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 0002163-90.2013.8.26.0100, Rel. Des. Gilberto dos Santos, j. em 3.7.2014) 4 Ver, a esse respeito: Peculiaridades na escolha do árbitro presidente do tribunal arbitral - Migalhas. Acesso em 24 jan. 2024. 5 Esse é o entendimento, por exemplo, de Suar Sanubari: "The Guidelines simply classify any social media relationship between arbitrators and parties or counsel in the 'Green List'. This means the connection will never lead to disqualification under the objective test and need not be disclosed. However, it is important to take into account the debate on social media relationships during the panel discussion of 2013 IBA's Annual Meeting that gave rise to the Guidelines (the 'Meeting'). Lawrence Schaner suggested that most cases of social media connections do not represent real and actual relationships. Hillary Heilbron QC opined that the issue of disclosure is about the nature of a particular relationship, not the source. Therefore, social media relationships in the 'Green List' must not undermine the general principle if an arbitrator finds him/herself in a circumstance that needs to be disclosed. Basically, the discussions on disclosure revolve around whether an arbitrator who has a social media connection with a party or a counsel also has a real (offline) relationship that may give rise to justifiable doubts as to the independence and impartiality of the arbitrator" (Arbitrator's Conduct on Social Media, Journal of International Dispute Settlement, The Oxford University Press 2017, Volume 8, Issue 3, p. 484-485, ênfase acrescentada). 6 "4.3. Contacts with another arbitrator, or with counsel for one of the parties. 4.3.1. The arbitrator has a relationship with another arbitrator, or with the counsel for one of the parties, through membership in the same professional association, or social or charitable organisation, or through a social media network (.) 4.3.3. The arbitrator teaches in the same faculty or school as another arbitrator or counsel to one of the parties, or serves as an officer of a professional association or social or charitable organisation with another arbitrator or counsel for one of the parties. The arbitrator was a speaker, moderator or organiser in one or more conferences, or participated in seminars or working parties of a professional, social or charitable organisation, with another arbitrator or counsel to the parties". 7 A esse respeito ver recente artigo de José Rogério Cruz e Tucci: Árbitro e advogado que exercem o magistério na mesma instituição (conjur.com.br). Acesso em 27 jan. 2024. 8 Nesse sentido, é a lição de Daniela Vicente de Almeida: "Contudo, no que diz respeito à circunstância de um dos árbitros estar ligado a uma das partes por uma rede social - não obstante o peso crescente que as redes sociais e profissionais têm atualmente -, entendemos que, em regra, não se pode exigir a sua revelação unicamente por existir essa conexão, sob pena de se revelarem factos que inclusivamente aos olhos das partes poderiam ser perfeitamente irrelevantes. Se assim não fosse, em quase todos os processos arbitrais esta circunstância teria de ser revelada, uma vez que a maioria dos utilizadores das redes sociais encaram-nas numa perspectiva de autopromoção ou lazer, não se estabelecendo uma verdadeira relação entre eles. O simples facto de os intervenientes estarem virtualmente ligados não impõe que o árbitro revele imediatamente esse facto, nem nos parece sensato admitir que as partes o consideram como tal (...)" (O dever de revelação como problema de independência e imparcialidade dos árbitros. Coimbra: Almedina, 2018, p. 120) 9 Fato que, aliás, vem sendo observado pela doutrina estrangeira, conforme se verifica nos estudos de Laurent Gouiffes: "As per Article L. 111-6 of the French Code of Judicial Organization, an arbitrator's recusal may be sought: if the arbitrator or his/her partner has a personal stake in the dispute; if the arbitrator/partner is a creditor, debtor, presumed heir or donee of one of the parties; if the arbitrator/partner is a parent to or ally of one of the parties or partner up to the fourth degree inclusively; if there is a hierarchical relationship between the arbitrator/partner and one of the parties and his/her partner; or if there is a clear friendship or enmity between the judge and one of the parties. With the development of social media and virtual friendships or connections on networks such as Facebook or Linkedin, the Cour de cassation, in a disciplinary proceeding before the Bar Council, has ruled that the term 'friendship' used by Article L. 111-6 of the French Code of Judicial Organization could not be interpreted to encompass 'friendship' on social media. It held that social media was, rather, a mere channel of communication between persons sharing the same interests, and in this case, the same profession. The threshold for showing an arbitrator's lack of independence or impartiality is whether the arbitrator is influenced by elements of a nature to provoke a reasonable doubt in the parties' minds. It follows that when arguing that an arbitrator lacks independence or impartiality, parties must show the existence of material or intellectual ties, or a situation of a nature to affect an arbitrator's judgment or to amount to a risk of bias towards one of the parties to the arbitration" (The View from the French Courts: Disclosures - Objections - Challenges: Clear Path or Jungle. In: Commercial Arbitrators' Conflicts of Interest? DASSER, Felix (ed.) ASA Special Series, v. 48, Kluwer Law International, 2021, p. 86). 10 Ver, a esse respeito: Fato não revelado na arbitragem e produção de provas - Migalhas. Acesso em 27 jan. 2024. 11 Ver, a esse respeito, DABUS, Rodrigo. O conceito de dúvida justificada no dever de revelação do árbitro. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Faculdade Ibmec São Paulo, Direito, Campus Ibmec Paulista, São Paulo, 2023, p. 39 (no prelo).
terça-feira, 19 de dezembro de 2023

O aprimoramento da prática arbitral no Brasil

É dito, com certa frequência, que a arbitragem representa um método extrajudicial de resolução de conflitos devidamente consolidado no Brasil. Tal afirmativa é certamente verdadeira, considerando os avanços realizados ao campo arbitral, seja pelo aprimoramento da correspondente legislação, pela evolução jurisprudencial, pela especialização dos advogados e partes atuantes nesse setor, e, sobretudo, pelos brilhantes trabalhos acadêmicos evolvendo o tema arbitral que surgiram (continuam a surgir) ao longo do tempo1. Enquanto, em teoria, as leis e a jurisprudência caminham no sentido de comprovar a plena consolidação da arbitragem no Brasil, em particular, o ano de 2023 demonstrou uma notória evolução de questões atinentes à prática arbitral. Faz-se aqui menção às mudanças que surgiram no âmbito dos regulamentos de arbitragem de renomadas instituições, de importantes diretrizes que auxiliam a balizam certos pontos sensíveis da arbitragem e pesquisas empíricas que demonstram o quão importante representa tal meio para o empresariado nacional e estrangeiro (sobretudo, os que investem no Brasil). Inicia-se aqui pelas mudanças regulamentares. O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá ("CAM-CCBC"), em abril de 20232, criou regulamento específico para arbitragens societárias, com destaque para regras sobre terceiros intervenientes na relação jurídica, chamado pelo referido regulamento de "Terceiros Afetados". As normas criadas pelo novo regulamento societário são úteis e compatíveis com o sistema arbitral (caracterizado por ter início, meio e fim, com a emissão de uma sentença final irrecorrível3) na medida em que estabelece os direitos de terceiras partes que não integraram eventual processo arbitral e precisam ser afetadas pela decisão final. E, além disso, é coerente com a jurisprudência dos tribunais superiores, em especial a do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), no sentido de que, para a "formação do livre convencimento motivado acerca da inviabilidade de manutenção da empresa dissolvenda, em decorrência de quebra da liame subjetivo dos sócios, é imprescindível a citação de cada um dos acionistas, em observância ao devido processo legal substancial"4 (sic). Além disso, o próprio CAM-CCBC editou a Norma Complementar nº 04/20235, por meio da qual ampliou e aprimorou o seu questionário modelo para a verificação de conflito de interesses e disponibilidade da pessoa a exercer a função de árbitro. Com efeito, o novo questionário modelo fez constar regras as quais já vinham sendo objeto de pedidos específicos das partes antes da constituição do tribunal arbitral, tais como aquelas atinentes à relação dos árbitros indicados com os advogados das partes, por exemplo: se o profissional indicado para exercer a função de árbitro (i) tem ou já teve relação de negócio com os integrantes dos escritórios envolvidos na arbitragem, nos últimos três anos; (ii) se já atuou em conjunto com os escritórios de advocacia que representam as partes, nos últimos três anos; (iii) se tem relação de amizade íntima ou inimizade com advogados que representam as partes no processo arbitral; (iv) se já foi nomeado pelo escritório de advocacia que representa alguma das partes no processo mais que três vezes, nos últimos três anos; (v) se já emitiu opiniões legais ou pareceres jurídicos para o escritório de advocacia atuante a arbitragem em número superior a três, nos últimos três anos; (vi) se está atuando em conjunto com o patrono de uma das partes em um mesmo tribunal arbitral em outra arbitragem. O acréscimo de tais questionamentos não só seguem a prática que vinha sendo adotada nas arbitragens domésticas, levam em consideração o aumento da prática arbitral no Brasil, com o aumento de casos, advogados especialistas, instituições arbitrais, mas, o mais importante, possuem o condão dar maior transparência ao processo acelerar o trâmite de constituição dos tribunais arbitrais. Na linha do referido tema, o Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr"), elaborou em 2023 diretrizes sobre o dever de revelação do árbitro6, as quais, assim como tratado acima, levam em consideração as diretrizes internacionais sobre o mesmo tema, mundialmente aceitas, mas, o que é imperioso, o crescimento da arbitragem brasileira. E dá subsídios complementares ao disposto no art. 14, § 1º da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), eis que contempla situações não dispostas na legislação, mas que devem ser levadas em consideração para a sua correta interpretação. Algumas dessas regras não dispostas em lei mas que a complementam são dignas de nota: a regra 3, por exemplo, afasta a tese de que a ausência de revelação implicaria ausência de imparcialidade do árbitro, o que é muito importante para afastar impugnações frívolas e comportamentos inadequados de partes que usam tais argumentos para retardar o andamento do processo arbitral ou questionar a respectiva sentença: "Eventual omissão no exercício do dever de revelação do(a) árbitro(a) não implica, necessariamente, falta de independência ou imparcialidade deste(a). Eventual alegação de falta de independência ou imparcialidade daí decorrente deverá ser aferida à luz da natureza e da relevância do fato não revelado, conforme a visão de um terceiro que, com razoabilidade, analisaria a questão e as circunstâncias do caso concreto".  No campo processual, merecem destaque as regras a respeito da produção antecipada de provas em arbitragens, expedidas pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara Americana de Comércio ("CAM-AMCHAM"), colocando em prática entendimento jurisprudencial recente a respeito da competência e jurisdição para apreciação da prova, requerida em caráter antecipado, a qual pertence ao árbitro7. Nesse sentido, a referida instituição expediu a Resolução Administrativa nº 3/23 nos termos da qual, "O Conselho Consultivo do Centro de Arbitragem e Mediação AMCHAM ("CAM AMCHAM"), no exercício de suas atribuições, previstas no Estatuto Social, decide expedir a seguinte resolução sobre a possibilidade de utilização do procedimento de árbitro de emergência para a hipótese de necessidade de produção antecipada de provas nas arbitragens administradas pelo CAM AMCHAM"8. Em termos gerais, na linha da referida resolução, em arbitragens administradas pelo CAM-AMCHAM, e, no caso de haver a necessidade de produção antecipada de provas, sem que haja urgência, tal pretensão deve ser deduzida perante árbitro de emergência, cuja competência e atribuição se limitará à condução do respectivo processo antecipatório. A utilidade dessa resolução se dá, notadamente, pelo fato de a parte interessada poder produzir, em caráter antecipado, provas periciais, documentais ou testemunhais, quando esta for suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio de solução de conflitos e/ou quando o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou mesmo evitar a instauração da arbitragem. Por último, e não menos importante, o CBAr, em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria ("ABJ") elaborou e publicou pesquisa em 2023 a respeito de processos relacionados à arbitragem, em trâmite perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. As conclusões alcançadas pela referida pesquisa demonstram prestígio que é dado à arbitragem pelo judiciário paulista. Nesse sentido, alguns itens conclusivos da pesquisa merecem ser citados: (i) "A maioria das ações judiciais analisadas na pesquisa tem por objeto dar suporte à jurisdição privada (ações de suporte) e não a desafiar (ações de controle)"; (ii) "A maioria das ações judiciais analisadas na pesquisa tem por objeto dar suporte à jurisdição privada (ações de suporte) e não a desafiar (ações de controle)" e (iii) "As varas especializadas da comarca de São Paulo atuam de forma complementar e oferecendo suporte à jurisdição arbitral através da análise de pedidos de medidas de urgência pré-arbitrais, da instituição de juízos arbitrais e do cumprimento de sentenças arbitrais, respeitando o mecanismo de resolução de controvérsias escolhido pelas partes e anulando sentenças arbitrais de forma excepcional"9. Os pontos colocados nessas breves linhas demonstram que os players da arbitragem estão atentos às novas práticas, novos standards, novas regras que servem para aprimorar o instituto o qual, na atualidade, é o mais importante método de resolução extrajudicial de conflitos empresariais existente. __________ 1 Ver, a esse respeito, os trabalhos acadêmicos divulgados no "Banco de Teses" do Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr"). Fonte: Banco de Teses « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2023. 2 Regras criadas por meio da Norma Complementar n. 02/2023. Fonte: Norma Complementar 02/2023 - Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (ccbc.org.br). Acesso em 17 dez. 2023. 3 A esse respeito ver Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 17 dez. 2023. 4 REsp, n. 1.303.284-PR, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16.04.2013, DJe:13.05.2013. 5 Fonte: Norma Complementar 04/2023 - Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (ccbc.org.br). Acesso em 17 dez. 2023. 6 A íntegra das diretrizes podem ser verificadas em: Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o dever de revelação do(a) árbitro(a) « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2023. 7 Nesse sentido, cita-se parte da ementa do referido acórdão: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS, COM FUNDAMENTO NOS INCISOS II E III DO ART. 381 DO CPC/2015 (DESVINCULADA, PORTANTO, DO REQUISITO DE URGÊNCIA/CAUTELARIDADE) PROMOVIDA PERANTE A JURISDIÇÃO ESTATAL ANTES DA INSTAURAÇÃO DE ARBITRAGEM. IMPOSSIBILIDADE. NÃO INSTAURAÇÃO DA COMPETÊNCIA PROVISÓRIA DA JURISDIÇÃO ESTATAL, EM COOPERAÇÃO (ANTE A AUSÊNCIA DO REQUISITO DE URGÊNCIA). RECONHECIMENTO. INTERPRETAÇÃO, SEGUNDO O NOVO TRATAMENTO DADO ÀS AÇÕES PROBATÓRIAS AUTÔNOMAS (DIREITO AUTÔNOMO À PROVA) PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. RECURSO ESPECIAL PROVIDO (.). REsp nº 2.023.615-SP, Terceira Turma, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 14.03.2023. 8 A íntegra da Resolução Administrativa n. 3/23 pode ser encontrada em: resolucao-administrativa-n3-2023.pdf (amcham.com.br). Acesso em 17 dez. 2023. 9 A íntegra da referida pesquisa pode ser encontrada em: Observatório da Arbitragem - ABJ e CBAr « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2023.
A arbitragem, como meio extrajudicial e adequado de resolução de conflitos empresariais, para que tenha plena efetividade, deve oferecer segurança a seus usuários. Com efeito, as partes, ao inserirem cláusula de compromissória em seus contratos, procuram, não apenas excluir da apreciação do Poder Judiciário o mérito de determinada controvérsia, mas, de forma consciente, optam por um sistema fechado, autônomo, decidido por julgadores que as próprias partes escolhem, e concentrado em fases pré-definidas com bastante antecedência e que possui início, meio e fim1. Apesar da aludida derrogação do Poder Judiciário, a arbitragem não sobrevive só. Com efeito, somente com atuação cooperativa entre os usuários da arbitragem (incluindo partes, advogados, árbitros, representantes das câmaras arbitrais e membros do Poder Judiciário) é que se efetiva, com sucesso, um processo arbitral. Nessa linha de entendimento, a tão discutida "sede" ou "local" da arbitragem, se destaca não só pelo local físico onde se processa a arbitragem, mas também pelo juízo da sede, conhecido na doutrina arbitral internacional como "juge d'appui", traduzido livremente como juízo de apoio, assistência ou cooperação com a arbitragem2. Todo processo arbitral possui uma sede. O chamado lugar da arbitragem é aquele em que, normalmente, o processo se desenvolve, onde as audiências são realizadas e, finalmente, onde a sentença arbitral é proferida, inter alia.3 Trata-se de um elemento operacional da arbitragem, em que a sede se torna de suma importância, sobretudo para os efeitos práticos do processo arbitral.4 E não só apenas para efeitos de operacionalidade funciona a sede da arbitragem. Com efeito, a lei da sede da arbitragem possui vocação para reger, de forma subsidiária, o processo arbitral. Isto é, na ausência de regras escolhidas pelas partes para reger o mérito da controvérsia ou mesmo questões de caráter processual, a lei da sede pode fornecer importantes subsídios para a resolução de determinadas questões.5 E não somente a lei, mas o Poder Judiciário da sede exerce relevante função no sentido de dar assistência ao processo arbitral que se desenvolve sob o seu território, proferindo medidas de urgência, auxiliando na composição do tribunal arbitral, intimando testemunhas renitentes, inter alia. Conforme lição de Carlos Alberto Carmona, trata-se de uma relação (entre o Poder Judiciário e a arbitragem) vista sob o prisma cooperativo (ou de "coordenação") e jamais de supremacia ou hierarquia (ou "subordinação").6 Seja no plano doméstico, seja no internacional, o Brasil, após vinte e sete anos de prática intensa, consolidou-se no mercado como importante player e como país confiável para sediar arbitragens. No plano internacional, a adoção da sede brasileira já é, de há muito, discutida, tendo sido o Brasil elencado à verdadeira sede segura de arbitragens internacionais quando da ratificação da Convenção de Nova York sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958 ("CNY")7. Já no plano interno, apesar de ser juridicamente possível da escolha de uma sede estrangeira ou mesmo de uma legislação estrangeira para reger o mérito da controvérsia8, é usual, prático, natural, racionalmente lógico e juridicamente seguro que a arbitragem doméstica se desenvolva no país em que as partes estão sediadas, ou no país em que o contrato que contém a cláusula compromissória é executado. Em outras palavras: em casos com partes brasileiras, discutindo um contrato celebrado e executado no Brasil, e com cláusula compromissória para resolução de disputas, é natural que a sede da arbitragem seja fixada em alguma localidade brasileira. Tais pontos são úteis para que se responda à seguinte questão: existe alguma razão de ser para que uma arbitragem doméstica seja sediada fora do Brasil? A eleição de sede estrangeira imunizaria o processo de eventuais solavancos institucionais? A resposta é evidentemente negativa. Além de tecnicamente deficiente e moralmente injusta, tal ideia é irracional do ponto de vista econômico. Transferir a sede de uma arbitragem doméstica para outro país é um contrassenso ao próprio uso do mecanismo arbitral como forma eficiente de resolução de disputas9. Haveria a necessidade de contratação de advogados estrangeiros conhecedores da legislação da sede da arbitragem, dispêndio de recursos financeiros com deslocamentos de advogados, peritos, testemunhas, árbitros, dentre outros. Além do que, em razão de ser proferida no exterior10, a sentença, para ser homologada no Brasil ainda precisaria passar pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"). A redução dos custos de transação proporcionada pela arbitragem como mecanismo eficiente de resolução de disputas seria colocada em xeque, trazendo clara ineficiência aos contratos e aos negócios. Como dito no início dessas linhas, o Brasil é sede segura para qualquer arbitragem. Não apenas pela qualidade de sua legislação, pela qualidade da jurisprudência dos tribunais nacionais a respeito de temas ligados à arbitragem, pela qualidade do resultado das arbitragens realizadas no Brasil e, por fim, pelo intenso trabalho coordenado e cooperativo realizado entre juízes estatais e tribunais arbitrais. Tais qualidades foram recentemente corroboradas por alentada e tecnicamente impecável pesquisa realizada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr") e Associação Brasileira de Jurimetria ("ABJ"), que dispôs sobre um rico levantamento no banco de decisões relacionadas à arbitragem, emanadas do Tribunal e Justiça do Estado de São Paulo. Dentre diversos pontos alcançados pela referida pesquisa destacam-se (para fins do que se dispõem as presentes linhas): (i) um ínfimo percentual de probabilidade de anulação de sentenças arbitrais11; (ii) o caráter colaborativo e coordenado entre as varas especializadas da Comarca de São Paulo e jurisdição arbitral12. Tais pontos, dentre outros diversos alcançados, levam à conclusão lógica de que a maioria esmagadora das sentenças arbitrais proferidas em território brasileiro é válida e que o Poder Judiciário atua no sentido colaborativo e não intervencionista. Não há dúvidas de que problemas, percalços ou solavancos sempre existirão, em qualquer jurisdição. O que não pode ser crível é imputar a um projeto de lei altamente controverso13 e que não teve qualquer avanço legislativo bem como uma ação judicial isolada que procura discutir a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei de Arbitragem14 como exemplos de insegurança institucional da arbitragem brasileira. Isso sem contar com a possibilidade de intervenção dos judiciários locais de sedes estrangeiras na arbitragem, o que não pode ser descartado pelas partes no momento da celebração de contrato que contenha cláusula compromissória. Não há dúvida de que Londres, Singapura, Hong Kong, Paris, Genebra e Nova York são sedes mundialmente conhecidas e adotadas com frequência no âmbito internacional. No entanto, nenhuma dessas jurisdições está imune a interferências judiciais ou mesmo governamentais que causem algum empecilho ao desenvolvimento da arbitragem. Um exemplo recente, advindo das cortes inglesas, retrata tal situação, em que o juiz Mr. Robin Knowles, da Commercial Court de Londres, proferiu sentença anulando decisão arbitral que havia condenado o Estado nigeriano a pagar uma indenização de US$ 11 bilhões à Process & Industrial Developments Limited (P&ID) por concluir que a sentença arbitral foi obtida de forma fraudulenta mediante suborno e fraude.15 O objetivo dessas linhas é, portanto, demonstrar que, o Brasil segue na rota do crescimento e da modernidade em matéria de arbitragem. Após mais de vinte sete anos de vigência da Lei de Arbitragem, a qualidade das decisões proferidas em sede de arbitragem aliadas ao caráter coordenado e cooperativo desenvolvido pelos tribunais pátrios demonstram que o Brasil é sede segura para qualquer arbitragem. Discussões, problemas, ou solavancos sempre existirão e em qualquer jurisdição. Ainda mais no Brasil, em que a arbitragem é um case de sucesso consolidado, e que, diante de suas características sistêmicas despertará à parte sucumbente e irresignada o desejo insaciável de alterar as regras do jogo, o que já se provou, não passar despercebido pelo Poder Judiciário brasileiro, na forma da pesquisa referida nessas linhas. __________ 1 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 23 nov. 2023. 2 Termo utilizado no direito francês, para caracterizar o papel dos juízes estatais perante a arbitragem ("Juiz de Apoio"). No âmbito do direito francês, Philipe Fouchard discorre como o Presidente do "Tribunal de Grande Instance" coopera com o sistema da arbitragem, como, por exemplo na formação do Tribunal Arbitral. (La coopération du Président du Tribunal de Grande Instance à l'Arbitrage. Philippe Fouchard: Écrits - Droit de l'arbitrage e droit du commerce international. Paris: Comité français de l'arbitrage, 2007. p. 5-33). 3 No direito brasileiro, a escolha da sede da arbitragem configura fator que define a nacionalidade da sentença arbitral, em virtude da redação do parágrafo único do art. 34 da Lei n.º 9.307/1996: "Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional". 4 Nesse sentido, explica Adriana Braghetta: "A sede da arbitragem deve ter estrutura logística adequada para que os atos procedimentais, especialmente as audiências, se realizem sem percalços, apesar de não ser imprescindível que os atos procedimentais aconteçam na sede. A estrutura compreende hotéis, locomoção, tradução, possibilidade de obtenção de vistos, serviços de degravação das audiências, etc. No Brasil, por exemplo, ainda não é simples obter serviços de alta qualidade para gravação e degravação de audiências em línguas estrangeiras" (A escolha da sede da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, p. 13, set. 2006). 5 É assim que entendia o saudoso Philippe Fouchard: "La loi du pays du territoire duquel se déroule l'arbitrage - ou du moins ou il est censé se dérouler - donne à celui-ci un cadre juridique, ou plus exactement le lui propose, car sa vocation à le régir est subsidiaire. C'est seulement en l'absence de règles autonomes tirées de la convention des parties et de la pratique, et à condition des parties et de la pratique, et à condition que les parties n'aient pas choisi une autre loi, que la loi du siège fournit à l'arbitrage les règles techniques qui lui permettent de se dérouler normalement. Telle est moins da tendance moderne des lois et des jurisprudences" (Suggestions pour accroître l'efficacité international des sentences arbitrales. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, n. 4. p. 667, 1998). 6 CARMONA. Carlos Alberto. Das Boas Relações entre os Juízes e os Árbitros. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, n.º 51, pp. 17-24, out. 1997. 7 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho, SILVA, Eduardo Silva da e GUERRERO, Luis Fernando. O Brasil como Sede de Arbitragens Internacionais - a capacitação técnica das câmaras arbitrais brasileiras" Revista de Arbitragem e Mediação, nº 34, São Paulo: RT, 2012, pp. 120-158 8 Ver, a esse respeito: Breves reflexões sobre a eleição de direito estrangeiro na arbitragem ...- Migalhas. Acesso em 23 nov. 2023. 9 A esse respeito, a doutrina se posiciona: "O princípio da eficiência está ligado a essa ideia de rapidez, presteza, utilidade, economicidade e acertamento de situações, devendo tudo isto nortear a condução dos processos. Assim, o princípio constitucional da eficiência no processo civil é um gênero que se subdivide em quatro aspectos, ou quatro subprincípios, cada qual revelando uma das facetas do valor eficiência no processo civil; são eles: o princípio da celeridade, o princípio da efetividade, o princípio da economicidade (ou economia processual) e o princípio da segurança jurídica". GONÇALVES FILHO, João Gilberto. O Princípio Constitucional da Eficiência no Processo Civil. Tese (Direito Processual), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 37-38. 10 Nesse sentido, art. 34, parágrafo único da Lei de Arbitragem dispõe: "Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional". 11 Segundo a pesquisa: "10. Para os contratos em geral, pode-se dizer que a probabilidade de anulação de uma sentença arbitral hoje nas principais câmaras arbitrais da cidade de São Paulo é de 1,5%". Fonte: Processos relacionados à Arbitragem (cbar.org.br). Acesso em 23 nov. 2023. 12 "11. As varas especializadas da comarca de São Paulo atuam de forma complementar e oferecendo suporte à jurisdição arbitral através da análise de pedidos de medidas de urgência pré-arbitrais, da instituição de juízos arbitrais e do cumprimento de sentenças arbitrais, respeitando o mecanismo de resolução de controvérsias escolhido pelas partes e anulando sentenças arbitrais de forma excepcional". Fonte: Processos relacionados à Arbitragem (cbar.org.br). Acesso em 23 nov. 2023. 13 Faz-se referência aqui ao PL 3.293/2021, também conhecido como "PL Antiarbitragem". 14 Faz-se referência aqui à ADPF 1050, convertida em ADI 1050. STF. ADPF 1050. Processo No 0071872-83.2023.1.00.0000. Rel. Min. Alexandre De Moraes. DJe em 29/03/2023. 15 High Court of Justice of England and Wales [2023] EWHC 2638 - 23 Oct 2023. Demais dados a respeito desse caso podem ser encontrados em: Global Arbitration Review. Acesso em 26 nov. 2023.
terça-feira, 31 de outubro de 2023

O mau uso do direito comparado na arbitragem

Recentemente completou-se vinte e sete anos da promulgação da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). Durante esse período, pode se dizer, com segurança, que o Brasil é um dos mais importantes players da arbitragem no mundo. Evidentemente, não se pode descartar a evolução da prática, das orientações jurisprudenciais e, claro, dos inúmeros trabalhos acadêmicos que surgem a cada ano, sempre pensando no aprimoramento do instituto. Um ponto de apoio à eventual reforma legislativa, seja para incluir ou excluir determinada regra, é a ciência do direito comparado. Matéria raramente explorada na academia jurídica brasileira, a força e importância do direito comparado conduzem a doutrina a classificá-lo como sendo mais do que um método, mas uma verdadeira disciplina jurídica autônoma1. Réné David já dizia que que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o direito nacional2. Por outro lado, é sempre importante lembrar que a ferramenta do direito comparado deve ser utilizada respeitando-se os aspectos culturais3 de modo a que se alcance uma melhor compreensão do direito pátrio. No caso objeto dessas linhas, deve-se analisar regras dispostas em corpo estrangeiro de normas para fins de melhor compreensão ou mesmo mudança do nosso sistema. O dito sistema, que, funciona em sua plenitude, é o sistema arbitral brasileiro. Com efeito, tem-se que sua concepção objetivou a estruturação de processo concentrado e sistêmico4, de início, meio e fim, com regras fundadas na ampla liberdade e autonomia das partes5. De forma oportuna, o anteprojeto de aludida lei, capitaneado por Carlos Alberto Carmona, Pedro A. Batista Martins e Selma Ferreira Lemes, se baseou em experiências alheias, isto é, no direito comparado. No caso do Brasil, a base de apoio para a redação do anteprojeto de lei foi a antiga lei espanhola de arbitragem, bem como a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da UNCITRAL de 1985 ("Lei Modelo"). No âmbito de um estudo a respeito de eventual mudança legislativa, aprimoramento de um sistema ou mesmo interpretação de uma regra contratual, o comparatista deve ser justo e isento. É preciso avaliar, de forma aprofundada, convergências e divergências entre diversos ordenamentos para que se encontre uma solução adequada. A mera extração de uma regra isolada de um conjunto normativo alienígena para implementação no ordenamento jurídico doméstico foge ao correto exercício comparativo6. Como diria Rodolfo Sacco, uma das maiores referências do direito comparado, "o comparatista [...] não pode transferir uma noção de um sistema estranho ao próprio sistema conceitual sem tomar certas precauções. Ele deve, isto sim, buscar nas regras operacionais os denominadores comuns dos diversos sistemas conceituais, para avaliar divergências e concordâncias"7. Na arbitragem, seja ela doméstica ou internacional, são inquestionáveis os benefícios da adoção de uma perspectiva comparatista. Exemplo maior disso é a própria legislação brasileira, elaborada com cautela, ciosa da verdadeira natureza do sistema arbitral e, por evidente, de sua autonomia, e do contexto em que inserido o Brasil no plano do direito processual e, certamente, no plano da cultura do conflito8. Nesse plano, tem-se que uma das principais características do sistema arbitral brasileiro é a impossibilidade de revisão de mérito da sentença arbitral. Assim está previsto no art. 18 da Lei de Arbitragem: "O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário". A vedação à revisão do mérito da decisão arbitral nada mais é do que tecnicidade concebida pelo legislador, em atenção aos aspectos jurídicos e culturais do Estado9 e, nessa seara, tem a sua razão de ser10. No entanto, no alto de seus vinte e sete anos de existência e de seu inegável sucesso, a arbitragem brasileira tem sido alvo de discussões que pretendem a inclusão de um item como forma de subterfúgio para rever, de forma indevida, o mérito da sentença arbitral: a ordem pública. A ordem pública, é, com efeito, um dos mais difíceis temas enfrentados no direito e deve ser analisada com cautela. Segundo a lição do saudoso Jacob Dolinger: "Diríamos que o princípio da ordem pública é o reflexo da filosofia sócio-política imanente no sistema jurídico estatal, que ele representa a moral básica de uma noção e que protege as necessidades econômicas do Estado. A ordem pública encerra, assim, os planos filosófico, político, jurídico, moral e econômico de todo Estado constituído"11. A tese de que a ordem pública (em sentido genérico) deveria ser abarcada como uma das hipóteses de anulação de sentenças arbitrais não se sustenta. A uma porque, não há lacuna legislativa neste ponto. O art. 32 da Lei de Arbitragem possui um rol taxativo para hipóteses de anulação da sentença arbitral no âmbito doméstico e neles não se encontra o item "ordem pública". Mas isso não impede de se chegar à conclusão de que o princípio da ordem pública está presente naquela disposição. Esse é o entendimento de Carlos Alberto Carmona, para quem: "A ação anulatória implantada em nosso sistema não se presta, bem se vê, a rever a justiça da decisão ou o fundo da controvérsia, mas apenas a desconstituir os efeitos da decisão arbitral por inobservância ou infração de matérias de ordem pública que o sistema legal impõe como indispensáveis à manutenção da ordem jurídica. Estas matérias do art. 32 "sintetizam o Estado na administração da justiça"12. O pensamento acima é respaldado por Ricardo de Carvalho Aprigliano, para quem: "Na maior parte das vezes, pode-se afirmar com relativa facilidade que tais normas se enquadram no conceito mais geral de "interesse público", aspecto fundamental e que determina os contornos da ordem pública em todas as suas ramificações. Tais normas regulam relações que transcendem ao mero interesse das partes, para assumir uma faceta mais ampla, que interessa à ordem pública"13. Ademais, o art. 39, inciso II da Lei de Arbitragem, aliado à Convenção de Nova York sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958, ratificada pelo Brasil em 2002 ("CNY")14, prevê a violação da ordem pública como fator de não reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira em território brasileiro. É evidente que a Lei de Arbitragem fez constar a disposição segundo a qual a sentença arbitral estrangeira não pode ser homologada se violar a ordem pública nacional, regra idêntica encontrada na CNY. O objetivo dessa regra é justamente impedir a irradiação dos efeitos de julgado estrangeiro que possam ameaçar relevantes valores de justiça e de moral no Estado receptor. É equivocada a tese segundo a qual a CNY, por estar incorporada ao direito brasileiro autorizaria a anulação de sentenças arbitrais nacionais por suposta violação, de forma genérica, à ordem pública. Além de constituir mera tentativa de uso artificial do princípio da ordem pública para rever o mérito de decisões arbitrais, tal uso é distorcido, uma vez que, ainda no plano local, a ordem pública é vista a partir de seu primeiro grau, em que são normalmente vedadas as convenções privadas que derroguem valores jurídicos ou morais inderrogáveis pelo ordenamento local15. A tese baseada no uso do direito comparado, em especial a CNY e a Lei Modelo (a qual, repita-se, serviu de base para a construção da Lei de Arbitragem) para justificar a possibilidade de anulação de sentenças arbitrais por violação à ordem pública é, além de atécnica, injusta do ponto de vista intelectual e científico. É certo que a referida Lei Modelo dispõe em seu art. 36, (1), (b), (ii) que uma das hipóteses é a violação à ordem pública. Mas, conforme bem colocado na "explanatory note" do referido corpo de normas, a ordem pública referida deve ser entendida através do prisma da justiça processual16. Não há espaço na Lei Modelo que se rediscuta o mérito da decisão em razão da violação à ordem pública. Ainda que se pense numa eventual diferença de tratamento de efeitos de uma sentença no âmbito doméstico e no internacional, nota-se que a opção do legislador foi clara: a ordem pública, vista sob o plano internacional, é a que deve imperar para fins, de reconhecimento e execução de uma sentença arbitral estrangeira no Brasil. Para fins domésticos, a menção à ordem pública como fator de anulação da sentença arbitral não vinga e nada mais é do que o indevido uso do direito comparado como subterfúgio da parte sucumbente na arbitragem para tentativa de reversão do julgado e que deve ser repelida pelo Poder Judiciário. Em conclusão, o objetivo dessas breves linhas é alertar o leitor, em especial magistrados que se deparam com ações anulatórias de sentenças arbitrais frívolas, quanto ao mau uso do direito comparado no sentido de convencer o julgador sobre o tema da violação à ordem pública para fins de se justificar anulação da sentença arbitral. Trata-se de evidente indução em erro, a qual deve ser combatida com vigor pelos magistrados brasileiros. Os melhores remédios para que tal frivolidade não ocorra são: ou se litiga na arbitragem com observância às regras do devido processo legal e em respeito à imutabilidade das decisões arbitrais, participando-se ativamente do caso, desde a apresentação do requerimento de arbitragem, passando-se pela composição do tribunal, pela fase postulatória e instrutória com a ampla possibilidade de apresentação de seu caso; ou, simplesmente, não adote a arbitragem (que não é obrigatória) para fins de resolução de conflitos de determinada avença. __________ 1 Sobre o objetivo do direito comparado, na condição de disciplina autônoma do direito, afirmam Mary Ann Glendon, Michael W. Gordon e Christopher Osakwe: "Comparative law then, as an academic discipline in its own right, is a study of the relationship, above all the historical relationship, between legal systems or between rules of more than one system" (Comparative Legal Traditions. Saint Paul: West Publishing, 1985. p. 7) 2 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4 3 Nesse sentido, a lição de Pierre Legrand: "(...) se o comparatista brasileiro quer compreender uma questão de Direito inglês, ele não pode se contentar em analisá-lo de um ponto de vista positivista. Ele também deve medi-lo a partir do plano cultural (...) Somente uma abordagem culturalista permite fornecer elementos para uma intepretação elucidativa do Direito a fim de se chegar a uma melhor compreensão" (Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018, p. 66-67). 4 Sobre o tema, ver, por todos: PARENTE. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. 5 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 29 out. 2023. 6 É digno de nota, a esse respeito, o trecho do prefácio da obra de Pierre Legrand, elaborada por Daniel Wunder Hachem: "Nesse sentido, os estudos jurídicos, comparativos não devem ter como escopo unificar ou uniformizar os diferentes ordenamentos a partir da construção forçada, artificial e fictícia de supostas similaridades, mas sim conhecer as especificidades da realidade do outro, perceber o que ele apresenta de diferente em sua cultura jurídica, e valer-se dessa experiencia para refletir criticamente a respeito d "seu "próprio Direito - não com o propósito de realizar "transplantes jurídicos" de um sistema  a outro de forma automática, acrítica e descontextualizada, mas com o intuito de criar soluções jurídicas próprias ao Direito nacional, compatíveis com a cultura jurídica na qual ele está inserido, a partir de uma inspiração suscitada por meio da escuta da vivência do outro" (Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018, p. 15). 7 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 67). 8 O respeito à cultura local no momento da comparação jurídica é bem explicada por Pierre Legrand: "Ele [o comparatista] reinsere a singularidade jurídica em sua própria narrativa, na comparação que ele mesmo constrói. Mas pelo menos ele deve, ao longo da sua intervenção, reconhecer e respeitar a singularidade de cada manifestação do Direito, organizando e ao mesmo tempo preservando os vestígios culturais que lá "existem" (Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018, p. 93). 9 A esse respeito, aduz Ricardo Aprigliano: "Mas a este rol podem ser adicionadas outras construções que, não obstante respeitáveis, não representam, sob a perspectiva desta tese, exemplos corretos de verdadeiros princípios jurídicos. A observância da ordem pública ou aos bons costumes, a vedação à revisão do mérito, a autonomia da cláusula compromissória ou mesmo a competência-competência, são exemplos do que se pode denominar de inflação principiológica. Não porque não tenham relevância no estabelecimento de limites e parâmetros ao processo jurisdicional, mas porque a sua compreensão como princípios faz surgir o risco de uma excessiva permissividade para o afastamento de regras concretas, ou para que a partir dessas ideias outros princípios sejam afastados, pelo exercício típico de ponderação que é próprio do conflito entre princípios. Alguns deles, ademais, não possuem o grau de generalidade ou a natureza fundante que caracteriza os princípios. Ao contrário, são regras técnicas concebidas pelo legislador com base em juízos de conveniência, integram decisões políticas dos legisladores e não se traduzem em elementos sobre os quais o sistema jurídico esteja alicerçado" (Fundamentos Processuais da Arbitragem. São Paulo: EDC, 2023, p. 176-177). 10 Carlos Alberto Carmona, a esse respeito, aduz: "Os ordenamentos jurídicos escolhem métodos diferentes de reportar-se à ordem pública, uns mais explícitos, outros menos evidentes. Todos, de qualquer forma, têm a mesma preocupação de evitar que entre em circulação qualquer laudo que ofenda princípios importantes para a organização da vida em sociedade (princípios que, desnecessário dizer, variam no tempo e no espaço e dependem de escolhas políticas e sociais mutantes e variáveis, o que desde lofo já mostra a dificuldade de definir o que seja, afinal de contas, a ordem pública" (Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 426). 11 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 9. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 394. 12 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 424. 13 APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 7. 14 Art. 5º, 2, item "b" da CNY. 15 A esse respeito ver DOLINGER, Jacob. A evolução da ordem pública no direito internacional privado. 1979. Tese (Cátedra) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 40-41. 16 No original: "(b) Grounds for setting aside (.) 46. As a further measure of improvement, the Model Law lists exhaustively the grounds on which an award may be set aside. This list essentially mirrors that contained in article 36 (1), which is taken from article V of the New York Convention. The grounds provided in article 34 (2) are set out in two categories. Grounds which are to be proven by one party are as follows: lack of capacity of the parties to conclude an arbitration agreement; lack of a valid arbitration agreement; lack of notice of appointment of an arbitrator or of the arbitral proceedings or inability of a party to present its case; the award deals with matters not covered by the submission to arbitration; the composition of the arbitral tribunal or the conduct of arbitral proceedings are contrary to the effective agreement of the parties or, failing such agreement, to the Model Law. Grounds that a court may consider of its own initiative are as follows: non-arbitrability of the subject-matter of the dispute or violation of public policy (which is to be understood as serious departures from fundamental notions of procedural justice)". Fonte: UNCITRAL Model Law on International Commercial Arbitration 1985, With amendments as adopted in 2006. Acesso em 28 out. 2023.
Tema que é raramente discutido, mas que se revela de importância ímpar para os players do agronegócio, como advogados, in-house counsels, magistrados e profissionais que ocasionalmente exercem a função de árbitro, diz respeito à arbitragem internacional de commodities agrícolas. Talvez a dita raridade se dê em razão de tal tipo específico de solução de controvérsias ocorrer exclusivamente em território britânico (as razões dessa dita "exclusividade" serão exploradas ao longo dessas linhas). Mas a importância de trazer tal assunto à comunidade arbitral brasileira se justifica em razão das peculiaridades dos diversos sistemas de arbitragem internacional de commodities agrícolas e a eventual necessidade de homologação e cumprimento de sentenças arbitrais estrangeiras advindas de tais sistemas, em território brasileiro. As disputas relativas à compra e venda de comodities agrícolas comumente envolvem temas como (i) inadimplementos contratuais, como atraso ou recusa na entrega da mercadoria, falta de pagamento em razão da flutuação de taxas cambiais ou do valor do produto, inter alia, e (ii) divergência sobre a qualidade/quantidade do produto1. Por iniciativa da bolsa de Chicago ("Chicago Board of Trade"), considerada a maior bolsa de opções de contratos futuros no mundo, e com o intuito de se criar um ambiente que visasse à estabilidade dos negócios travados no âmbito do mercado internacional de commodities agrícolas, diversas instituições foram criadas em território inglês, cada uma com suas especificidades e especialidades. Algumas podem ser aqui listadas: a The Grain and Feed Trade Association ("GAFTA"); a The Association for International Trading in Oils, Fats and Oilseeds ("FOSFA"); a The International Cotton Association ("ICA") e a The Refined Sugar Association ("RSA"), dentre outras. A origem britânica dessas instituições é bem explicada por Frederico Singarajah e Manuela Nascimento: "A Inglaterra, e, portanto, Londres são hoje considerados o centro do mercado de comércio de produtos agropecuários e direito marítimo. A trajetória inglesa de seu desenvolvimento socioeconômico, geopolítico e jurídico correm e paralelo as razões pela qual Londres se encontra hoje nesta posição privilegiada. Diante de todo o exposto, encontra-se a justificativa para abordagem de Londres como epicentro mundial da resolução de conflitos, com foco em apresentar sua vantagem histórica e mostrar os dados que comprovam a situação ao comparar a capital da Inglaterra com outras jurisdições (...)"2.  Entre as instituições mais tradicionais em matéria de arbitragem internacional de commodities, pode-se tomar como exemplo a GAFTA, criada em 1971, a partir da fusão entre a Cattle Food Trade Association e a London Corn Trade Association. As regras de arbitragem no âmbito da GAFTA se encontram dispostas na GAFTA Arbitration Rules nº 125, e, entre as diversas especificidades de tal sistema, algumas podem ser aqui listadas3: A sede da arbitragem deve ser, necessariamente, Londres, Inglaterra; A lei aplicável ao mérito ao contrato e, pois, ao mérito da arbitragem, deverá ser a lei inglesa; Há prazos limite para a instauração da arbitragem, que variam de 21 (vinte e um) dias a 1 (um) ano; Os árbitros precisam ser membros da GAFTA ou empregados de membros da GAFTA; Apesar de não ser proibido, encoraja-se a não utilização de advogados durante o curso da arbitragem, tendo os comerciantes o controle do procedimento4; Possibilidade de interposição de recurso contra a sentença arbitral, a ser examinado por colegiado arbitral firmado no próprio âmbito da GAFTA; Possibilidade de consolidação de procedimentos para julgamento conjunto ("String Arbitration") envolvendo partes diversas, participantes de diversas cadeias de contratos que contenham o mesmo objeto. Em outras instituições, como as já mencionadas FOSFA, ICA e RSA, certas questões são ainda mais peculiares e sensíveis, como, por exemplo, a possibilidade de julgamento das demandas arbitrais por apenas dois árbitros e a possibilidade do proferimento de sentenças desprovidas de fundamentação5. Os pontos acima elencados são, sem dúvida, importantes para o bom funcionamento do sistema de resolução de disputas no mercado internacional de commodities agrícolas, que prima pela velocidade, eficiência e qualidade, e o bom funcionamento do comércio. No entanto, é preciso levar em consideração os eventuais riscos da não recepção de julgados estrangeiros, sob a égide de tais instituições, em território brasileiro. A esse respeito, é preciso levar em consideração que "[a]s hipóteses para que seja denegada a homologação de uma sentença arbitral estrangeira podem ser agrupadas em quatro grandes grupos: (i) vícios na celebração da convenção de arbitragem; (ii) vícios procedimentais; (iii) vícios da sentença arbitral; e (iv) questões cognoscíveis ex officio"6.  Adiciona-se, a tais elementos, o da ordem pública. Seria, em alguma hipótese, contrária à ordem pública (seja nacional, seja a internacional), sentenças arbitrais estrangeiras não motivadas? Ou sentenças que aplicassem o prazo (em tese, prescricional) para exercício das pretensões diverso daqueles adotados no Brasil? Ou sentenças proferidas em processos arbitrais em que as partes litigaram sem a presença de advogados? Em princípio, a resposta é negativa. Com efeito, para que a ordem pública possa ser considerada uma barreira à entrada de atos estrangeiros no Brasil, seria, na clássica visão de Jacob Dolinger, que tal ato estrangeiro tivesse caráter chocante ou perturbador à nossa ordem jurídica7. De fato, os exemplos acima, não parecem, em princípio, ter características chocantes ou perturbadoras. Inclusive, no que se refere ao reconhecimento de sentenças estrangeiras desprovidas de motivação, o próprio Superior Tribunal de Justiça ("STJ") já teve a oportunidade de decidir pela sua validade. Nesse sentido, decidiu-se na Sentença Estrangeira Contestada nº 8.267/EX: "HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. DIVÓRCIO. CONTESTAÇÃO. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO. FUNDAMENTOS DA SENTENÇA. (...) Questionamento acerca dos alimentos fixados e da ausência de fundamentação da sentença que desbordam do mero juízo de delibação, não cabendo ao Superior Tribunal de Justiça o exame de matéria pertinente ao mérito, salvo para, dentro dos estreitos limites, verificar eventual ofensa à ordem pública e à soberania nacional, o que não é o caso. Sentença homologada"8. A ausência de motivação de sentenças proferidas nas arbitragens de commodities agrícolas, de fato, não parece afigurar como elemento perturbador da ordem pública brasileira9, devendo ser levado em consideração que tal elemento é absolutamente normal em tais disputas em vista de seu caráter eminentemente técnico. Não reconhecer uma sentença arbitral estrangeira pela ausência de motivação equivaleria a tornar letra morta o sistema de arbitragem internacional de commodities, que pode envolver partes brasileiras. Os demais pontos sensíveis acima elencados, (tempo limite para exercício de determinada pretensão e ausência de advogados) igualmente parece não constituir elemento chocante ou perturbador da ordem pública brasileira, seja do ponto de vista interno ou internacional. A ausência de advogados nas arbitragens internacionais de commodities não é apenas considerada prática normal, mas, inclusive, desencorajada (ao menos em primeira instância). A lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), não exige que as partes sejam representadas por advogados em seus litígios10. No que tange à questão do prazo limite, apesar de ser mais controversa11, não parece ser grave a ponto de não reconhecer o prazo ditado pelo regulamento estrangeiro. Com efeito, reconhecer e adotar prazo prescricional menor do que o previsto, é benéfico à estabilidade das relações jurídicas pois faz cessar com maior brevidade o estado de incerteza12. Grave, seria, reconhecer prazo superior ao previsto na lei brasileira, o que seria, em princípio, contrário à ordem pública13, eis a prescrição constitui instituto criado para garantir a estabilidade das relações jurídicas, e é revestido pela natureza de ordem pública14. Nesse sentido, frisa-se que sentenças oriundas das instituições supramencionadas já foram homologadas pelo STJ e recepcionadas sem ressalvas no ordenamento jurídico nacional. No primeiro caso, de origem de uma arbitragem GAFTA, a corte reconheceu a validade da sentença arbitral proferida, a despeito das reclamações da defesa, de que o contrato, em que continha a cláusula compromissória, não havia sido assinado pelas partes, mas apenas pela corretora: "HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA PROFERIDA NA INGLATERRA. VALIDADE DO CONTRATO INSTITUIDOR DA CLÁUSULA ARBITRAL. CITAÇÃO REALIZADA NOS TERMOS DA CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. VALIDADE. [...] Trata-se de pedido de homologação de sentença arbitral proferida em 20/8/2018 pelo Tribunal Arbitral do Grain and Trade Association (GAFTA), Londres, Inglaterra [...] Nessa esteira, tendo o GAFTA concluído regularmente o processo arbitral, é forçoso concluir que a análise acerca da validade do contrato de compra e venda e da cláusula compromissória por ele instituída foi realizada de forma positiva, não tendo sido constatada nenhuma irregularidade quanto à assinatura da parte, o que, repita-se, está dentro da competência daquele órgão jurisdicional e, portanto, é tema infenso à apreciação judicial, mormente em sede de processo homologatório, que é vinculado apenas à análise do preenchimento dos requisitos formais previstos em lei. [...]"15.  Em caso ainda mais recente, o STJ reconheceu sentença arbitral proferida sob a égide da RSA em que a defesa se baseou, dentre outros, na tese de parcialidade dos julgadores por serem membros da RSA, característica, como visto, inerente às arbitragens setoriais no setor de commodities agrícolas. Confira-se:  "HOMOLOGAÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA Nº 4174 - EX - Trata-se de Pedido de Homologação de Sentença Estrangeira oriunda do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, proferida nos autos do Processo Arbitral RSA/ARB 420, que tramitou perante The Refined Sugar Association, que condenou a Usina Santas Fé S/A a pagar as despesas incorridas pela Sucden com o procedimento arbitral. [...]A tese de parcialidade dos julgadores do tribunal arbitral, em razão de as empresas do grupo da requerente e do escritório que a representou serem membros do RSAL deve ser rejeitada, porque desacompanhada de elementos concretos que demonstrem tal parcialidade. Observa-se que a parte requerida instaurou o procedimento arbitral, sem questionar o painel de árbitros escolhidos. [...] Ante o exposto, nos termos do art. 216-K, parágrafo único, do RISTJ, defiro o Pedido de Homologação da Sentença Estrangeira".16 De um modo geral, apesar das potenciais sensibilidades acima listadas, é preciso que se tenha em mente que a arbitragem internacional de commodities agrícolas está inserida num sistema em que as suas vantagens superam os riscos. As peculiaridades de tal sistema, descritas de forma bem resumida nessas linhas demonstra que tal sistema, ao fim e cal cabo, foi construído para preservar a estabilidade do mercado de commodities agrícolas, gerando previsibilidade aos comerciantes e proteção de seus negócios. __________ 1 GRION, Renato S. ZANELATO, Thiago Del Pozzo. Homologação de sentenças arbitrais estrangeiras relacionadas ao setor de commodities agrícolas no Brasil. In GALLI, Francisco, Favacho, Frederico e REIS, Marcos Hokumura. Gestão de Conflitos no Agronegócio. Londrina, Thoth, 2021, p. 230. 2 SINGARAJAH, Frederico. NASCIMENTO, Manuela H. A. Londres - O epicentro mundial de resolução de conflits de agronegócios. In GALLI, Francisco, Favacho, Frederico e REIS, Marcos Hokumura. Gestão de Conflitos no Agronegócio. Londrina, Thoth, 2021, p. 34. 3 Para uma referência completa a respeito do assunto ver FAVACHO, Frederico. Aspectos Internacionais do direito do agronegócio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 46-59. 4 BADDAUY, Letícia de Souza. Arbitragem Internacional nos contratos de exportação de commodities entendendo e refletindo sobre a arbitragem setorial da Grain and feed Trade Association - GAFTA. In GALLI, Francisco, Favacho, Frederico e REIS, Marcos Hokumura. Gestão de Conflitos no Agronegócio. Londrina, Thoth, 2021, p. 201. 5 A esse respeito, informam Renato S. Grion e Thiago Del Pozzo Zanelato a regras correspondentes nos regulamentos da RSA e da ICA. Assim, dispõe o art. 20 do Regulamento a RSA: "All arbirations decided under the Short Form Arbitration Procedure shall be decided on documents alone. All Awards shall be made without reasons and shall be published within five working days of the tribunal's final meeting. By adopting this procedure the parties are deemed to have agreed to waive all rights of appeal"; já a Norma 350 do Regulamento da ICA dispõe: "2. Uma Sentença de qualidade não apresentará as razões para a Sentença" (Homologação de sentenças arbitrais estrangeiras relacionadas ao setor de commodities agrícolas no Brasil. In GALLI, Francisco, Favacho, Frederico e REIS, Marcos Hokumura. Gestão de Conflitos no Agronegócio. Londrina, Thoth, 2021, p. 326). 6 GRION, Renato S. ZANELATO, Thiago Del Pozzo. Homologação de sentenças arbitrais estrangeiras relacionadas ao setor de commodities agrícolas no Brasil. In GALLI, Francisco, Favacho, Frederico e REIS, Marcos Hokumura. Gestão de Conflitos no Agronegócio. Londrina, Thoth, 2021, p. 234. 7 Jacob Dolinger, a respeito do assunto, afirma que "poderá haver um instituto estrangeiro tão chocante e que com tamanha intensidade represente um escândalo para o foro, que a sua ordem pública não admita sequer reconhecer uma situação já constituída e consumada" (A evolução da ordem pública no direito internacional privado. 1979. Tese (Cátedra) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 41) 8 SEC nº 8.267/EX, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, j. 20.11.2013. DJe 26.11.2013. 9 Ver, a respeito do assunto: É possível a homologação, pelo STJ, de sentença arbitral estrangeira sem fundamentação?. Acesso em 22 ser. 2023. 10 Ver, a esse respeito aqui. Acesso em 23 set. 2023. 11 Muito em razão do disposto no art. 192 do Código Civil, que dispõe: Art. 192. Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes. 12 Ver, a esse respeito, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 256. 13 Segundo Carpenter, as convenções que têm por finalidade o prolongamento do curso prescricional são inválidas, "porque importam em renúncia antecipada da prescrição" (Da prescrição. 3. ed. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1958. p. 161). Da mesma forma, entende Câmara Leal: "O que, a nosso ver, não é lícito é alongar o prazo da prescrição por convenção antecipada, isto é, no momento do contrato, antes de nascida a ação e iniciada a prescrição, porque esse alongamento equivaleria a uma renúncia prévia, proibida pela lei" (Da prescrição e da decadência. 2. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 66). 14 Nesse sentido, vale citar lição de Yussef Said Cahali, que, a respeito da natureza jurídica da prescrição extintiva, entende que, "quando se diz que a prescrição é de ordem pública, tem-se em mente significar que foi estabelecida por considerações de ordem social, e não no interesse exclusivo dos indivíduos. Ela, assim, existe independentemente da vontade daqueles a quem possa prejudicar ou favorecer. A lei que cria é rigorosamente obrigatória" (CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008. p. 19-20) 15 HDE nº 2.545, Rel. Min. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 29.06.2021, DJe 01.07.2021. 16 HDE nº 4.174, Rel Min. Ministro Herman Benjamin, j. 27.10.2022, DJe 18.11.2022.
Um dos temas mais discutidos nos últimos anos na arbitragem diz respeito do dever de revelação do árbitro. A importância de tal tema é tamanha que deu origem a diversos trabalhos acadêmicos, como artigos, dissertações de mestrado, uma delas publicada recentemente1. Entre as principais discussões havidas nos últimos anos na área arbitral, a que mais causou controvérsia, foi (e vem sendo) objeto de debates diz respeito ao aumento do escopo do dever de revelação, e as consequências advindas de sua eventual inobservância pelo árbitro no curso de uma arbitragem. Dois são os pontos mais relevantes nessa discussão: o primeiro, se a eventual ausência de revelação de determinado fato no curso de uma arbitragem acarretaria, automaticamente, a anulação da sentença arbitral. O segundo, se o fato não revelado seria capaz de comprometer a isenção do julgador, e por consequência, acarretar a anulação da sentença arbitral. Tais pontos foram tratados em recente decisão proferida pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP") nos autos da Apelação Cível nº 1116375-63.2020.8.26.01002, cuja ementa parcialmente se transcreve: "Apelação Ação anulatória de sentença arbitral com pedido de tutela de urgência Sentença que julgou improcedente o pedido inicial Inconformismo da autora Rol do artigo 32 da Lei nº 9.307/96 que é taxativo, de modo que a nulidade da sentença arbitral somente pode ser decretada quando caracterizada alguma das hipóteses nele previstas Pedido de declaração de nulidade de sentença arbitral que está fundamentada na violação do dever de revelação, e, por conseguinte, no desrespeito ao princípio da imparcialidade do árbitro (Lei nº 9.307/96, art. 21, §2º), a permitir, ao menos em tese, o reconhecimento da sustentada nulidade Além de adimplir a obrigação principal de julgar, o árbitro precisa cumprir outros deveres, sobretudo os deveres de independência, de imparcialidade e de revelação, considerados, ainda, os princípios que regem as relações privadas, neles incluídos a autonomia privada, a responsabilidade, a confiança e a boa-fé Confiança depositada na pessoa do árbitro que tem um papel importantíssimo no campo da arbitragem e ela somente pode ser garantida quando a relação estabelecida é transparente e bem esclarecida Dever de revelação que está previsto no artigo 14, §1º da Lei nº 9.307/96 Dever que perdura durante toda a arbitragem, de modo que, caso surja algum fato, durante o procedimento arbitral, que demande revelação, caberá ao árbitro revelá-lo, sob pena de macular a validade do procedimento arbitral Precedente do C. Superior Tribunal de Justiça (caso Abengoa) Ordenamento jurídico que estabelece que "qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" deve ser revelado pelo árbitro, tratando-se, pois, de um comando aberto e amplo, escolhido pelo legislador como tal, o qual deve ser analisado e esclarecido casuisticamente Atuação do advogado da parte e do árbitro na defesa da mesma sociedade em processo de aquisição do controle acionário da Eletropaulo contemporâneo ao procedimento arbitral em questão e ingresso formal, atípico e tardio do advogado da parte na arbitragem Fatos que corroboram a tese autoral no sentido de que o fato não revelado pelo árbitro denota "dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" Atuação do árbitro e do advogado da parte contrária em favor de uma mesma sociedade, em um processo societário de grande relevância, simultaneamente ao procedimento arbitral, gera, aos olhos da parte e de um terceiro razoável, forte desconfiança ou séria dúvida quanto à imparcialidade do árbitro Fato não revelado, de modo que a transparência do procedimento arbitral e a confiança depositada no árbitro restaram maculadas, a configurar a sustentada invalidade do procedimento arbitral, nos termos dos artigos 21, §2º e 32, inciso VIII da Lei nº 9.307/96 Sentença arbitral anulada Sentença recorrida parcialmente reformada Recurso provido em parte". Trata-se de mais uma ação anulatória de sentença arbitral baseada na ausência de revelação de fato, considerado relevante, pelo TJSP. Como bem resumido pelo voto convergente, apresentado pelo Desembargador Grava Brazil: "Assim, o conflito ora em exame diz com a interpretação sobre se os fatos alegados pela autora, a saber: (i) a atuação de árbitro L.A.C.R. e do advogado da parte O.Y., em uma bilionária operação societária, e (ii) a atuação simultânea, do árbitro N.E. e do advogado O.Y., em um organismo não estatal, CAF, de auto-regulamentação, deveriam ter sido revelados, no momento em que o advogado O.Y. passou a atuar no caso, em associação com os advogados da parte requerida PNA, e se essa não revelação caracterizaria quebra do dever de revelação e, portanto, fundamento passível de justificar a anulação da sentença arbitral". O juízo de primeira instância julgou improcedente a demanda anulatória, atingindo, em breve síntese, as seguintes conclusões: "Com efeito, o próprio autor disse que escritório que lhe patrocinou no procedimento arbitral, "M. F.", também atuou na referida operação societária. No mais, também há indicação de que manteve inúmeras relações com os árbitros nomeados (fls. 1341/1342), sem que isso fosse considerado, pela requerente, fato relevante a ser revelado e passível de causar dúvida sobre a imparcialidade dos árbitros.  Conclui-se, portanto, que o escritório contratado pelo autor tinha ciência da suposta relação entre Y. e R., pois atuou na mesma operação societária, e não arguiu a suposta nulidade no primeiro momento em que verificada, nos termos do art. 20 da LA, mas apenas após a prolação de sentença arbitral que lhe desfavorável.-]  Quanto à relação entre E. e Y., tem-se que ambos foram e/ou são membros efetivos do Comitê de Aquisições e Fusões.  Todavia, a indicação dos membros do referido Comitê é feita pelas entidades que o mantém, quais sejam, Associação Brasileira dos Mercados Financeiros, B3 e IBGC, não sendo possível concluir que a relação entre ambos se trata de afiliação, com fins negociais, tampouco de atuação profissional conjunta. (...) Assim, tais circunstâncias não são "atípicas", nem são capazes de ensejar dúvidas sobre a parcialidade dos árbitros" Ou seja, para os fins dessas linhas, o que mais importa discutir é se a não noticiada atuação de um dos advogados da causa e um dos árbitros componentes do painel arbitral em dita "vultosa"3 operação societária, além do fato de tais pessoas participarem de organismo privado de autorregulamentação, seria capaz de comprometer a isenção de membro do painel arbitral para julgamento da demanda. A resposta dada pelo TJSP foi positiva, concluindo, também, que a partes não possuem o ônus de investigar questões relativas ao árbitro, sendo de responsabilidade deste último noticiar nos autos, em qualquer fase do procedimento, fatos que aos olhos das partes, possam denotar dúvida justificada a sobre a sua independência e imparcialidade. Diversos são os pontos do respeitável acórdão que merecem comentários. Propõe-se, aqui, analisar e aprofundar apenas um: a qualificação do fato não revelado como suficiente para macular a validade da sentença arbitral. Conquanto o juízo a quo tenha entendido, com base apenas nas provas documentais encartadas nos autos, que os fatos não revelados não comprometeriam a isenção do julgador, o TJSP, com base no mesmo conjunto probatório, concluiu de forma diversa. Entretanto, um ponto merece reflexão. Será que a prova documental seria o único meio de comprovar que o fato não revelado seria capaz de macular a isenção do julgador e, por conseguinte, causar a invalidade da sentença arbitral? Meros documentos analisados sem o apoio de outras provas, seriam capazes de anular um processo trabalhado com provável esmero, minúcia e responsabilidade por partes bem assessoradas e profissionais julgadores de altíssimo gabarito? Pensa-se que não seria suficiente. O processo arbitral é conhecido por ser concentrado em etapas e possuir início, meio e fim4. O fim se dá com a prolação da sentença arbitral, a qual não comporta rediscussão, nos termos do art. 18 da Lei de Arbitragem. Por ser um processo concentrado, as partes envolvidas, que escolheram a arbitragem como método de resolução de suas eventuais controvérsias, devem saber escolher estratégica e cuidadosamente os membros do tribunal arbitral, participar de forma ativa e coerente durante o processo, expor o seu caso com a devida minúcia, produzir provas capazes de suportar seus pleitos e cumprir a decisão final que advier. Trata-se de elementos que devem ser cuidadosamente considerados por aquele que, conscientemente, escolhe a arbitragem como método de resolução de seus litígios. O remédio previsto no art. 32 da Lei de Arbitragem é somente aplicável em casos muito atípicos e rigorosamente nas hipóteses taxativas ditadas pela referida disposição. No caso ora discutido, o juízo de primeira instância valorou a prova documental produzida pelas partes e chegou à conclusão de que o pleito anulatório não prosperava. De forma objetiva aquele juízo, com base nas provas colacionadas aos autos, entendeu que "o escritório contratado pelo autor tinha ciência da suposta relação entre Y. e R., pois atuou na mesma operação societária, e não arguiu a suposta nulidade no primeiro momento em que verificada, nos termos do art. 20 da LA, mas apenas após a prolação de sentença arbitral que lhe desfavorável". Trata-se de decisão tomada de forma segura, com apoio no art. 20 da Lei de Arbitragem - cujo intento é dar segurança jurídica ao processo arbitral -, e principalmente, com base nas provas, em especial juntadas pela parte autora da ação anulatória, a quem pertencia o ônus de provar que o processo arbitral em julgamento estaria eivado de vícios. O TJSP, ao concluir que que os fatos não revelados pelos árbitros seriam relevantes e de necessária revelação na arbitragem, em face de seu potencial para suscitar dúvida razoável sobre a imparcialidade e independência que se pretende do árbitro, deixou de seguir a sistemática do ônus probatório prevista no Código de Processo Civil ("CPC").  Verificou-se, no caso, simples externalização de um juízo valorativo a respeito do fato não revelado, a qual foi tida como suficiente para reverter a decisão de primeira instância. Deixou o TJSP de considerar todos os elementos que permeiam o caráter concentrado do processo arbitral, e, em benefício da parte sucumbente na arbitragem, ignorando a valoração probatória alcançada pelo juízo a quo. Entende-se que o TJSP poderia ter se debruçado melhor nos aspectos probatórios a respeito do chamado fato não revelado, para julgamento da demanda. Nada impediria, por exemplo, que, dentro de seus poderes instrutórios, o TJSP, no mínimo, determinasse a conversão do julgamento do feito em diligência5-6, de modo que se colhessem mais provas e contraprovas7 a respeito do dito fato não revelado, como a colheita de depoimento dos próprios membros do tribunal arbitral, e outras pessoas envolvidas. Com isso poderia ter sido alcançada melhor elucidação do fato não revelado e do impacto da não revelação, especialmente diante da afirmação feita de que "se ambos [leia-se, advogado e árbitro] foram contratados para defender os interesses da Enel perante a CVM, não poderiam fazê-lo sem sinergia e sem definirem e comunicarem as respectivas estratégias". Tal ponto, em especial a dita "sinergia" poderia ser mais bem elucidado mediante a tomada de prova oral e de forma eficiente, uma vez que o tribunal ad quem simplesmente determinaria a baixa dos autos ao juízo de primeira instância para a produção da prova8 e julgaria o feito mais bem instruído.  Mas, ao invés de reconstruir os fatos9, o TJSP simplesmente inferiu tal questão, em detrimento da investigação mais aprofundada a respeito do assunto. Um trabalho de anos realizado não pode ser perdido por uma simples inferência, ainda mais quando cabia ao autor da demanda anulatória o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito, o que não fora feito, conforme a sentença que julgou improcedente a ação anulatória. A metodologia de produção probatória prevista no sistema processual civil brasileiro deve imperar para a elucidação dos fatos. Em especial quando o que se está em jogo é complexo processo arbitral, o qual foi escolhido pelas próprias partes contendentes, as quais provavelmente incorreram em razoáveis dispêndios financeiros com tal demanda. É a característica concentrada do processo arbitral - de início, meio e fim - que não pode ser olvidada pelo julgador. É preciso que se tenha sensibilidade e consciência ao verificar quando a parte sucumbente na arbitragem tenta se valer de todo e qualquer meio para não cumprir eventual decisão que lhe condenou. __________ 1 MARQUES, Ricardo Dalmaso. O Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018. 2 TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível nº 1116375-63.2020.8.26.0100, rel. Des. Maurício Pessoa, j. 1º de agosto de 2023. 3 Assim está dito no voto convergente, de lavra do Desembargador Grava Brazil: "Destaca-se, inicialmente, que todos os fatos mencionados são incontroversos, ou seja, inquestionável que houve a atuação do advogado e do árbitro referidos em vultosa operação societária, bem como que o advogado e o árbitro mencionados integraram importante organismo privado de auto-regulamentação". 4 Ver, a esse respeito: Processo arbitral: início, meio e fim - Migalhas. Acesso em 20 ago. 2023. 5 Previsto no art. 938, § 3º do CPC: Reconhecida a necessidade de produção de prova, o relator converterá o julgamento em diligência, que se realizará no tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, decidindo-se o recurso após a conclusão da instrução. 6 No mesmo sentido já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça (ainda que sob a égide do Código de Processo Civil de 1973: "PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ALEGAÇÃO DE ERRO MÉDICO. JUIZ QUE DETERMINA A BAIXA DOS AUTOS PARA REALIZAÇÃO DE NOVAS PROVAS. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO E DA VERDADE REAL. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. O artigo 130 do CPC permite ao julgador, em qualquer fase do processo, ainda que em sede de julgamento da apelação no âmbito do Tribunal local, determinar a realização das provas necessárias à formação do seu convencimento, mesmo existente anterior perícia produzida nos autos. 2.Contudo, não é possível ao Julgador suprir a deficiência probatória da parte, violando o princípio da imparcialidade, mas, por óbvio, diante da dúvida surgida com a prova colhida nos autos, compete-lhe aclarar os pontos obscuros, de modo a formar adequadamente sua convicção. 3. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ, Quarta Turma, REsp Nº º 906.794 - CE, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 07.10.2010. 7 A esse respeito, entende Zulmar Duarte: "Na produção da prova deve ser observado todo o regramento inerente ao meio de prova deferido, principalmente é de ser atendido irrestritamente o contraditório na sua produção, possibilitando inclusive eventual contraprova" (GAJARDONI, Fernando da Fonseca, DELLORE, Luiz, ROQUE, André Vasconcellos e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Forense, 2022, p. 1.367). 8 Ainda, Segundo Zulmar Duarte: "O §3 o art. 938 possibilita que o próprio tribunal, diretamente, ou através de carta de ordem (arts. 236, §2º, e 237), colha o resultado probatório e, posteriormente, aprecie o recurso. De fato, temos aqui uma mitigação ao duplo grau, ne medida em que a prova a ser produzida será diretamente avaliada pelo tribunal" (GAJARDONI, Fernando da Fonseca, DELLORE, Luiz, ROQUE, André Vasconcellos e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Forense, 2022, p. 1.367). 9 A esse respeito, leciona Ricardo de Carvalho Aprigliano: "Em regra, porque os fatos são anteriores ao processo, o que se realiza nos autos é a sua reconstrução. Afinal, o juiz parte de uma "institucionalizada ignorância" acerca dos fatos, razão pela qual o processo precisa ser dotado dos adequados meios para permitir a ele o conhecimento e a demonstração dos fatos relevantes para o julgamento (...)". (APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Comentários ao Código de Processo Civil. Das Provas: disposições gerais - V. VIII, T. I. (coord. GOUVÊA, José Roberto F., BONDIOLI, Luiz Guilherme A., e FONSECA, João Francisco N. da Fonseca). São Paulo: Saraiva, 2020, p. 30).
Muito embora a discussão a respeito da figura do árbitro, de seus direitos e deveres, tenha sido colocada em foco pela comunidade jurídica atuante na arbitragem nos últimos anos, pouco se discutiu a respeito da prática da composição dos tribunais arbitrais. Tal discussão ganha especial relevo quando se trata da nomeação de uma terceira pessoa - o presidente do tribunal arbitral, que juntamente com seus pares - coárbitros, merece ter a confiança das partes para que possa exercer seu mister1. Na arbitragem, a constituição do tribunal arbitral configura momento crucial para o bom desenvolvimento do processo arbitral. A escolha do árbitro certamente se afigura como um ponto altamente estratégico da parte. Isso pode valer para os chamados coárbitros, isto é, aqueles unilateralmente indicados por cada uma das partes. Mas será que também valeria para a escolha do árbitro presidente? Normalmente, cabe aos coárbitros a indicação da pessoa que irá presidir o tribunal arbitral. Trata-se de regra que se encontra timidamente disposta e de rara aplicação na lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem")2, mas com um detalhamento maior nos regulamentos de arbitragem, especialmente aqueles mais utilizados nas arbitragens brasileiras3. Considerando que as partes, usualmente optam pelo uso da arbitragem institucional, administrada por uma câmara e regida por seu correspondente regulamento4, esse último se se ocupa de estipular as regras concernentes ao processo, incluindo, mas não se limitando, à escolha do presidente do tribunal arbitral5. A esse respeito confira-se o que dispõe o art. 11.5 do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá ("CAM-CCBC"): "Superada a etapa de indicação de coárbitros, a secretaria do CAM-CCBC, salvo estipulação contrária das partes, os notificará para que, no prazo de 10 (dez) dias, indiquem o presidente do tribunal arbitral, preferencialmente integrante da lista de árbitros do CAM-CCBC"6. Ainda assim uma dúvida persiste. Nada obstante os regulamentos de arbitragem mais utilizados no Brasil determinarem que a escolha do árbitro presidente constitui prerrogativa dos coárbitros, a prática arbitral moderna tem revelado o uso de um método diferente, consistente na ampla participação das partes nesse processo de escolha. Como isso pode se dar na prática? Diversas são as fórmulas passíveis de serem adotadas, mas a mais comum é a elaboração de uma lista com seis nomes escolhidos de comum acordo entre os coárbitros e posterior submissão de tal lista às partes para que, em determinado prazo comum, apresentem vetos de até dois nomes constantes da aludida lista, sem a necessidade de justificativa para tais cortes7. Nada impede, ainda, que, de forma alternativa ao método acima exposto e superando-se qualquer veto, as partes, de comum acordo, escolham, em conjunto, o nome do presidente entre um dos membros constantes da aludida lista. Ou mesmo, em casos mais raros, que as próprias partes, sem mesmo consultar os coárbitros, escolham, em conjunto, a pessoa a presidir o tribunal arbitral. Tais métodos existem e são cultivados com frequência no âmbito da prática arbitral por um motivo muito simples: a arbitragem pertence às partes litigantes. São elas as verdadeiras comandantes do processo, cuja moldagem é por elas delineado8. Tal premissa não é nova e pode ser extraída da análise dos arts. 21, caput e 13, 3º da Lei de Arbitragem: Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento. Art. 13, § 3º As partes poderão, de comum acordo, estabelecer o processo de escolha dos árbitros, ou adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada. Por evidente, não se deve olvidar da autoridade do árbitro para dirimir as questões sobre as quais as partes não cheguem a um consenso9. Mas isso sempre deve se dar em último caso. Todavia, não é objeto dessas linhas definir o que deve, ou não, ser objeto de crivo do tribunal arbitral na ausência de alinhamento entre as partes. O ponto fulcral desse breve estudo é deixar claro que já se foi o tempo em que a escolha da pessoa que presidirá o tribunal arbitral recaia ao simples alvedrio dos coárbitros. Por mais que não haja uma regra especifica nos regulamentos de arbitragem mais utilizados em âmbito nacional10, a praxe já demonstrou que, nos últimos anos, não haverá indicação do responsável pela presidência do painel arbitral sem que se passe, primeiro, pelo crivo das partes. Inclusive, entende-se que tal participação é fundamental de modo a garantir legitimidade plena ao tribunal arbitral a ser constituído. Em outras palavras, o termo confiança ditado pelo art. 13 da Lei de Arbitragem11 vale não só para os árbitros indicados pelas partes mas, também, à pessoa que presidirá o tribunal arbitral. Por outro lado, e ainda que se enalteça o direito das partes de participarem ativamente na composição do tribunal arbitral, em especial, na escolha de seu presidente, deve se ter claro que, idealmente, a pessoa que irá presidir o painel precisa ter boa interação e/ou afinidade com os coárbitros. Membros de um tribunal arbitral trabalham de forma coesa, coordenada e, principalmente, colegiada. Uma das grandes vantagens da arbitragem é justamente que aqueles que comandam e moldam o processo (isto é, as partes), possam escolher julgadores que trabalhem da forma acima mencionada, primando-se pela eficiência, neutralidade, competência, dentre outros atributos. Assim, uma escolha coerente e coordenada entre partes e coárbitros da pessoa a presidir o painel tende a ser altamente eficaz. Tal situação, que, pensa-se ser a mais desejável, pode estar sujeita a algumas peculiaridades no âmbito do processo arbitral. Quando, por exemplo, um tribunal é constituído, tendo o presidente sido escolhido pelos coárbitros mediante o prévio envio de lista sêxtupla às partes. Ocorre que, poucos dias após a constituição formal do tribunal, um dos coábitros apresenta renúncia ao cargo por força de um conflito superveniente. O que era antes um tribunal, deixa de sê-lo no momento que o árbitro renunciante deixa o cargo. A providência seguinte é que a parte que havia nomeado o árbitro renunciante deva indicar novo árbitro. Nesse caso, como ficaria a situação dos demais árbitros, em especial, da pessoa que havia sido escolhida para presidir o tribunal arbitral? Os regulamentos arbitrais brasileiros mais utilizados não contêm uma regra específica para tal tipo de situação. Algumas hipóteses poderiam ser vislumbradas: uma primeira, seria a de que o presidente já teria sido investido na função e passado pelo crivo das partes. Nesse caso, bastaria que a parte indicasse novo árbitro e o processo teria o seu curso normal. No entanto, a maior parte dos regulamentos nacionais estipula que a escolha do árbitro presidente pertence aos coárbitros. Nesse caso, a nomeação do presidente anterior teria a sua eficácia suspensa em razão da saída do árbitro renunciante? Seria o caso de a nova pessoa a ser indicada como árbitro ratificar ou não o presidente anteriormente nomeado? Em caso positivo, em que momento? Deve-se lembrar que a investidura na função de árbitro não é automática. A pessoa indicada deve preencher um questionário de conflito de interesses e disponibilidade, cumprir, se o caso, o seu dever de revelação disposto no art. 14, § 1º da Lei de Arbitragem, inter alia, no primeiro momento a se apresentar nos autos. Trata-se de momento em que a pessoa indicada ainda não é árbitra, pois é imperiosa a sua confirmação, antes de se investir na função judicante12. Tais questões são acima colocadas para reflexão dos operadores da arbitragem, em especial, advogados, membros de instituições arbitrais, profissionais que, ocasionalmente, exercem a função de árbitro, e, é claro, os estudantes da arbitragem. São questões peculiares que merecem atenção e, se o caso, que sejam objeto de regramento claro, de modo a tornar ainda mais eficaz a escolha do árbitro presidente bem como de garantir a legitimidade da constituição do tribunal arbitral. __________ 1 Segundo Giovanni Ettore Nanni: "A arbitragem é estruturada em um pilar fundamental, que é a confiança. Não se cuida do único arrimo do instituto, porém, certamente, é de discutível relevância". Confiança na arbitragem: o seu papel no contrato intuitu personae de árbitro in Comitê Brasileiro de Arbitragem e a Arbitragem no Brasil. Obra comemorativa ao 20º aniversário do CBAr. São Paulo: Almedina, 2022, p. 275 2 Nesse sentido, a disposição do art. 13, (primeiro) § 4º da Lei de Arbitragem: "Sendo nomeados vários árbitros, estes, por maioria, elegerão o presidente do tribunal arbitral. Não havendo consenso, será designado presidente o mais idoso". Ao comentar tal regra, aduzem Selma Maria Ferreira Lemes e Vera Cecília Monteiro de Barros: "Esta previsão legal é de rara de ocorrer na prática, pois, como dito acima, geralmente as cláusulas compromissórias indicam a forma de eleição dos coárbitros e do presidente" (Lei de Arbitragem Comentada (coord. WEBER, Ana Carolina; LEITE, Fabiana de Cerqueira) Lei de Arbitragem Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 174). 3 A título de referência, as principais câmaras de arbitragem do Brasil estão listadas no respeitado Leaders League: Brasil - Melhores Câmaras de Arbitragem - 2023 - Leaders League.  Fonte: Acesso em 14 jul. 2023. 4 O que é possibilitado pela disposição contida no art. 5º da Lei de Arbitragem: "Reportando-se as partes, na cláusula compromissória, às regras de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada, a arbitragem será instituída e processada de acordo com tais regras, podendo, igualmente, as partes estabelecer na própria cláusula, ou em outro documento, a forma convencionada para a instituição da arbitragem". No que tange à forma de escolha dos membros do tribunal arbitral, vide o disposto no art. 13, §3º da Lei de Arbitragem: "As partes poderão, de comum acordo, estabelecer o processo de escolha dos árbitros, ou adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada". 5 Segundo Gustavo da Rocha Schmidt, Daniel Brantes Ferreira e Rafael Carvalho Rezende de Oliveira: "Os §§ 3º e 4º do art. 13 da Lei abordam o processo de escolha dos árbitros pelas partes, bem como o procedimento de nomeação do Presidente do Tribunal pelos coárbitros. As partes podem estabelecer na convenção de arbitragem (cláusula compromissória ou compromisso arbitral) o método de escolha dos árbitros em caso de arbitragem ad hoc ou avulsa. No entanto, o mais comum, em terras brasileiras, tem sido a opção pela arbitragem institucional, de modo que o procedimento para escolha dos árbitros é ditado pelo regulamento de arbitragem de cada câmara ou centro de arbitragem" (Comentários à Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 77). 6 No mesmo sentido, é o disposto no art. 4.4 do Regulamento de Arbitragem da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial - Brasil ("CAMARB"): "Salvo convenção em contrário, caso as partes optem pela constituição de Tribunal Arbitral com 3 (três) membros, caberá a cada uma delas a nomeação de um árbitro no prazo fixado no item 4.2. Após a manifestação de disponibilidade, não impedimento, independência e imparcialidade dos árbitros indicados, não havendo impugnação, estes serão intimados para, no prazo de 10 (dez) dias, indicarem conjuntamente o terceiro árbitro, que funcionará como presidente do Tribunal Arbitral. Não sendo alcançado o consenso entre os árbitros indicados pelas partes, a indicação do árbitro presidente caberá à Diretoria da CAMARB". 7 Selma Maria Ferreira Lemes e Vera Cecília Monteiro de Barros: "Muitas vezes, para a indicação do presidente do tribunal arbitral, os coárbitros consultam as partes fornecendo uma relação de nomes para que as partes opinem a respeito, podendo indicar os nomes aprovados ou excluídos". (Lei de Arbitragem Comentada (coord. Weber, Ana Carolina e Leite, Fabiana de Cerqueira) Lei de Arbitragem Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 174). 8 A esse respeito, vide o entendimento de Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Matheus Lins Rocha e Débora Cristina Fernandes Ananias Alves Ferreira: "As partes definirão como se dará a escolha do presidente, que poderá ser escolhido por ambas as partes, pelos coárbitros, pela instituição arbitral, por um terceiro, ou por qualquer outra forma definida pelas partes, desde que haja o respeito ao devido processo legal constitucional". (Lei de Arbitragem Comentada Artigo por Artigo. São Paulo: Juspodivim, 2019, p. 231). 9 A esse respeito, ver: A flexibilidade da arbitragem e o controle dos árbitros - Migalhas. Acesso em 18 jul. 2023. 10 Breve exceção se faz aqui em relação ao regulamento de arbitragem da CAMNORTE, que estipula o sistema de listas no caso de desacordo na nomeação. Assim dispõe o regulamento: "art. 7.3 do respectivo regulamento: "Caso a convenção de arbitragem não tenha determinado a forma de indicação dos Árbitros ou não haja consenso das Partes quanto ao método de indicação, o Tribunal Arbitral será nomeado pelo Presidente da CAMNORTE de acordo com o seguinte método: 7.3.1. O Presidente da CAMNORTE encaminhará a ambas as Partes uma ou mais listas idênticas, contendo os nomes e currículos de potenciais Árbitros; 7.3.2. Consoante instruções do Presidente da CAMNORTE, cada Parte poderá eliminar nomes da lista e numerar os demais de acordo com a sua ordem de preferência; 7.3.3. Após checagem de imparcialidade, independência e disponibilidade, serão nomeados para o Tribunal os profissionais desimpedidos com melhor ranking segundo a listas de ambos os litigantes e, como suplentes, os demais". Fonte: b7a4ce_882a1def6ba648e298984a880d7033d2.pdf (camnorte.com.br). Acesso em 03 jul. 2023. 11 A esse respeito, o entendimento de Selma Maria Ferreira Lemes e Vera Cecília Monteiro de Barros: "O conceito de confiança da parte no árbitro, na dicção da lei, tem duas óticas de análise. A primeira, intrínseca, significa que o árbitro deve ser pessoa de bem, honesta e proba. É o que se denomina de probidade arbitral. A honorabilidade de uma pessoa para ser indicada como árbitro representa a sua idoneidade legal para o exercício da função. A segunda, extrínseca, representa a certeza [a incutir em terceiros que nele confiam] de ser pessoa capaz de exarar decisão, sem se deixar influenciar por elementos estranhos e que não tenha interesse no litígio. O árbitro deve ser independente e imparcial, antes e durante todo o procedimento arbitral, até ditar a sentença, quando põe fim ao seu mister de árbitro. A confiança da parte depositada na pessoa do árbitro representa a certeza de que este terá a independência para julgar com imparcialidade, posto que a independência é um pré-requisito da imparcialidade" (Lei de Arbitragem Comentada (coord. Weber, Ana Carolina e Leite, Fabiana de Cerqueira) Lei de Arbitragem Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p.172-173). 12 A esse respeito, ver MARTINS. Pedro A. Batista. As três fases da arbitragem. Revista do Advogado. São Paulo: AASP, ano XXVI, n. 87, p. 87, 2006.
Tema pouco debatido, seja na doutrina, seja na prática da arbitragem, diz respeito à representação da parte na arbitragem doméstica. Presume-se que a ausência de maiores discussões sobre tal tema se dê em virtude do fato de que, normalmente, as partes são representadas por advogados nos processos arbitrais. Mas a representação por advogado é obrigatória nesses casos? A resposta é negativa e está prevista na lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"), que, em seu artigo 21, §3º, dispõe: "As partes poderão postular por intermédio de advogado, respeitada, sempre, a faculdade de designar quem as represente ou assista no procedimento arbitral". A disposição acima não deixa margem para dúvidas: a representação da parte por advogado é meramente facultativa. Não é objetivo dessas linhas discorrer se tal disposição é ou não correta, notadamente diante do fato de que a figura do advogado é indispensável à administração da justiça, seja ela estatal ou arbitral1. Mas pretende-se deixar claro que o sistema arbitral foi construído pensando nas partes e no seu poder de litigar do modo que melhor lhes convier2. É exatamente essa a premissa do art. 21, caput da Lei de Arbitragem: "Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento". Ainda assim, a dúvida pode persistir. Como litigar sem a presença de um advogado? Tal situação poderia ocorrer, por exemplo, em casos envolvendo grupos societários compostos por diversas sociedades, mas comandados por apenas dois sócios. Se esses dois sócios divergissem acerca da relação societária mantida e dessem início à um processo arbitral, seria imperioso que as empresas integrantes do grupo societário figurassem como parte na lide, de modo a que a sentença arbitral que viesse a ser proferida fizesse coisa julgada em relação às elas3. Nesse contexto, outro questionamento possível é o de como ficaria a representação dessas empresas na hipótese de divergência entre sócios a respeito de qual advogado as representaria. Nesse caso, bastaria que fossem observados os contratos sociais dessas empresas de modo que os diretores eleitos escolhessem, em conjunto, o advogado. E, na ausência de acordo, os próprios diretores representariam as sociedades na arbitragem, o que encontraria pleno respaldo na disposição contida no artigo 21, §3º da Lei de Arbitragem. Em outros casos, a parte sequer tem o interesse em levar o processo arbitral adiante e, por si própria, dispensa a presença de advogado e celebra acordo objetivando encerrar o feito4. Ou mesmo deixar de constituir advogado simplesmente para evitar despesas. Trata-se de direito da parte no processo arbitral. Tais questões já foram objeto de discussão e dirimidas pela jurisprudência dos tribunais pátrios, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça5. Por outro lado, não há dúvida de que a presença do advogado na representação da parte gera uma maior tranquilidade ao processo e à administração da justiça6. Em especial aos árbitros, que possuem a obrigação de resultado de proferir sentença passível de ser cumprida, em observância ao seu múnus7. Mas é preciso considerar que o campo arbitral não é exclusivamente reservado a profissionais da área jurídica. Seja na atividade de julgador - a pessoa que exerce a função de árbitro, pela acepção legal, deve apenas ser uma pessoa capaz e que tenha a confiança das partes - seja na atividade de representação da parte. Em certo escrito8, já foi ressaltado que a importância do papel do advogado no âmbito da arbitragem se dá em razão, inter alia, da preservação dos princípios da igualdade das partes e do contraditório. Trata-se de preocupação louvável, mas tecnicamente equivocada, eis que o cumprimento de tais princípios é dissociado do fato de haver ou não advogado constituído nos autos. Basta que a comunicação dos atos processuais efetivamente ocorra e que as partes possam se defender adequadamente. Como bem afirma Leonardo de Faria Beraldo: "Ora, o contraditório, para existir, não depende de ter ou não advogado constituído nos autos, mas, sim, da comunicação dos atos processuais. A comunicação é que precisa efetivamente existir. Contraditório significa cientificar a parte de prática de todos os atos do processo, para que ela, por sua vez, possa ou não reagir. Isso é contraditório. Não ter advogado significa apenas que será a própria parte, ou um representante que indicar, quem será intimado dos atos do processo, para, se quiser, manifestar-se. Também não vemos o fato narrado como violador do princípio da igualdade das partes, uma vez que ambas tiveram a oportunidade de contratar seus advogados, e, se, por um acaso uma delas não quis, deverá arcar com as consequências de sua falta de inteligência"9. Da mesma forma, é opinião de Daniela Monteiro Gabbay e Flávia Foz Mange: "Uma questão relevante a refletir ocorre quando apenas uma das partes está assistida por advogado e se a outra parte precisa necessariamente estar também, sob pena de violação do princípio da igualdade. Em um campo de autonomia da vontade, como é o da arbitragem, a escolha das partes e não estar assistida por advogado ou outro representante não gera per se uma violação ao tratamento isonômico conferido pelo tribunal arbitral"10. O que se pretende, nessas linhas, é apenas trazer breves luzes sobre assunto pouco discutido na seara arbitral, mas que pode ocasionar efeitos práticos. Conquanto a representação da parte por advogado seja benéfica não apenas à parte constituinte, mas aos árbitros, ao processo arbitral e, ao fim e ao cabo, à boa administração da justiça, é preciso que se considere, acima de tudo, ampla a liberdade das partes no design de suas disputas encaminhadas à arbitragem, o que inclui a escolha de sua representação. Este é o verdadeiro escopo do já citado art. 21, caput, da Lei de Arbitragem. De todo modo, como é incomum a ausência da representação da parte na arbitragem por advogado, é preciso que se faça bom uso da disposição contida no art. 21, § 3º da Lei de Arbitragem. Isso se dá exatamente nos exemplos citados acima, especialmente em arbitragens societárias, em que a disputa se dê unicamente entre os sócios e as sociedades somente permaneçam na lide para que a elas se operem os efeitos da coisa julgada material11. Ou mesmo quando o intento de uma parte, ao ser notificada para responder a um processo arbitral seja fazer acordo, de imediato. Não há, decerto, nesses casos, a necessidade do uso de advogados por essas partes, meramente figurantes. __________ 1 Nas palavras de Gustavo da Rocha Schmidt, Daniel Brantes Ferreira e Rafael carvalho Rezende de Oliveira: "O procedimento arbitral, no entanto, além de em vários aspectos se assemelhar ao processo judicial, envolve, em geral, causa de alta complexidade técnica e de maior relevância econômica. Revela-se, por isso mesmo, recomendável a constituição de advogado para a defesa dos direitos e interesses das partes no procedimento arbitral, inclusive para aconselhamento quanto a escolha do árbitro. O advogado recebe treinamento adequado e conhece a liturgia jurídica. É formado para lidar com litígios e processos. É, conforme consagrado no art. 133 da CRFB, "indispensável à administração da justiça" (Comentários à Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.150). 2 Nesse sentido é a lição de Calos Alberto Carmona, ainda que entenda pela importância da constituição do advogado pela parte na arbitragem: "Entretanto, considerando a força que o legislador emprestou à vontade das partes, não seria razoável impor aos litigantes a presença do profissional do Direito. De fato, em controvérsias envolvendo matéria eminentemente técnica, podem os contendentes julgar que a presença do profissional do direito no processo arbitral será dispensável, optando então pelo sistema de assessoria ou dispensando por completo este aconselhamento (até porque a contratação de advogados importa naturalmente o acréscimo de custos)" (Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. São Paulo: Atlas, 3ª edição, 2009, p. 300). 3 Nesse sentido, a lição de Humberto Theodoro Junior: "Consoante posicionamento do STJ, "a retirada de sócio de sociedade por quotas de responsabilidade limitada dá-se pela ação de dissolução parcial, com apuração de haveres, para qual têm de ser citados não só os demais sócios, mas também a sociedade" (STJ, 3ª T., REsp 1.371.843/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, ac. 20.03.2014, DJe 26.03.2014). O NCPC avalizou esse entendimento, ao determinar a citação dos sócios remanescentes e da sociedade, sendo agora imposição legal a formação do litisconsórcio, para que ambos figurem como réus na ação de dissolução parcial de sociedade e apuração de haveres (art. 601). Se, porém, todos os sócios já se acharem integrados à relação processual, não haverá necessidade de citação específica da sociedade. A sentença, in casu¸ atingirá, naturalmente, aos sócios e a pessoa jurídica" Código de Direito Processual Civil Anotado, 22ª ed. Forense, Rio de Janeiro, p. 2.421). 4 Nesse sentido: Prestação de serviços - Mensalidade escolar - Embargos à Execução - lei 9307/97 não prevê a obrigatoriedade de as partes estarem assistidas por advogado por ocasião da composição obtida em juízo arbitral (art. 21, § 3º) - Incidência da multa compensatória - Cabimento - Sentença mantida - Recurso improvido. (TJSP, Apelação Cível n° 992.08.061911-7, 33ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Cristiano Ferreira Leite, Data de Julgamento: 23.08.2010) 5 Nesse sentido: "Outrossim, na própria Lei de Arbitragem consta ser facultativa a assistência das partes por advogado no procedimento arbitral, de modo que a ausência do patrono não macula de nulidade eventual acordo celebrado entre elas" (STJ, Ag em REsp nº1.323.499 - GO (2018/0141014-0), Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 05.09.2018). No mesmo sentido, TJSP Agravo de Instrumento nº 2011103-72.2020.8.26.0000, 30ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Marcos Ramos, Data de Julgamento: 18.06.2020. 6 Segundo Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Matheus Lins Rocha e Débora Cristina Fernandes Ananias Alves Ferreira, não constitui advogado pela parte, apesar de prática autorizada por lei, seria perigosa: "O § 3º estabelece a importância do advogado para o procedimento arbitral, que detém a capacidade postulatória, defendendo os interesses da parte representada, havendo, ademais, a liberdade e flexibilidade para que a parte possa designar outro representante ou assistente no procedimento, ou seja, a presença do advogado, embora de extrema importância, não é obrigatória, mas constitui grande perigo corres este risco, diante da imprescindibilidade da aptidão técnica para a defesa dos interesses da parte". (Lei de Arbitragem Comentada Artigo por Artigo. São Paulo: Juspodivim, 2019, p. 257). 7 A esse respeito, entende Gilberto Giusti: "Já tivemos a oportunidade de analisar o caráter jurisdicional da arbitragem, em nosso estudo "O Árbitro e o Juiz: da função jurisdicional do árbitro e do juiz". Com o advento da Lei n° 9.307/96, a decisão arbitral doméstica assumiu a mesma eficácia da sentença judicial, dispensando a outrora necessária ratificação pelo Poder Judiciário. Inquestionável, pois, que a arbitragem, ainda que se trate de meio alternativo de solução de controvérsias emanado da vontade das partes, envolve prestação jurisdicional e, portanto, administração da justiça" (O Advogado e a Arbitragem. Aspectos Práticos da Arbitragem (coord. Luiz Fernando do Vale Almeida Guilherme). São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2006, p. 229). 8 Segundo Aldemar Motta Júnior: "Assim, como é do interesse geral que uma sentença arbitral qualquer, seja isenta de vícios que possam vir a ser arguidos em uma eventual ação de nulidade, com supedâneo nos termos do Art. 33 da Lei de Arbitragem, com fundamento no inciso VIII, do Art. 32, que remete à falta de observância dos princípios constantes do § 2º, do Art. 21 do mesmo diploma legal, é sempre de bom alvitre que o advogado da parte que esteja assistida se preocupe a todo o tempo em verificar se tais princípios previstos na disposição legal indicada - isto é, igualdade das partes e contraditório, estão sendo efetivamente preservados. Não interessa a quem quer que seja que esteja de boa-fé, principalmente à parte que venha a lograr êxito na demanda arbitral, que a sentença respectiva venha a ter decretada sua nulidade". Disponível em: Manual_arb_oab_cacb.pdf (adambrasil.com). Acesso em 24 jun. 2023. 9 Curso de Arbitragem nos termos da lei 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2004 p. 291-292. 10 Lei de Arbitragem Comentada (coord. Weber, Ana Carolina e Leite, Fabiana de Cerqueira) Lei de Arbitragem Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 247. 11 Em tese, na hipótese ilustrativa colocada, sequer as sociedades precisariam estar presentes na lide. Ao menos, é o que se extrai da regra contida no art. 601, parágrafo único do Código de Processo Civil: "A sociedade não será citada se todos os seus sócios o forem, mas ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada".
terça-feira, 30 de maio de 2023

Instauração e instituição da arbitragem

Tema pouco debatido na doutrina arbitral diz respeito à dois peculiares termos da lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem"), cuja compreensão é de suma importância ante as consequências causadas pela sua utilização. Os termos em questão são "instauração da arbitragem" e "instituição da arbitragem". Seriam eles similares? Caso negativo, qual seria a razão para distingui-los? O ato instaurar significa "dar início a (algo que não existia); introduzir, implantar, instalar"1. Já o verbo instituir, por mais que tenha sentido similar ao anterior, leva com mais vigor à ideia de "estabelecer", "criar" ou "fundar"2. Na Lei de Arbitragem o verbo instituir é mais constante. Tanto o verbo instituir quanto termo "instituição" estão presentes em 14 (quatorze) disposições da Lei de Arbitragem3. Já o verbo "instaurar" ou algum derivado, está presente em uma única disposição, a do § 2º do art. 19 da Lei de Arbitragem. Com efeito, o ato de se instaurar é anterior ao de instituir. Na prática da arbitragem, a instauração do respectivo processo se dá quando o requerimento (ou solicitação) de arbitragem é protocolado junto à determinada câmara arbitral (caso a arbitragem seja institucional), ou quando da notificação à parte contrária acerca da intenção de dar início ao processo arbitral (caso arbitragem seja ad hoc). Já o verbo instituir é posterior ao ato de instaurar, na acepção da Lei de Arbitragem. Isso porque a instituição da arbitragem pressupõe a existência de plena jurisdição arbitral ou de juízo instituído, em que os atos inerentes ao processo devem ocorrer, unicamente, perante o ou os árbitros. Para que se possa compreender o real sentido desses dois termos no âmbito da Lei de Arbitragem, merece destaque a análise do art. 19 e seus parágrafos, da Lei de Arbitragem, a única em que ambos os termos instauração e instituição estão presentes. Para facilidade de referência transcreve-se aqui as referidas disposições: "Art. 19. Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários. § 1o Instituída a arbitragem e entendendo o árbitro ou o tribunal arbitral que há necessidade de explicitar questão disposta na convenção de arbitragem, será elaborado, juntamente com as partes, adendo firmado por todos, que passará a fazer parte integrante da convenção de arbitragem; § 2o A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição". O caput do art. 19 da Lei de Arbitragem estabelece quando efetivamente a jurisdição arbitral passa a existir, isto é, quando aceita a missão pelos árbitros. É claro que a mera "aceitação" não é suficiente para que a jurisdição arbitral se efetive. Candidatos ao posto de árbitro podem aceitar a missão de imediato, mas, antes de serem confirmados podem ser instados aos mais diversos tipos de esclarecimentos pelas Partes, prática que, aliás, tem sido recorrente na arbitragem. Podem ser também ser substituídos, sofrerem exceção de recusa e, ao fim e ao cabo não confirmados. É justamente por tais razões, que o termo aceitação só pode ser lido como a efetiva confirmação do árbitro (se único) ou de todos (em caso de tribunal arbitral)4. Já o § 1º do art. 19 deixa ainda mais evidente o sentido da existência de efetiva jurisdição arbitral ao dispor que após, "instituída" a arbitragem, podem já os árbitros, devidamente investidos da função jurisdicional, darem seguimento ao curso do processo arbitral por meio do chamado "adendo" que se refere o § 1º do art. 19, o qual, na prática, alude ao conhecido termo de arbitragem. E um parêntesis deve ser feito aqui: a instituição da arbitragem, a qual, se bem interpretada se dá com a constituição do tribunal arbitral, não só dá ensejo à elaboração do dito "adendo", mas gera importantes efeitos jurídicos, como a obrigatória apresentação de quaisquer medidas, como as de urgência, perante o tribunal arbitral constituído, independentemente da formalização deste documento, qual seja, o termo de arbitragem5. Já o § 2º do art. 19 alude a ambos os termos discutidos nessas linhas: o da instituição e o da instauração da arbitragem. Apesar de a aludida disposição ter como objeto a interrupção da prescrição em sede de arbitragem, há a evidente distinção entre instituição e instauração da arbitragem. Em linhas claras o que está disposto na referida norma é que, o curso do prazo de prescrição se interrompe quando há efetiva jurisdição arbitral (instituição da arbitragem), mas que, para não prejudicar o credor diligente6, retroage à data do requerimento de sua instauração7.  Como visto anteriormente, é a única disposição da Lei de Arbitragem que se refere ao termo "instauração". E, de forma correta, o artigo demonstra que o ato de instaurar se distingue do de instituir, eis que a instauração visa formalizar a intenção de uma parte de dar início ao processo arbitral. Arbitragem instaurada se dá na fase pré-arbitral, quando não há jurisdição arbitral existente. A distinção entre tais termos - instituição e instauração é crucial de modo a evitar equívocos na condução do processo arbitral. Exemplo disso, é o que consta do art. 20 da Lei de Arbitragem, segundo o qual a "parte que pretender argüir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem". Ou seja, é direito da parte arguir os vícios acima elencados na primeira oportunidade que tiver e sujeito à preclusão8 (e isso deve ser provado pela parte que alega) após a constituição do tribunal arbitral, com os árbitros nomeados já devidamente investidos da função jurisdicional, ou seja, confirmados. Outro importante exemplo é o que consta do parágrafo único do art. 22-A da Lei de Arbitragem, segundo o qual "Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão". O que está reproduzido nesta disposição é que a parte diligente deve provar ao juízo prolator da decisão que confere eventual tutela de urgência que ela efetivamente requereu a instituição da arbitragem, devendo essa comprovação ser feita por meio da apresentação do protocolo do requerimento de instauração de processo arbitral. Isto é, não pode a parte provar que uma arbitragem será imediatamente instituída, pois impossível, mas pode ela provar que requereu a sua instauração. Por fim, deve-se ter atenção à contagem do prazo previsto no art. 23 da Lei de Arbitragem, segundo o qual "a sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro". Dessa forma, o prazo de seis meses acima referido se conta a partir da instituição da arbitragem, ou seja, da efetiva confirmação dos árbitros, se tribunal arbitral, ou do árbitro, se único. Mas, justamente em razão da exiguidade de tal prazo, a própria disposição do artigo possibilita que as partes ajustem outro prazo9, o que normalmente ocorre pela adesão às regras constantes dos regulamentos de arbitragem mais utilizados no Brasil10. O que se pretende, nessas linhas, não é apenas diferenciar os termos instituição e instauração. É preciso ter consciência de que a jurisdição arbitral não se forma com apenas um ato e leva tempo para que se concretize. Justamente por tais razões, o eficaz estudo da arbitragem, que leva à inevitável consequência prática, deve ser feito por etapas, levando sempre em consideração as suas três fases: pré-arbitral, arbitral e pós-arbitral11. __________ 1 INSTAURAR. In: MICHAELIS: Dicionário brasileiro da língua portuguesa. Editora Melhoramentos. Disponível aqui. Acesso em: 26/05/2023. 2 INSTITUIR. In: MICHAELIS: Dicionário brasileiro da língua portuguesa. Editora Melhoramentos. Disponível aqui. Acesso em: 26/05/2023. 3 São elas: Art. 4º, § 2º, Art. 5º, caput, Art. 6º, caput, Art. 7º, caput, art. 19, caput e § 1º e § 2º, art. 22-A e § único, art. 22-B § único, art. 23, caput, art. 38, inciso V e art. 42. 4 Nesse sentido, é a lição de Pedro A. Batista Martins: "Deve-se entender que a aceitação pelos árbitros da função não põe termo à fase pré-arbitral, pois esta somente se completa com a efetiva confirmação destes, após submetido o Termo de Independência às demandantes. Antes dessa confirmação, os árbitros podem até ter aceito, mas, ainda, não foram confirmados. E podem, mesmo, nem vir a ser confirmados, caso haja algum fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (As três fases da arbitragem. Revista do Advogado. São Paulo: AASP, ano XXVI, n. 87, p. 87, 2006). 5 É o que dispõe o art. 22-B da Lei de Arbitragem: "Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário". 6 Assim entende Pedro Batista Martins: "Obviamente que a parte deve se manter diligente no que toca à notificação do demandado pela instituição da arbitragem. Mas, no meu entender, com o pedido de instituição de arbitragem o demandante comprova o regular exercício de um direito (i.e., interrupção da prescrição), pois, com esse ato, está dando início a uma ação, não de cunho judicial, mas, em tudo e para tudo, a ela equivalente. Inclusive para fins de interrupção da prescrição." (As três fases da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, nº 87, p. 90, 2006) 7 A qual, nada mais é do que uma reprodução adaptada do disposto no art. 240, § 1º do Código de Processo Civil ("CPC"): "A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação". 8 No que se refere aos prazos de preclusão, ao menos no direito arbitral brasileiro, entende Carlos Alberto Carmona que, na esfera arbitral, os efeitos da preclusão operam em relação à oportunidade que as partes têm para arguir, questões relativas à competência, suspeição, ou impedimento do árbitro (art. 20, caput, da Lei nº 9.307/1996). Dessa forma, Carmona, ao tecer o seu comentário ao referido dispositivo legal, assim se manifesta: "Entre essas últimas (questões em que há a atuação do princípio da disponibilidade), estão algumas das questões relativas à suspeição e impedimento do árbitro: se as partes, sabedoras de motivo para afastamento do árbitro, deixam de alegá-lo, estão tacitamente concordando que tal motivo não causará a parcialidade do julgamento (ou, pelo menos, estão aceitando o risco de eventual parcialidade), e consequentemente não podem reservar-se o direito de, proferido o laudo, trazerem à baila a questão (a não ser, é claro, que o motivo de impedimento ou suspeição tenha sido descoberto posteriormente). A preclusão aqui, ocorrerá se a parte que tiver conhecimento do motivo que possa levar à recusa do árbitro deixar de apresentar a respectiva exceção na primeira oportunidade que tiver" (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 284). 9 Nesse sentido, ensina Leonardo de Faria Beraldo: "Em suma, quando a parte instaura um procedimento arbitral em determinada instituição de arbitragem, significa que está aderindo ao seu regulamento, salvo se expressamente as partes estiverem abolindo-o, e ainda, que haja, autorização do órgão arbitral. Isso significa que os prazos para se proferir sentença estabelecidos no regulamento valerão para as partes, mesmo que não exista disposição expressa, nesse diapasão, na convenção de arbitragem ou na ata de missão. (Curso de Arbitragem: nos termos da lei 9.307/96. São Paulo, Atlas, 2014, p. 419 - ênfase acrescentada). 10 A título de exemplo, cita-se o regulamento de arbitragem do CMA CIESP/FIESP, que em seu art. 15.1 dispõe: "15.1. O Tribunal Arbitral proferirá a sentença arbitral no prazo de 60 (sessenta) dias contados do dia útil seguinte ao da data fixada para a apresentação das alegações finais, podendo ser prorrogado por mais 60 (sessenta) dias a critério do Tribunal Arbitral. Em casos excepcionais e por motivo justificado, poderá o Tribunal Arbitral solicitar ao Presidente da Câmara nova prorrogação". 11 Ao discorrer sobre essa divisão tripartite das fases da arbitragem, ensina Pedro A. Batista Martins: "1. A lei brasileira de arbitragem, também conhecida como lei Marco Maciel (lei 9.307/96), é provida de uma sistemática própria que assegura um sentido, e uma estrutura, harmônica com os princípios norteadores do instituto. 2. Com efeito, podemos aplicar a esse sistema uma divisão macro em três fases, a saber: pré-arbitral, arbitral e pós-arbitral. 3. Cada uma dessas fases comporta uma sistematização específica e deve ser entendida, e interpretada, com uma visão do todo para que sua aplicação se dê em fina sintonia com a finalística própria das fases, sob pena de desvirtuamento dos efeitos que cada uma dessas etapas produz" (As três fases da arbitragem. Revista do Advogado. São Paulo: AASP, ano XXVI, n. 87, p. 87, 2006).
terça-feira, 25 de abril de 2023

Processo arbitral: início, meio e fim

Um dos temas mais instigantes na seara do direito processual, diz respeito às peculiaridades do processo arbitral. Mas se se está aqui a falar de processo puramente dito, por que dar algum destaque ao processo arbitral? Existe, realmente, alguma diferença entre o processo arbitral e o processo judicial? Arbitragem, como se sabe, é processo. Em verdade, a arbitragem possui um sistema estrutural bastante semelhante ao do processo civil, com a diferença de que quem julgará o litígio serão árbitros indicados pelas partes, o quais, assim como o juiz estatal, devem ser imparciais e independentes. Processo civil e arbitragem constituem, assim, "instrumentos heterônimos de solução de conflitos", gerando inquestionável "paralelismo" na visão de Donaldo Armelin1-2. É nesse contexto que Carnelutti, ao ver a arbitragem como um dos equivalentes do processo civil contencioso de cognição, lecionava: "[A] meu aviso, com a arbitragem já estamos no terreno do processo, onde não creio que - diferentemente da transação e do processo estrangeiro - seja no caso de compreendê-la entre os equivalentes processuais. A razão está em que, à diferença do processo estrangeiro, o processo arbitral é regulado pelo nosso ordenamento jurídico não apenas no sentido de controle dos requisitos da sentença arbitral e dos seus pressupostos, mas também e acima disto, pela ingerência do Estado no desenvolvimento do próprio processo".3 A processualidade da arbitragem advém de duas características fundamentais: primeiramente, de sua jurisdicionalidade4 e, em segundo lugar, da aplicabilidade, a toda arbitragem, dos princípios fundamentais do processo5. O caráter processual é um elemento inerente ao instituto da arbitragem, dado que esta visa a uma prestação. Ou seja, aquele que se sente lesado em um contrato, no qual resta inserida uma cláusula compromissória, possui um direito subjetivo a uma prestação. Possui uma pretensão arbitral. Tal pretensão arbitral, idêntica em essência àquela travada no âmbito do processo judicial, possui uma peculiaridade: ela se sujeita à um processo que possui início, meio e fim. O mais importante em relação a esse ponto é o fim. A decisão final, revestida pela sentença arbitral, resolve, em caráter definitivo, a lide entre as partes. O referido caráter peremptório pode explicado de forma simples: a sentença arbitral não comporta recurso, ou mesmo rediscussão6. O mérito da demanda, insculpido na sentença, é intangível7. Tal ponto, considerado elementar na arbitragem, poderia ser uma desvantagem do referido instituto? Certamente a resposta é negativa. A tão aclamada celeridade do processo arbitral advém, justamente, dessa característica estrutural, a qual se destaca por se concentrar em três etapas: início, meio e fim. Diferentemente do processo judicial, que se encerra quando do trânsito em julgado da última decisão que julgar o mérito da demanda (o que pode levar anos, a depender da quantidade de recursos ofertados às instâncias superiores), o processo arbitral tem o seu fim com a sentença arbitral final, a qual obtém o seu trânsito em julgado de forma imediata8. O caráter definitivo da sentença arbitral é certamente um elemento que deve ser considerado pelas partes ao eleger a arbitragem como método de resolução de disputas em suas avenças. As partes são responsáveis pelas melhores estratégias a serem adotadas em seus negócios, tanto aquelas de caráter comercial como as de natureza processual (i.e., escolha da cláusula de arbitragem). Escolher a arbitragem para resolver disputas tem inevitáveis consequências, dentre elas: (i) o imediato afastamento da competência do juízo estatal para a apreciação do mérito da demanda (efeito negativo da convenção de arbitragem9); (ii) a remessa do caso à jurisdição arbitral, a quem compete o processamento e resolução da disputa (efeito positivo da convenção de arbitragem10); e, (iii) diretamente relacionada à esse efeito positivo, o caráter definitivo da decisão que julgar o mérito da causa. O risco inerente à escolha de um processo que gera uma decisão irrecorrível deve compor a matriz de risco das partes na escolha do método de resolução de disputas. Isso porque pouco ou nada ajuda as partes, insatisfeitas com o resultado de determinado processo arbitral recorrerem ao Poder Judiciário por meio da ação anulatória prevista no art. 32 da Lei de Arbitragem. Tal ação não é um recurso e não tem condão de rever o mérito da sentença arbitral, o qual, por força legal, é intangível. Nesse sentido, a propositura de ações com o fito de rever o mérito da sentença arbitral, não apenas defrontam-se com a alta probabilidade do julgamento de improcedência da demanda (o que, aliás, já foi comprovado por uma série de análises quantitativas realizadas no Brasil11), mas, também, o elevado risco da condenação da parte perdedora nos ônus sucumbenciais, os quais variam entre 10 e 20 por cento do valor da causa12, sendo tais verbas percentuais consideradas taxativas pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"13). Em verdade, esse tipo de conduta nutre a perniciosa instabilidade criada pelo chamado "mal perdedor", para quem ganhar ou perder uma ação anulatória pouco importa, visto que o objetivo de sua propositura muitas vezes é apenas a protelar o cumprimento da sentença14. Em suma: não visam as presentes linhas demonstrar que o processo arbitral, apenas, possui início, meio e fim. Mas é justamente ressaltar que, em razão dessa característica, em especial o seu fim, que as partes devem ter o absoluto cuidado na escolha do método de resolução de disputas em seus negócios. Deve-se atentar que, se escolhida a arbitragem, serve esta para resolver eventual imbróglio entre as partes e não fazer com que uma lide se eternize por meio de inventadas e infundadas ações anulatórias. Saber redigir uma cláusula arbitral completa, escolher estratégica e cuidadosamente os membros do tribunal arbitral, participar de forma ativa e coerente durante o procedimento, expor o seu caso com a devida minúcia, produzir provas capazes de suportar seus pleitos e aceitar a decisão final que advier, são elementos que devem estar na mente daquele que, conscientemente, escolhe a arbitragem como método de resolução de seus litígios. __________ 1 Nesse sentido, afirma Donaldo Armelin: "[...] apresenta, no seu conjunto, estrutura semelhante a do processo civil, até porque ambos são instrumentos heterônimos de solução de conflitos, nos quais emerge a existência de terceiro desinteressado ao qual se atribui autoridade suficiente para o deslinde do litígio" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, nº 15, p. 69, out.-dez. 2007). 2 O paralelismo dos efeitos das vias judicial e arbitral é assim explicado por Donaldo Armelin: "[...] até porque a via arbitral serve, assim como o processo civil, de veículo legal e constitucional para o acesso à Justiça, observando os mesmos princípios garantidores do devido processo legal guardadas as peculiaridades desses dois institutos" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, nº 15, p. 79, out.-dez. 2007). 3 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Pádua: Cedam, 1936. v. 1, p. 179, citado por: CARMONA, Carlos Alberto. A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 19. 4 A esse respeito, a lição de Eduardo Damião Gonçalves: "Nota-se que a arbitragem preenche todos os elementos que caracterizam a jurisdição. Nesse caso, a função dos agentes adequados - os árbitros - é exercida não diretamente pelo Estado, mas por vontade das partes. Mas a arbitragem também tem em si um fundamento legal, na medida em que a possibilidade de as partes submeterem-se à arbitragem deriva de uma decisão do Estado manifestada por um texto legislativo que autoriza as partes a recorrerem à arbitragem para a solução da lide embora não seja apropriado dizer que se trata de uma delegação estatal" (Arbitrabilidade objetiva. 2008. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 24) 5 Bruno Oppetit, ao ponderar sobre as diferenças da justiça estatal e justiça arbitral, lembrando que o ideal de justiça de ambas as jurisdições é o mesmo, com peculiares diferenças, ressalva que os princípios do contraditório, da igualdade das partes e da ampla defesa estão sempre presentes, em qualquer litígio, sob pena de não existir um processo justo, íntegro. Nesse sentido, dizia: "Il ne saurait en effet exister de procès équitable sans que soient scrupuleusement respectés le principe d'égalité entre les parties, le principe de la contradiction et celui, proche mais distinct, de la protection de la défense, ainsi que la nécessité d'un débat loyal, et ces exigences, quelles qu'en soient les modalités qui les traduisent, se manifestent à tous les stades de la procédure" (Justice étatique et justice arbitrale. Études offertes à Pierre Bellet. Paris: Litec, 1991. p. 422). 6 Ver, nesse sentido, o disposto no art. 18 da Lei de Arbitragem: "O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário". 7 O que se entende, aliás, ser, a verdadeira essência da arbitragem (NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 53. 8 Segundo Ricardo de Carvalho Aprigliano: "[A] natureza processual da arbitragem se extrai não apenas da presença de julgadores estranhos ao litígio e equidistantes em relação às partes, mas também do objetivo final de obtenção de uma decisão que aplique o direito ao caso concreto, proferida mediante sentença, à qual se atribuem os mesmos efeitos da sentença judicial. E porque esta sentença, em particular, não está sujeita à homologação ou revisão quanto ao mérito, daí resulta que ao ser proferida, ou quando muito após a decisão sobre os pedidos de esclarecimentos, a sentença arbitral transita imediatamente em julgado, produzindo efeitos de forma imediata". (Nomas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 55). 9 Segundo Fouchard, Gaillard e Goldman, para que seja assegurado o respeito ao cumprimento da convenção de arbitragem, é necessário que ao efeito positivo, que impõe às partes a atribuição aos árbitros de todos os litígios cobertos pela convenção de arbitragem, corresponda também um efeito negativo, o qual proíbe as jurisdições estatais de se manifestarem sobre qualquer litígio, objeto da convenção de arbitragem (FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 416). 10 A atribuição aos árbitros de jurisdição, em razão do efeito positivo da convenção de arbitragem, já era justificada por Roque Caivano da seguinte forma: "[...] atribuir jurisdicción a los árbitros, quienes obtienen de ella las facultades necesarias para intervenir en el litigio; y es por ello que la clausula compromisoria determina la medida de las facultades de los arbitros" (Arbitraje: su eficácia como sistema alternativo de resolución de conflictos. Buenos Aires: Ad Hoc, 1993. p. 116). 11 Ver, a esse respeito: Pesquisa CBAr-ABEArb 2016 « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 21 abr. 2023. 12 Art. 85, § 2º do Código de Processo Civil: "Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos (...)". 13 Ver, a esse respeito: STJ, Corte Especial, Recurso Especial n. 1.850.512-SP, Rel. Min. Og Fernandes, j. 16 de março de 2022, DJE de 31 de maio de 2022. 14 A esse respeito, pertinente a crítica tecida por Ricardo de Carvalho Aprigliano no que concerne às ações que visam anular sentenças arbitrais por eventual ausência de revelação do árbitro de determinado fato: "É preciso ter clareza quanto a dois aspectos, que, a um só tempo, representam as especificidades do processo arbitral e também demonstram a necessidade de interpretá-lo à luz dos conceitos e parâmetros processuais da teoria geral do processo. O primeiro aspecto é que a violação ao dever de revelação não é caraterizada, na Lei de Arbitragem, como causa única e exclusiva para a anulação de sentenças arbitrais. Não obstante ser claramente um dever dos árbitros, a sua violação não gera, ipso facto, alguma consequência direta. Será preciso sempre verificar se, da não revelação de algum fato, houve impactos na imparcialidade e independência do árbitro que violou o dever de revelar. É muito perigosa a tendência que se observa de criar uma associação automática entre tais figuras, porque o argumento passa a ser uma espécie de "bala de prata", que todo litigante perdedor tentará se valer, para impugnar decisões arbitrais. Para certas finalidades estratégicas, ganhar ou perder a ação anulatória é o que menos importa, porque a instabilidade se fará presente, ao menos durante os longos anos de tramitação desta demanda". (Nomas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 222).
Um tema que tem sido objeto de debates recentes na comunidade arbitral diz respeito à produção da prova técnica na arbitragem. Apesar de não constituir tema novo, os debates permanecem acalorados, notadamente quando é necessário demonstrar qual o verdadeiro papel do assistente técnico na realização de uma prova pericial.  No âmbito do procedimento arbitral, os assistentes técnicos são chamados a atuar quando o juízo nomeia um perito. É nesse contexto que, para colaborar com a realização da prova técnica, as partes podem se valer de assistentes técnicos, os quais, por força legal, são de confiança da parte que os indica e não estão sujeitos a impedimento ou suspeição1.  Não havendo regra específica sobre o assunto na Lei de Arbitragem ou nos regulamentos de arbitragem mais utilizados no Brasil, cabe ao tribunal arbitral organizar a metodologia pericial a ser aplicada ao caso, e, na hipótese de realização de perícia, facultar às partes a indicação de assistente técnico para acompanhamento dos trabalhos periciais. Nesse ponto, nada impede que os árbitros se valham dos princípios estabelecidos pelo direito processual brasileiro, que regulamenta a matéria nos arts. 464 a 480 do Código de Processo Civil ("CPC"), incluindo, o escopo de atuação do assistente técnico.  A literatura nacional a respeito das funções do assistente técnico em arbitragens é escassa2. Entre os poucos estudos realizados, destaca-se, primeiramente, o de Ivam Ricardo Peleias. Em princípio, a doutrina especializada entende que a figura do assistente técnico se assimila ao de um consultor técnico, relatando que: "Constata-se nos processos judiciais e nas arbitragens a evolução do trabalho do assistente técnico. Este, antes, limitava-se a emitir parecer técnico após a entrega do laudo pelo perito. Com o passar do tempo e a tomada de consciência de que o resultado da perícia pode determinar o rumo dos processos, o assistente técnico passou a atuar como consultor técnico, subsidiando seu contratante com os elementos necessários à tomada de decisões e providências nas várias fases das demandas"3.  Seja na condição de assistente ou de consultor técnico, a figura ora discutida se refere aos profissionais nomeados pelas partes para que, em uma arbitragem, auxiliem o perito do tribunal arbitral, mediante a apresentação de laudos críticos. O termo "advocacia técnica"4, não parece adequado para conceituar o trabalho do assistente técnico, cuja função não é a de postulação do direito da parte que o indica, mas tão somente de apresentar uma opinião técnica sob a ótica da tese jurídica desenvolvida. Os assistentes técnicos não opinam sobre questões jurídicas. Atestam o que creem, sob o ponto de vista técnico e estão sujeitos a normas de ordem ética5, as quais estabelecem que este não pode comprometer a sua independência intelectual6. À vista disso, percebe-se que sua função nada difere da do perito. O escopo do trabalho técnico é rigorosamente o mesmo7.  Com efeito, a prova técnica realizada no âmbito de uma arbitragem, com a participação de perito do tribunal arbitral e dos assistentes técnicos das partes é materializada por meio de laudo pericial, que nada mais é do que o resultado de diligências que foram acompanhadas pelos assistentes técnicos das partes, que posteriormente apresentaram seus respectivos pareceres técnicos. Independentemente do tipo de prova técnica a ser produzida na arbitragem, a metodologia aqui discutida leva em conta o princípio processual da cooperação8 (que, ao fim e ao cabo, visa justamente a completude do material probatório9). Desse modo, garante-se que seja plenamente possível às partes questionarem determinado critério técnico adotado pelo perito, permitindo que estas apresentem e justifiquem a aplicação de critério distinto que eventualmente entendam ser mais apropriado, à luz da colaboração que se espera das partes e seus assistentes técnicos.  Nada obstante, o fato de a parte possuir o direito de indicar assistente técnico que seja de sua confiança e que se alinhe à tese por ela defendida, não implica afirmar, automaticamente, que o julgador não possa se convencer das críticas elaboradas por estes assistentes técnicos ao laudo pericial. Com efeito, no processo decisório, os árbitros não estão subordinados às exatas conclusões do laudo pericial, podendo, em sua sentença, levar em consideração os pareceres técnicos (ou laudos críticos) apresentados pelos assistentes técnicos das partes. Isso porque, conquanto a perícia deva ser considerada essencialmente como braço extensivo do tribunal arbitral, isso em nada significa que suas conclusões técnicas devam ser obrigatoriamente adotadas.  O julgador, com toda certeza, deve se ater em primeiro lugar ao laudo produzido pelo perito de sua confiança, mas é preciso ouvir o que as partes e seus assistentes técnicos têm a dizer acerca do laudo pericial elaborado pelo perito de confiança do juízo. A esse respeito, cita-se trecho de recente julgado em que o Superior Tribunal de Justiça ("STJ")10 deixou clara essa possibilidade:  "Cediço que conquanto tenha o juiz, como destinatário da prova, a competência para nomear perito quando acredite necessária a realização de prova pericial a fim de elucidar os fatos, deve ser zeloso na busca pela verdade real, indicando profissional de sua confiança e que possua conhecimento técnico ou científico suficiente para realizar o referido exame (...) Para contradizer laudo pericial elaborado por perito de confiança do juízo, a parte ré deveria trazer aos autos elementos de convicção suficientes a levantar dúvida razoável sobre o trabalho feito, o que não ocorreu no presente caso (...)".   A figura do assistente técnico é vista com a seriedade e importância que tais profissionais ostentam, tal qual previu o próprio CPC quando tratou das perícias complexas. No diploma legal, o legislador inclusive dispõe acerca da possibilidade da indicação de mais de um perito, assim como de a parte indicar mais de um assistente técnico11. O objetivo é evidente: a busca da verdade por meio da contribuição e cooperação.  O que se pretende extrair dessas breves linhas, é que o julgador, mais especificamente o árbitro, não deve estar obrigatoriamente subordinado ao trabalho apresentado pelo perito do tribunal arbitral. Os trabalhos técnicos desenvolvidos em uma arbitragem devem ser todos sopesados com a devida minúcia pelos árbitros, cabendo a estes a valoração que lhes parecer correta. Mário Guimarães, nesse sentido, já dizia: "Quanto a outras provas - provas indiciais, exames periciais, etc, o seu valor depende muito das condições em que se realizem. Os peritos são testemunhas técnicas. Mas o juiz não ficará nunca adstrito à opinião deles"12.  Rejeita-se, a partir dessa premissa, qualquer tipo de delegação dos árbitros ao perito. Este último, apesar de funcionar como auxiliar da justiça, não possui poder jurisdicional. A decisão de direito, seja acolhendo em parte ou mesmo rejeitando os exames periciais e, ao revés, acolhendo teses apresentadas por algum dos assistentes técnicos das partes, pertence unicamente ao julgador13. __________ 1 Nesse sentido é a disposição do art. 466, § 1º do Código de Processo Civil. 2 Entre as poucas obras sobre o assunto, pode-se enumerar: MAIA NETO, Francisco e FIGUEIREDO Flavio Fernando de (coord.). Perícias em Arbitragens. São Paulo: Leud, 2019; PELEIAS, Ivam Ricardo. O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168; GONÇALVES, Eduardo Damião; BITTENCOURT, Rafael. A perícia na arbitragem. A produção de provas técnicas no âmbito do procedimento arbitral e novas tendencias, Revista do Advogado, São Paulo a. 33, n. 119, abr 2013, p. 35-41; MASTROBUONO, Cristina M. Wagner. Pesquisa: Regras de Imparcialidade e Independência na Produção de Provas em Arbitragens in Revista Brasileira de Arbitragem n. 67, jul./set. 2020, p. 32-77. 3 Neste sentido, Ivam Ricardo menciona os ensinamentos de Martinho Ornelas: "A função de consultor técnico do cliente já foi abordada. Ao apresentar a obra de Ornelas, Pinheiro Neto asseverou que o assistente técnico é o advogado técnico da parte, o perito particular, de confiança do advogado da causa. Dentro do possível, tal qual o advogado, deve defender os interesses do cliente, nos limites de sua qualificação profissional e da ética". (PELEIAS, Ivam Ricardo. O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168). 4 Citado no estudo de Ivam Ricardo Peleias (O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168). 5 A esse respeito, vide o disposto no art. 22, item "d" da Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TP 01, que dispõe sobre perícia contábil: "os assistentes técnicos têm o dever inalienável de colaborar para a revelação da verdade e comportar-se de acordo com a boa-fé e com a equidade, além de cooperar entre si e com o perito nomeado, para que se obtenha um resultado da perícia em tempo razoável".  6 Ao menos em matéria de perícia contábil, dispõe o art. 2.3.1 das Normas Brasileiras de Contabilidade P2 (Normas Profissionais do Perito Contábil): "O perito-contador e o perito-contador assistente devem evitar e denunciar qualquer interferência que possam constrangê-los em seu trabalho, não admitindo, em nenhuma hipótese, subordinar sua apreciação a qualquer fato, pessoa, situação ou efeito que possam comprometer sua independência". 7 O estudo de Ivam Ricardo Peleias cita, nesse sentido, clássica lição de Moacyr Amaral Santos, que reconhece a semelhança de funções ao afirmar que "os assistentes técnicos não são senão peritos indicados pelas partes, porquanto exercem funções semelhantes às dos peritos. A distinção entre o perito e o assistente técnico está na nomenclatura e emerge do sujeito processual que o nomeia". (PELEIAS, Ivam Ricardo. O assistente técnico em perícias contábeis: a percepção de advogados à luz da teoria dos papéis, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 52/2017, p. 141-168). 8 Conforme disposto no art. 6º do CPC: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva".  A respeito desse dispositivo, anota José Rogério Cruz e Tucci: "Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado "dever de cooperação recíproca em prol da efetividade", o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal." (Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 13.). 9 Vale anotar ainda que a cooperação frisada também se dá sem sentido material, enquadrando, nesse ponto, a completude do material probatório colhido nos autos. Nesse sentido dispõe o art. 378 do CPC: "Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. A respeito desse dispositivo, anota Vítor de Paula Ramos: "Repetindo o texto do CPC/1973, mas conferindo mais ferramentas para a busca da verdade (como será demonstrado na anotação ao art. 380), traça o legislador brasileiro claramente a relação teleológica entre prova e verdade (vide comentário ao início do capítulo) e a necessidade, para tanto, de que o material probatório seja o mais completo possível (vide comentário aos arts. 370 e ss.). Para a busca da necessária completude tendencial do material probatório, faz-se mister que nenhum sujeito do processo (salvo casos excepcionais) tenha um "direito" de esconder provas. Afinal, "ninguém" significa nenhuma pessoa, não podendo ser interpretado como "alguém", "alguma pessoa". Daí a importância do quanto é dito sobre o tema na anotação ao art. 379." Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 633. 10 STJ, Segunda Turma, REsp 1.694.645/MG, rel. Min. Herman Benjamin, j. 28.11.2017. 11 Nesse sentido, o art. 475 do CPC: Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito, e a parte, indicar mais de um assistente técnico. Referida disposição recebeu pertinentes comentários em obra coordenada por Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer: "Em diversas ocasiões a prova pericial demanda conhecimentos específicos em mais de uma área. É como no caso de uma perícia realizada em ação que discute a logística reversa de resíduos sólidos. Tende a ser preciso, nesta hipótese, que se nomeie um engenheiro ambiental e também um engenheiro de produção, o que se apresenta absolutamente desejável. No mesmo passo, em ação que se discuta a incapacidade absoluta para o trabalho em razão de acidente de veículo, bem como a profunda depressão que acomete o autor, poderá ser necessária a nomeação de um médico do trabalho e de um psiquiatra. Para cada perito que se afigura imprescindível ao deslinde de questões técnicas, haverá a possibilidade de indicação de um assistente técnico". (Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1319-1320). 12 GUIMARÃES, Mário, O Juiz e a Função Jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 310. 13 Nesse sentido, a opinião de Daniel Amorim Assumpção Neves, ao comentar o dispositivo constante do art. 473, § 2º do CPC ("É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia"), cuja base principiológica aplica-se perfeitamente à arbitragem: "Note-se que o dispositivo não proíbe em absoluto a emissão de opiniões pessoais do perito, até porque na maioria das perícias é justamente isso o que se busca. O que não cabe ao perito fazer - e, infelizmente, muitos o fazem - é emitir opiniões pessoais que excedem o exame técnico ou científico a que foi chamado a realizar. E ainda pior quando o perito imagina ser o juiz da causa e passa a emitir opiniões jurídicas sobre os fatos analisados, extrapolando sua função no processo. Nunca é demais lembrar que o perito é um expert em determinada área de conhecimento que auxilia o juiz no esclarecimento dos fatos, ou seja, na parte jurídica não cabe a interferência do perito. Afinal, iura novit curia, ou seja, o juiz sabe o Direito (ou ao menos deveria sabê-lo)". (Novo Código de Processo Civil - Lei 13.105/2015. São Paulo: Ed. Método, 2015, p. 276).
A arbitragem é conhecida por ser um método de resolução de conflitos mais atraente do que o processo judicial por uma série de elementos enaltecidos pela doutrina arbitral: confidencialidade, celeridade, livre escolha dos julgadores pelas partes, flexibilidade procedimental, inter alia1. Contudo, um elemento de grande importância para a resolução justa de um litígio, e ainda pouco explorado pela doutrina como uma faceta das vantagens da arbitragem, é produção da probatória. Certamente, a qualidade da produção da prova na arbitragem se diferencia daquela no âmbito do processo judicial, envolto em uma estrutura claramente deficiente. Com efeito, a produção probatória na arbitragem é dotada de elementos flexíveis e adaptáveis ao caso concreto, sem que se precise ater-se aos dispositivos que incidem no processo judicial para a sua a regulação, incluindo, mas não se limitando, à ordem de sua produção2. Assim, por exemplo, no âmbito dos litígios decorrentes de operações societárias, constitui prática normal que as partes, em conjunto com o tribunal arbitral, adotem métodos de modo a otimizar a produção da prova. Nesse sentido, em uma arbitragem discutindo avaliação de empresas, podem os árbitros decidir, antes mesmo de realizar uma verdadeira audiência, que uma reunião de trabalho deva ser feita entre os advogados e os assistentes técnicos das partes de modo a acertarem pontos de convergência e deixarem claros pontos de divergência expostos nos pareceres técnicos apresentados. Trata-se do tipo de medida que, usualmente, não se adota no processo judicial. É exatamente por causa dessa flexibilidade3 que a arbitragem pode se revelar de utilidade ímpar ao mercado agroindustrial brasileiro. Sua utilidade beneficiará a boa resolução, seja de litígios que decorram de contratos agroindustriais, daqueles de integração vertical4, bem como de contratos agrários5. Como em todas as atividades comerciais, dentre as quais se incluem aquelas desenvolvidas no âmbito das avenças agroindustriais, divergências de baixa, média ou alta complexidade podem surgir. Normalmente, os litígios contemplam questões como qualidade de eventual commoditie agrícola, processamento e armazenamento de produtos, possibilidade de rotação de culturas agrícolas em instrumentos de arrendamento e/ou parceria agrícola, dentre outros. Um primeiro exemplo em que se poderia contemplar uma produção probatória diferenciada nos litígios decorrentes de contratos agroindustriais se dá nas operações de compra e venda de cana-de-açúcar. Não raro, as partes divergem sobre o preço da tonelada da referida commoditie agrícola e precisam, desde o início do conflito, produzir prova que ateste o chamado Açúcar Total Recuperável ("ATR") da cana-de-açúcar, cujo índice é definido por setores autorreguladores do mercado de cana-de-açúcar, como o chamado "Sistema Consecana"6.  Para tanto, a depender da medida buscada por uma parte eventualmente insatisfeita com o índice do ATR da cana aferido, caberia um dever de produzir provas no curso do procedimento, no sentido de se ter acesso aos laboratórios existentes na usina que recebe a cana-de-açúcar, para que a parte reclamante pudesse atestar a regularidade da aferição e dos testes feitos na cana-de-açúcar entregue, podendo, inclusive colher contraprovas. Tal prova, produzida pelas próprias partes por meio de suas testemunhas técnicas no curso do procedimento arbitral e certamente submetida ao chamado "witness conferencing"7 substituiria uma eventual demanda de tutela de evidência junto ao Poder Judiciário para a sua obtenção. Um segundo exemplo residiria nos instrumentos de arrendamento rural e de parceria agrícola regidos por regramentos antigos e objeto, até os dias atuais, de estudo e interpretação, como o Estatuto da Terra8. Nessas avenças, o proprietário de determinada área rural (uma fazenda, por exemplo), cede o terreno a uma contraparte, que terá o direito de plantar na área e gerar produtividade9. Um ponto que pode chamar atenção nesse tipo de negócio diz respeito à possibilidade de o arrendatário - nos casos de arrendamento rural - ou o parceiro-outorgado - no caso de parceria agrícola - explorarem outras culturas na terra cedida que não aquela objeto de contratação prévia, mas que seja pontual, e gere benefícios ao solo e não cause prejuízos ao arrendante ou parceiro-outorgante. Tal tipo de impasse certamente envolveria não apenas sofisticadas teses de direito contratual, mas também de prova técnica, cujo escopo seria a avaliação da prática de rotação de culturas no solo e suas consequências. Com efeito, nesse tipo de contratação, é normal que o parceiro outorgado seja um agricultor com conhecimento técnico no manejo do solo e na agricultura convencional, decidindo, no curso da relação contratual e caso entenda necessário e benéfico à relação entre as partes, promover eventual rotação de cultura, com vistas à melhoria da qualidade do solo10, sua proteção contra a erosão, dentre outras vantagens. Um exemplo, nesse sentido, se dá quando ocorre a prática de adubação verde, como as leguminosas, na cultura de cana-de-açúcar. A doutrina técnica, a esse respeito, aduz o seguinte: "A prática da adubação verde com leguminosas na cultura da cana-de-açúcar é recomendada durante a reforma do canavial (CARDOSO, 1956), proporcionando as seguintes vantagens: não implica na perda de um ano agrícola; não interfere na germinação da cana; apresenta custos relativamente baixos; promove aumentos significativos nas produções de cana e de açúcar em pelo menos dois cortes; protege o solo contra erosão e evita a multiplicação de ervas daninhas [...] Assim, tem-se a preocupação constante com a recuperação ou a manutenção da fertilidade dos solos para obtenção de rendimentos econômicos, tanto de açúcar quanto de energia renovável oriunda da cana. A partir disso, recomenda-se há pelo menos cinco décadas, a prática da adubação verde, sobretudo com a utilização de leguminosas, por ocasião da reforma do canavial, após o quarto ou quinto corte e antes do plantio de ano-e-meio, para estabelecer a cobertura vegetal no solo quando em pousio (MASCARENHAS et al., 2008)."11 Os pontos acima elencados, por sua especificidade e tecnicidade, demandam uma apuração técnica cautelosa em caso de conflito entre as partes. O uso do processo judicial para a resolução desse tipo de questão se revela inadequado em virtude das já conhecidas deficiências do sistema judicial (e jamais do magistrado, que se sujeita a tal sistema). Dessa forma, a adequação do uso da arbitragem é inquestionável. Os casos objeto dos dois exemplos hipotéticos supracitados exigem a obtenção de prova, de parte a parte, para suportar seus pleitos. No âmbito arbitral, para que a missão jurisdicional seja plena e efetiva12, isto é, que haja a entrega de uma sentença exequível e definitiva (haja vista a ausência de recurso contra a sentença arbitral), a prova a ser produzida pelas partes pode ser crucial, seja ela documental, fática ou técnica. Ademais, quanto mais cedo as partes se prepararem, formando tal acervo probatório com antecedência13, mais eficiente será a condução da arbitragem e melhor o seu resultado. ___________ 1 Ver, a esse respeito NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem no Agronegócio: flexibilidade, tecnicidade e adequação. In: REIS, Marcos Hokumura (coord.). Arbitragem no Agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018, p. 21-35. 2 Nesse sentido, ver CARMONA. Carlos Alberto. O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan.-abr. 2004. 3 A respeito do assunto ver: Flexibilidade na forma de produção da prova no procedimento arbitral - Migalhas. Acesso em 25 fev. 2023. 4 A esse respeito, vide a Lei nº 13.288, de 16 de maio de 2016, que dispõe sobre os contratos de integração, obrigações e responsabilidades nas relações contratuais entre produtores integrados e integradores, e dá outras providências: L13288 (planalto.gov.br). 5 Apesar de não ser objeto dessas linhas, e eventual dicotomia entre contratos agroindustriais e contratos agrários é bem colocada por Francisco de Godoy Bueno: "A peculiaridade dos contratos agroindustriais em relação a outros contratos de integração entre empresas está na especialidade da atividade exercida por uma das partes - a empresa agrária. Ao pressupor que um dos contratantes exerce atividade agrária, verifica-se nesses contratos a dependência do cumprimento das suas prestações ao ciclo agrobiológico. Os contratos agroindustriais são, por conseguinte, contratos agrários pela sua vinculação com o fato técnico e o ciclo agrobiológico". (Contratos agrários agroindustriais: análise à luz dos contratos atípicos. São Paulo: Almeida, 2017, p. 201). 6 Como a eficiência do mercado está intimamente relacionada à quantidade de produtos produzidos pelas usinas, que, por sua vez, dependem da quantidade de açúcares extraídos da cana, a precificação da cana-de-açúcar pelo Sistema Consecana é fundado na qualidade da cana-de-açúcar para o objetivo da cadeia da agroindústria canavieira. Por isso, pelo Sistema Consecana, o preço de uma tonelada de cana deverá ser apurado pela quantidade total de açúcares (glicose, sacarose e frutose) extraídos de um processo teórico industrial de moagem da cana-de-açúcar, com eficiência de 91,5%, e que são denominados de Açúcar Total Recuperável ou "ATR". 7 Ver, a esse respeito: A evolução do conceito de prova técnica na arbitragem - Migalhas. Acesso em 26 fev. 2023. 8 Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 (L4504 (planalto.gov.br). Vide também o Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966, que regulamenta diversas seções do Estatuto da Terra (D59566 (planalto.gov.br) 9 Segundo explica Thiago Soares Gerbasi: "Na prática, na parceria agrícola empresarial, o cedente exerce o ato de destinação do seu imóvel, elegendo a atividade de exploração e a cultura específica a ser produzida, contudo, repassa ao contratante sem terra, a gestão produtiva da atividade. Ou seja, o cedente não exerce mais integralmente o poder de destinação do fundo rústico e, portanto, abdica da condição de empresário em favor do contratante sem terra" (Contratos de parceria rural. Qualificação, regime jurídico e questões polêmicas. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo. 228. 10 A importância do bom manejo do solo é assim explicado pela doutrina técnica: "O manejo inadequado do solo, ao longo do tempo, trazer várias consequências, exaurindo-o de suas reservas orgânicas e minerais, transformando-o em terras de baixa fertilidade e erodindo grande parte do solo podendo tomar a área imprópria para o cultivo (Andrade, 1982)". UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Utilização de Adubação Verde na cultura da Cana-de-Açúcar, Piracicaba, 2005, p. 4. 11 MENDES, Fernanda Latanze. Eficiência de absorção de fósforo por diversas espécies de adubos verdes e aproveitamento desse nutriente pelas culturas de cana-de-açúcar e de arroz. Tese (Solos e Nutrição de Plantas). Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2010, p. 26-27. Ver, ainda, CACÉRES, Neivaldo Tunes. Adubação verde com leguminosas em rotação com cana de açúcar (Saccharum spp). Dissertação (Solos e Nutrição de Plantas). Universidade de São Paulo, Piracicaba, 1994, p. 1-2 e 16 e CRUZ, Marcos Roberto de Oliveira; MAGALHÃES, Marcelo Marques de. Rotação de culturas e efeito sobre os custos na reforma de canavial na região da alta paulista, Fórum Ambiental da Alta Paulista, v. 9, n. 7, 2013, p.-96-97. 12 Oportuna, nesse sentido, a lição de José Roberto Bedaque: "Processo efetivo é aquele que, observado o equilíbrio entre os valores segurança e celeridade, proporciona às partes o resultado desejado pelo direito material (...)" (Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 49). 13 No que tange à distribuição do ônus probatório na arbitragem, é diga de nota a lição de Octávio Fragata Martins de Barros: "O princípio da igualdade, imposto aos árbitros, significa também, portanto, que o árbitro deve considerar os argumentos apresentados por ambos os lados com o mesmo critério, aplicando-lhe o mesmo ônus da prova. Em outras palavras, o árbitro deve aplicar a mesma cautela na análise dos argumentos propostos pelo demandante ou demandado".(Como Julgam os Árbitros: uma leitura do processo decisório arbitral. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 126).
Um dos temas que vêm ganhando muita relevância na seara da arbitragem nos últimos anos diz respeito à extensão do dever de revelação dos árbitros, notadamente no que tange às dúvidas razoáveis sobre a independência e a imparcialidade da pessoa que se dispõe a exercer a função de árbitro. Diz-se extensão, pois certos fatos que, normalmente, não eram revelados pelos árbitros, passaram a ser, seja pela própria iniciativa da pessoa indicada como árbitro, seja pelos constantes pedidos de esclarecimentos formulados pelas partes, ou pelo entendimento manifestado pelos tribunais superiores no Brasil em recentes decisões1. A questão é de extrema relevância e, recentemente, foi o foco das atenções da comunidade arbitral não só no Brasil, mas no mundo, em razão da decisão proferida pela Câmara Comercial Internacional da Corte de Apelação de Paris em 10 de janeiro de 2023. O caso em questão dizia respeito a recurso com pedido de anulação de sentença arbitral parcial proferida por Tribunal Arbitral formado sob a égide de uma arbitragem internacional administrada pela Câmara de Comércio Internacional ("CCI"). A disputa no caso se deu entre duas partes de origem africana, o Port Autonome de Douala ("PAD") e o Douala International Terminal ("DIT"), tendo como pano de fundo contrato de concessão assinado em 28 de junho de 2004, com duração de 15 anos, para a gestão e a operação do modernizado terminal de contêineres do Porto de Douala ("Contrato"). Durante a execução do Contrato, surgiu uma disputa entre as partes em relação a distribuição das receitas provenientes do estacionamento de contêineres e de mercadorias na área de concessão. Em 16 de janeiro de 2019, o DIT iniciou uma arbitragem perante a Corte Internacional de Arbitragem da Câmara Internacional de Comércio em Paris ("CCI"), com base no art. 31 do Contrato. O DIT nomeou o Sr. Hugo Barbier, como coárbitro. O PAD nomeou o Sr. Achille André Ngwanza, como coárbitro. Os coárbitros nomearam o Sr. Thomas Clay como presidente do tribunal arbitral. Por sentença parcial datada de 10 de novembro de 2020, o Tribunal Arbitral decidiu, inter alia, pela condenação do PAD, de modo que este indenizasse o DIT pelos danos causados e decidiu que o montante da compensação seria calculado em proporção ao período durante o qual o DIT fora privado da oportunidade de participar de um processo de concorrência internacional, o que lhe havia causado uma perda de 58,6 milhões de euros por todo o período da concessão de 15 anos, em relação ao período efetivo entre o final do Contrato e o primeiro dia da nova concessão, viabilizada após a implementação da nova licitação. Decidiu que, se o DIT recebesse a nova concessão, a duração da compensação recebida seria deduzida da duração da nova concessão. Contra tal sentença parcial, o PAD apresentou, em 14 de dezembro de 2020, perante a Corte de Apelação de Paris recurso de anulação. Paralelamente, no contexto do procedimento arbitral, em relação aos outros pontos em litígio no mesmo tribunal arbitral, o PAD apresentou, em 20 de abril de 2021, um pedido de impugnação do presidente do tribunal arbitral perante a Corte Internacional de Arbitragem da CCI. Em 12 de maio de 2021, a Secretaria da CCI notificou as partes sobre a rejeição do pedido de impugnação do árbitro presidente. Finalmente, diante da rejeição do pedido de impugnação realizado pelo PAD contra o árbitro presidente, o PAD ingressou com novo pedido de anulação (nesse caso, em razão da sentença final prolatada), sob a alegação de irregularidade na constituição do tribunal arbitral. A irregularidade suscitada se deu no seguinte contexto: o árbitro presidente, no curso do procedimento, publicou nota de pesar pelo falecimento do principal patrono do DIT, o Professor Emmanuel Gaillard. Em tal nota, além dos elogios de praxe, afirmou que "o consultava antes de qualquer escolha importante"2. Tal menção se deu num contexto em que o árbitro presidente não só lidava com uma parte representada pelo escritório do qual pertencia o Professor Emmanuel Gaillard como também atuava em outros casos, dentre os quais uma audiência ocorreria em semanas, na qual o mesmo árbitro presidente também atuava como árbitro em caso envolvendo parte defendida pelo escritório do Professor Emmanuel Gaillard. Tais informações não foram reveladas no curso da arbitragem pelo árbitro presidente. Para a Corte de Apelação de Paris, tais fatos constituem circunstância que, sem que se coloque em jogo a integridade intelectual e profissional do árbitro impugnado, era de natureza a fazer com que as partes pensassem que o presidente do tribunal arbitral não estaria livre de seu julgamento e, assim, criar uma situação ao PAD de dúvida justificada quanto à independência e imparcialidade do árbitro impugnado3. Apesar de não ter entrado diretamente no mérito das consequências da ausência do cumprimento do dever de revelação, o acórdão de lavra da Corte de Apelação de Paris serve de alerta para a comunidade arbitral, em especial, a brasileira, sobre a importância do cumprimento de tal dever. É evidente que, certas situações, que envolvem as partes, seus patronos e os árbitros, dispensam a revelação prévia, ainda que um dos candidatos ao posto de árbitro tenha realizado algum serviço para o escritório de advocacia de uma das partes4. São exatamente as situações enumeradas na conhecida Lista Verde provida pelas Diretrizes da IBA sobre Conflito de Interesses na Arbitragem Internacional5. Em especial, situações corriqueiras, em que, por exemplo, o árbitro participa de painéis de congresso ou de bancas de mestrado ou doutorado com um dos patronos das partes. Mas há um limite para o razoável, há um limite para que o meramente subjetivo se torne objetivo. O que se quer dizer é, em regra, as informações eventualmente não reveladas por um árbitro não são, per se, suficientes para gerar uma dúvida justificada acerca da independência e imparcialidade do aludido profissional6. Notadamente, quando as eventuais informações não reveladas estão sob domínio público, e assim, do ponto de vista objetivo, não necessariamente acarretam o impedimento do árbitro. No entanto, o caso ora comentado trouxe um ponto fora da curva: a não revelação de uma grande proximidade, aliada a afirmações de cunho muito pessoal, como o fato de o árbitro consultar o patrono da parte antes de qualquer escolha importante, culminaram no entendimento de que o tribunal arbitral fora irregularmente constituído. Transpondo o caso ora comentado para o direito brasileiro, deve-se observar que a eventual dúvida não revelada, não deve ser caracterizada como mínima (como pretende impor o Projeto de Lei Federal nº 3.293/2021, ou "PL Antiarbitragem"7, mas sim dúvida justificada, aquela de caráter objetivo, a qual deve ser imperiosamente revelada pela pessoa que se dispõe a exercer a função de árbitro8. Com efeito, a plena confiança das partes no árbitro e em sua imparcialidade apenas se dá com o devido exercício do dever de revelação9, ainda que as eventuais revelações sejam questões simples, dispostas em domínio público, mas que tenham relevância aos olhos de quem realmente litiga na arbitragem, isto é, as partes. São pontos que justificam a seriedade com que deve ser exercida atividade jurisdicional10. __________ 1 A esse respeito, ver, por todos: TJ-SP. AC: 10564004720198260100 SP 1056400-47.2019.8.26.0100, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 25/08/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 25/08/2020, conhecido como "Caso Alper". 2 Ver, a esse respeito: IN MEMORIAM - Emmanuel Gaillard (1952-2021), par Thomas Clay - Le Club des Juristes. Acesso em 28 jan. 2023. 3 No original, assim estabeleceu a Câmara Comercial Internacional da Corte de Apelação de Paris: "En revanche, le fait d'établir un lien entre l'existence des liens personnels étroits précités et une procédure d'arbitrage en cours, par la mention : « c'est sous ses nouvelles couleurs que je devais le retrouver dans trois semaines pour des audiences où il agirait comme conseil et moi comme arbitre, et je me réjouissais d'entendre à nouveau ses redoutables plaidoiries au couteau, où la précision et la hauteur de vue séduisaient bien plus encore que n'importe quel effet de manche. Ce rendez-vous n'aura pas lieu, pas plus que nos rencontres régulières (.) » associée à celle selon laquelle, de son côté, il le consultait « avant tout choix important », alors que l'arbitrage mentionné dont il était le président se poursuivait entre les mêmes parties, constitue une circonstance qui, sans remettre en cause l'intégrité intellectuelle et professionnelle de l'intéressé, était de nature à laisser penser aux parties que le président du tribunal arbitral pouvait ne pas être libre de son jugement et ainsi créer dans l'esprit du PAD un doute raisonnable quant à l'indépendance et l'impartialité de cet arbitre". 4 Nesse sentido, é o entendimento de Carlos Eduardo Stefen Elias: "Em geral, o mero fato de o árbitro ter realizado um único serviço com ou para o escritório de advocacia que representa uma das partes não consiste em causa para a aparência de parcialidade, especialmente se o negócio tiver sido de minimis, assim como ocorre com a prestação direta de serviço do escritório do árbitro para a própria parte" (Imparcialidade dos árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 152). 5 A esse respeito, ver IBA Guidelines on Conflict of Interest NOv 2014 TEXT PAGES.indd (ibanet.org). Acesso em 28 jan. 2023. Sobre a aludida Lista Verde, cita-se o entendimento de Daniela Vicente de Almeida: "Por último, surge-nos a lista verde que enumera as circunstâncias que não põem em causa a isenção dos árbitros, ou seja, cuja revelação dos factos não é exigida aos árbitros por se considerar que não estão em causa conflitos de interesses. São exemplos desses factos as opiniões que tenham sido dadas pelo árbitro num texto acadêmico ou num jornal sobre a matéria alvo da arbitragem; o facto e de um advogado terem sido ambos nomeados como árbitros num outro processo arbitral ou o facto de o árbitro ter frequentado a mesma faculdade que outro árbitro ou advogado de uma das partes, etc". (O dever de revelação como problema de independência e imparcialidade dos árbitros. Coimbra: Almedina, 2018, p. 137). 6 Esse é, inclusive, o entendimento de Daniela Vicente de Almeida: "Nesta senda, não nos parece crucial que o árbitro tenha de revelar todas as circunstâncias em que tenha contactado previamente com um dos intervenientes no processo: o que importa garantir é que esses factos não influenciam o modo como o árbitro decidirá aquele processo e que aquelas circunstâncias não representam, para as partes, um motivo que as façam suspeitar do árbitro se por hipótese venham a ter conhecimento delas mais tarde". (O dever de revelação como problema de independência e imparcialidade dos árbitros. Coimbra: Almedina, 2018, p. 138). 7 Ver, a esse respeito: Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021 - Migalhas. Acesso em 28 jan. 2023. 8 Conforme a precisa lição de Ricardo Dalmaso Marques: "Árbitros devem ponderar se a não revelação poderá ser suscitada posteriormente como causa razoável de invalidade do processo e da sentença - ou de denegação de homologação, se estrangeira -, por não se ter obtido um consentimento informado das partes para a sua contratação. Devem ponderar apenas se a informação é desconhecida, relevante e necessária, e não se há riscos de impugnações descabidas com base nos fatos informados (O dever de revelação dos árbitros. São Paulo: Almedina, 2018, p. 255-256). 9 Segundo Alfonso Gomez-Acebo: "On the one hand, they provided for the right of any disputing party to challenge an arbitrator 'if circumstances exist that give rise to justifiable doubts as to the arbitrator's impartiality or independence'. On the other hand, they protected the parties' right of challenge by imposing on every arbitrator a continuing duty of disclosing to the parties 'any circumstances likely to give rise to justifiable doubts as to his impartiality or independence'." (The Standard of Impartiality and Independence, International Arbitration Law Library, vol. 34, 2016, p. 69-96). 10 Nesse sentido, é o entendimento de Andréa Galhardo Palma e Renato de Toledo Piza: "Como ponto de partida, é preciso entender que os fatos e circunstâncias merecedores de revelação são todos aqueles que possam despertar dúvida quanto à esperada neutralidade do árbitro pela perspectiva da parte (aos olhos da parte). Dizendo o mesmo, mas por outro ângulo, não pode o árbitro deixar de informar fatos que apenas ele, pessoalmente, considere irrelevantes. Muito pelo contrário. Tomar o problema pela perspectiva da parte reclama que o dever de revelação seja amplo, evitando-se o risco da omissão quanto ao fato que muito embora o julgador considere irrelevante, poderia não ser assim percebido pelas partes". (Dever de revelação do árbitro: direito subjetivo das partes ou discricionariedade do árbitro? In: Direito Internacional Aplicado. CUNHA, Fernando Antonio Maia da; LAZZARESCHI NETO, Alfredo Sérgio (Coords.). Vol. II. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 413-414).
Um dos temas mais discutidos na seara arbitral nos últimos anos diz respeito à arbitrabilidade, tanto subjetiva quanto a objetiva. Após intensos debates, decisões polêmicas, elaboração de teses, dissertações e diversos trabalhos científicos a respeito desse assunto1, o Brasil aprimorou o seu sistema arbitral, estabelecendo normas que ampliaram o escopo da arbitrabilidade de determinados direitos, outrora taxados de totalmente indisponíveis. Foi dessa forma que se passou a reconhecer no direito brasileiro, nos termos do art. 1º, § 1º e § 2º da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") a possibilidade da administração pública (seja direta ou indireta) participar de arbitragens, discutindo, por evidente, direitos patrimoniais disponíveis e respeitando o princípio da publicidade. Encerrou-se aqui, tema dificílimo a respeito da arbitrabilidade subjetiva no âmbito do direito público. Ainda no tema da arbitrabilidade subjetiva, o legislador brasileiro criou a regra disposta na Lei nº 6.404/1976 ("Lei das S.A"), ao estabelecer no novel art. 136-A: "A aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social, observado o quorum do art. 136, obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações, nos termos do art. 45". Ou seja, firmou-se o entendimento segundo o qual é dispensável a unanimidade para a validação de cláusula arbitral estatutária, mantendo-se hígido o clássico princípio da maioria no direito societário2. No campo da arbitrabilidade objetiva, ou, o que pode ser submetido à arbitragem, ainda persistem estudos a respeito de determinados assuntos que poderiam ou não ser submetidos à arbitragem. Temas como a arbitrabilidade do direito tributário3, do direito ambiental4 e do direito de família5, inter alia, ainda são objeto de estudos e não há consenso na doutrina e na jurisprudência a respeito do enquadramento final da arbitrabilidade dos direitos vinculados às aludidas áreas. Nada obstante, não se pode desconsiderar os eventuais efeitos patrimoniais que possam decorrer de determinado assunto, tanto ligado ao direito tributário, ao direito ambiental ou ao direito de família. Havendo patrimonialidade e disponibilidade, direitos inerentes àquelas áreas poderiam, em tese, ser submetidos à arbitragem, eis que se coadunam com a disposição constante do art. 1º da Lei de Arbitragem. Para que tais matérias (ainda que classicamente consideradas inarbitráveis) possam ser bem dirimidas no campo arbitral, o sistema arbitral brasileiro, inspirado nos melhores modelos internacionais6, adotou a regra da livre escolha do árbitro pelas partes em disputa. Tal livre escolha advém da ampla autonomia que reveste o processo arbitral. É na autonomia que se encontra o grande pilar de sustentação da arbitragem, não só no Brasil, mas em qualquer outra legislação estrangeira sobre o tema. E para que a autonomia prevaleça, é preciso que não haja regras que limitem a escolha do árbitro pela parte, ressalvada as normas constantes dos arts. 13 e 14 e seus correspondentes incisos, da Lei de Arbitragem. Nesse ponto, é de suma importância ressalvar, uma vez mais, os malefícios do Projeto de Lei Federal nº 3.293/2021, que tem no seu escopo a alteração da Lei de Arbitragem, para, dentre outros, "para disciplinar a atuação do árbitro" ("PL Antiarbitragem"). A prevalecer o que consta do aludido PL, a autonomia da parte é ferida de morte e o sistema arbitral se desmantelará7. Não há dúvida da importância dos profissionais que, eventualmente, possam exercer a função de árbitro. As principais câmaras arbitrais brasileiras contêm listas meramente sugestivas (não vinculativas) de profissionais, de toda sorte de especialidade, que podem ser escolhidos pelas partes para atuarem como árbitro. Tais listas surgiram num contexto em que a arbitragem era pouco conhecida no Brasil e à câmara, como instituição administradora do processo arbitral, cabia prover serviços de excelência às partes em disputa, e, por demanda do empresariado, divulgavam listas com nome de profissionais especialistas8. Trata-se de uma praxe no mercado da arbitragem brasileira por demanda do empresariado, sendo inverídica a sugestão de que tais listas teriam por finalidade a criação de um círculo fechado de profissionais. Ademais, o uso das listas deixou de ser preponderante, após o avento da Lei nº 13.129/2015, que acresceu o novo § 4º ao art. 13 da Lei de Arbitragem9, além do fato de importantes instituições arbitrais com forte atuação na arbitragem doméstica brasileira, como o CAM-CCBC10 e a CCI11 divulgarem a composição dos seus respectivos tribunais arbitrais12. Em breve mirada, nota-se, nessas composições, não apenas a indicação de profissionais que não constam das respectivas listas de árbitros13, mas a diversidade dos tribunais compostos e da extensa gama de profissionais nomeados (das mais diversas especialidades). Tudo fruto da ampla autonomia das partes, que, de forma livre, fazem essa escolha e por ela se responsabilizam, ainda que o profissional nomeado possua uma considerável quantidade de arbitragens em curso, ou que a parte saiba que o árbitro nomeado já funcionou como advogado de uma das partes contendentes ou tenha apresentado parecer ou opinião legal para o escritório de advocacia que patrocina os interesses de uma das partes na disputa. Não há nada de errado, ilegal ou antiético nessa prática, tampouco ela geraria o aumento de tempo de tramitação das arbitragens ou o ingresso de ações anulatórias. E mais, não há qualquer relação lógica entre tal prática e o sugerido afastamento do ingresso de novos profissionais no mercado, para o exercício da função de árbitro14. O exercício da função de árbitro demanda uma imensa dose de seriedade ao profissional que se presta a tal múnus. Arbitragem é um processo de início, meio e fim, em que a sentença arbitral é o último ato da missão jurisdicional conferida ao árbitro. Como já se afirmou em outros estudos, um dos grandes motivos para o sucesso da arbitragem é o trabalho realizado pelos árbitros. A arbitragem, como se sabe, vale o que vale o árbitro15, pois é dele a responsabilidade por entregar a prestação jurisdicional. É dele a obrigação, de resultado, de proferir uma sentença exequível e, enfim, entregar a tutela jurisdicional. A partir dessa premissa, diversos elementos são imprescindíveis: a par dos cruciais elementos da independência e imparcialidade, o árbitro deve ser, nos termos da lei, competente, diligente e discreto16. Necessita também ter disponibilidade, ser eficiente, saber trabalhar em harmonia com demais membros do tribunal arbitral, ter coragem para decidir17 e, acima de tudo, ser ético18. São esses os requisitos e qualidade de um profissional que aspira exercer a função de árbitro. O que se procura colocar nessas breves linhas, é que a arbitrabilidade de direitos, tampouco a quantidade de casos atribuídos a um profissional, não são fatores que possam se confundir com a escolha dos árbitros. O sistema arbitral é um campo aberto e à disposição das partes em disputa para que escolham o árbitro de sua preferência, desde que preencha os requisitos dos já citados arts. 13 e 14 da Lei de Arbitragem. E, aqui, vai-se além: conquanto o profissional a ser indicado tenha conhecimento da matéria em disputa (ou da matéria arbitrável), é imperioso que tal profissional tenha em mente que sua missão vai muito mais além do que o mero conhecimento teórico de determinada área do direito. É preciso ter senso, não só de realização de justiça, mas de administração da justiça19, em linha com as peculiaridades do sistema arbitral, totalmente autônomo e assaz diverso do sistema judicial. A prevalecer o texto contido no PL Antiarbitragem, não haverá a entrada de novos especialistas no mercado. A revés, haverá escassez de profissionais, uma vez que cerceará a escolha dos usuários quanto aos profissionais mais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, muito especializadas, para as quais o mercado necessita de profissionais capacitados tanto na matéria objeto da disputa quanto na condução dos processos arbitrais. É por essas e outras razões, que não há motivos para que o PL Antiarbitragem seja levado adiante, sob pena de completo esvaziamento da arbitragem no Brasil. __________ 1 Para uma noção maior a respeito dos estudos científicos realizados sobre arbitragem, ver: Banco de Teses « CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 17 dez. 2022. 2 A respeito do tema, ver, por todos: FRANZONI, Diego. Arbitragem societária. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. 3 A respeito do tema, ver, por todos: ESCOBAR, Marcelo Ricardo. Arbitragem Tributária no Brasil. São Paulo: Almedina, 2017. 4 A respeito do tema, ver, por todos: GONÇALVES, Eduardo Damião. Arbitrabilidade objetiva. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008. 5 A respeito do tema, ver, por todos: CALDERÓN. Ricardo Lucas. Ressignificação da indisponibilidade dos direitos: transigibilidade e arbitrabilidade nos conflitos familiares. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, 2022. 6 A legislação arbitral brasileira se baseou em m diplomas de importância significativa, como a Lei Espanhola de Arbitragem Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro (versão atualizada) e a Lei Modelo da Uncitral (A Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional é uma lei modelo preparada pela UNCITRAL e adotada pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional em 21 de junho de 1985 e revista em 2006. Acessível aqui. Acesso em 17 dez. 2022). 7 Faz-se aqui referência a outros escritos publicados nesta coluna a respeito do tema: Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021 - Migalhas; Árbitros e arbitragens Parte II: PL 3.293/21, eficiência da arbitragem - Migalhas; Árbitros e arbitragens Parte III: a Nota Técnica do CIArb Brazil - Migalhas e O PL antiarbitragem e os prejuízos para o agronegócio - Migalhas. Acesso em 15 dez. 2022. 8 A esse respeito, ver: NUNES, Thiago Marinho. As Listas Fechadas de Árbitros das Instituições Arbitrais Brasileiras. Arbitragem: Estudos Sobre a Lei nº13.129, de 26.5.2015 (org.: Francisco José Cahali, Thiago Rodovalho e Alexandre Freire). São Paulo: Saraiva, 2016, p. 543-558. 9 Nesse sentido: art. 13 § 4o As partes, de comum acordo, poderão afastar a aplicação de dispositivo do regulamento do órgão arbitral institucional ou entidade especializada que limite a escolha do árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal à respectiva lista de árbitros, autorizado o controle da escolha pelos órgãos competentes da instituição, sendo que, nos casos de impasse e arbitragem multiparte, deverá ser observado o que dispuser o regulamento aplicável.  10 Nesse sentido, ver: Tribunais Arbitrais - Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (ccbc.org.br). Acesso em 15 dez. 2022. 11 Nesse sentido, ver: ICC Arbitral Tribunals - ICC - International Chamber of Commerce (iccwbo.org). Acesso em 15 dez. 2022. 12 Outra importante instituição arbitral brasileira, a Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil ("CAMARB"), divulgará, a parir de 2023, a composição dos tribunais arbitrais atuantes perante a essa instituição. 13 Observe-se, que a CCI sequer possui lista de árbitros. 14 A esse respeito, ver. Notas sobre a arbitragem no Direito de Família e o PL 3.293/21. Acesso em 15 dez. 2022. 15 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: "a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem". Fonte. Acesso em 16 dez. 2022. 16 Art. 13, § 6º   da Lei de Arbitragem: "No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição". 17 Sobre o tema ver: LALIVE, Pierre. Du courage dans l'arbitrage internacional. Mélanges en l'honneur de François Knoepller. Collection Neuchateloise. Helbing & Lichtenhahn, Bâle, 2005, pp. 157-160. Fonte. Acesso em 16 dez. 2022. 18 A esse respeito ver NUNES, Thiago Marinho. A conduta ética na arbitragem sob a perspectiva do árbitro e seus auxiliares. 25 anos da Lei de Arbitragem (1996-2021): história, legislação, doutrina e jurisprudência (coord. Arnoldo Wald e Selma Ferreira Lemes). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 621-649. 19 A esse respeito, no campo da arbitragem internacional, Eduardo Silva-Romero assevera, com propriedade: "It should not be overlooked that many of the most successful practitioners in the international arbitration have atypical credentials, and we should above all remember that international arbitration is all about administering justice, and for that, knowing the law is never enough" (Legal fictions in the language of international arbitration. Recueil des cours de l'Académie de Droit International de La Haye, v. 425, p. 381, 2022).
Pretende-se, nessas breves linhas, tecer algumas reflexões a respeito da natureza dos prazos fixados no âmbito da arbitragem. Conforme já se pontuou em anterior escrito1, o processo arbitral não comporta o excesso de rigor, típico das lides estatais, sob pena de se esvaziar completamente as atenções sobre o mérito, que, ao fim e ao cabo, é o que verdadeiramente importa na arbitragem. Nesse sentido, diante do nítido caráter flexível da arbitragem, não há espaço para discussões a respeito da ocorrência de preclusão, seja temporal, consumativa ou lógica no âmbito da arbitragem2, preservado, por evidente, o necessário formalismo, o qual, nas lúcidas palavras de Flávio Luiz Yarshell, é "imprescindível, como penhor de legalidade"3. Com efeito, o legislador não revelou (com razão) qualquer preocupação em fixar regras concernentes a aspectos que levassem em conta o fator tempo durante a fase arbitral. Até mesmo os prazos para prolação da sentença arbitral e a decisão acerca dos pedidos de esclarecimentos face à sentença são passíveis de modificação pelas partes4. Talvez, essa despreocupação do legislador em fixar regras mais específicas a respeito de questões temporais na arbitragem tenha se dado justamente em razão do caráter flexível da arbitragem, tornando-o um processo "tailor-made"5. No âmbito do processo arbitral, geralmente, partes e árbitros trabalham sob a base de prazos prefixados. O processo arbitral, fundado em regras predeterminadas, se justifica pela própria autonomia das partes em uma arbitragem. Tendo sido as partes que optaram pela arbitragem, caberá a elas, portanto, a regência do procedimento6, inclusive a fixação dos limites temporais, no âmbito de sua plena autonomia. Quando as partes firmam, diante do tribunal arbitral, o "Termo de Arbitragem", ou, nos termos da nomenclatura da arbitragem CCI a chamada "Ata de Missão", está-se estabelecendo ali o calendário do processo: são fixados os prazos de alegações iniciais, respostas, réplicas, tréplicas, especificações de provas, dentre outros, que o tribunal e as partes reputarem necessários e, é claro, o prazo para a prolação da sentença. Ademais, cumpre lembrar que os prazos fixados no Termo de Arbitragem, comumente chamados no direito francês de délai d'arbitrage, não são preclusivos. O délai d'arbitrage engloba o prazo de duração da instância arbitral fixado pelas partes e, se por elas autorizado ou se o regulamento de arbitragem aplicável previr, poderá haver a prorrogação do prazo7. Trata-se de prazo de natureza puramente processual e prefixado pelas partes diante dos árbitros8, o que afasta o estado de incerteza no desenvolvimento do processo arbitral. Quando muito, o que é possível e constitui prática comum nas arbitragens é a criação de regras de caráter preclusivo, de modo a garantir um mínimo de segurança jurídicas às partes e ao próprio processo arbitral, evitando-se rediscussão de matérias já vencidas pelo decurso do tempo. Nesse sentido, é normal que uma regra com a seguinte redação conste dos Termos de Arbitragem: Caso uma parte tenha conhecimento de que alguma disposição ou exigência das normas procedimentais aplicáveis não foi cumprida pela parte contrária, mas, mesmo assim, continue a atuar no procedimento sem manifestar a sua objeção a esse descumprimento em até 15 (quinze) dias, contados da ciência do evento, considerar-se-á que essa parte renunciou ao direito de formular qualquer oposição àquela falta. Tal tipo de disposição nada mais é que um mecanismo por meio do qual as partes são exortadas a envidar sempre os seus melhores esforços no sentido de não criar óbices evitáveis e indevidos ao bom andamento do processo arbitral, cooperando com sua administração e portando-se com lealdade em relação à sua contraparte, em nome do dever de estrita observância aos princípios da boa-fé, cooperação e lealdade processual9. Tal tipo de providência, aliada à liberdade das partes, possibilita o desenvolvimento do processo arbitral de forma predefinida. Em complemento, o controle exercido pelos árbitros10 garante que o processo tenha sua fluência com a segurança11 esperada, restando desnecessário ou até mesmo descabido que discussões a respeito da ocorrência de preclusão de direitos ocorram no âmbito da arbitragem. __________ 1 Ver, nesse sentido: Os prazos da arbitragem e o rigorismo excessivo - Migalhas. Acesso em 20 nov. 2022. 2 Como bem afirma José Carlos de Magalhães, "na arbitragem, a regra é a decisão sempre se fundar na prova e não nos efeitos legais decorrentes da revelia e da preclusão". (Arbitragem: Sociedade Civil x Estado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 58). 3 Segundo o referido autor: "Com efeito, quem escolhe a arbitragem tendencialmente busca uma justiça feita sob medida, isto é, mediante um processo ajustado às peculiaridades da controvérsia, fruto de uma gestão por julgadores com disponibilidade e preparo adequados às necessidades do caso. Não se trata - preservada opinião contrária - de fugir do formalismo estatal (uma dose de formalismo é imprescindível como penhor de legalidade), mas de evitar as mazelas que o Poder Judiciário eventualmente apresente, decorrentes em parte de sua estrutura (ou da falta dela) em parte de sua massificação (haja ou não, de verdade, um grande volume de processos), da qual possam resultar processamento e julgamento não adequadamente sintonizados com as peculiaridades do caso concreto" (YARSHELL, Flávio Luiz. Processo arbitral coletivo: breve reflexão sob a ótica da segurança e da confiança. In: Arbitragem societária coletiva. MONTEIRO, André Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; BENEDUZI, Renato (Coords.). São Paulo: Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2021, p. 174). 4 "Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro"; e art. 30, parágrafo único: "O árbitro ou o tribunal arbitral decidirá no prazo de 10 (dez) dias ou em prazo acordado com as partes, aditará a sentença arbitral e notificará as partes na forma do art. 29". 5 Nesse sentido, v. Karl-Heinz Böckstiegel: "There are many ways of managing case efficiently, and it is one of the advantages of arbitration over court litigation that arbitral tribunals can shape a tailor made procedure that takes into account the many particularizes of each case [.] Although it is important to clarify the rules of the game as early as possible, it is also important to leave room for flexibility later in the proceedings [.]" (Presenting evidence in international arbitration. ICSID Review: Foreign Investment Law Journal, Washington, v. 16, nº 1, p. 1-9, 2001). 6 Não é somente a Lei Brasileira de Arbitragem que consigna a liberdade das partes em fixar as regras do processo arbitral, conforme o disposto no art. 2º e seus parágrafos. A Lei Suíça de Direito Internacional Privado (LDIP), por exemplo, prevê em seu art. 182 (1) que as partes podem, diretamente, ou referindo-se a um regulamento de arbitragem, regulamentar o processo arbitral; elas podem também submeter o procedimento à lei processual de sua livre escolha ("Les parties peuvent, directement ou par réference à un réglement d'arbitrage, régler la procédure arbitrale; elles peuvent aussi, soumettre celle-ci à la loi de procédure de leur choix"). Da mesma forma, cita-se a Lei Sueca de Arbitragem (Swedish Arbitration Act) que, em seu art. 21, dispõe que o tribunal arbitral deverá tratar o litígio de maneira imparcial, apropriada e rápida, além de se conformar com as regras que tiverem sido acordadas entre as partes, em termos procedimentais ("The arbitrators shall handle the dispute in an impartial, practical, and speedy manner. They shall thereupon act in accordance with the decisions of the parties insofar as there is no impediment to so doing"). E, por fim, cita-se o Código de Processo Civil Francês ("CPC francês"), que, no art. 1.509, dispõe que, na ausência de regras estipuladas pelas partes, cabe ao árbitro determinar o procedimento a ser adotado (segunda parte do art. 1.509 do CPC francês: "Dans le silence de la convention, l'arbitre règle la procédure, autant qu'il est besoin, soit directement, soit par référence à un règlement d'arbitrage ou à des règles de procédure"). 7 Trata-se de questão admitida, por exemplo, pela jurisprudência francesa. Vide nesse sentido os seguintes julgados: Corte de Cassação Francesa (1ª Ch. Civ), j. 15.06.1994 (caso "Sonidep"), com nota de Emmanuel Gaillard, Revue de l'Arbitrage, nº 1, Paris: Comité Français de l'Arbitrage, p. 88-101, 1995; Corte de Apelações de Lyon (1ª Ch.), j. 1º.07.1993 (caso "Finapar"), com nota de Philippe Fouchard, Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité Français de l'Arbitrage, nº 1, p. 102-106, 1995. Em relação a jurisprudência brasileira destaca-se a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no caso Peyrani Brasil S.A. contra SMS Demag Ltda.: Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de instrumento nº 1.0024.06.206390-4/001, Rel. Des. Maurílio Gabriel, 15ª Câmara Cível, j. 16.11.2006, DJ 23.01.2007. 8 A força do délai d'arbitrage é capaz até mesmo de barrar pedidos de "perempção de instância", como ocorreu no caso CCI nº 2.730, de 1982. Nesse caso, a parte requerida havia suscitado que a falta de uma providência burocrática teria o condão de gerar a "perempção da instância arbitral", o que foi rejeitado pelos árbitros em virtude do art. 18 do Regulamento de Arbitragem da CCI de 1998 (atual art. 23, Regulamento de 2021) ao qual as partes estavam atreladas. Nos termos do comentário dessa decisão, em arbitragens CCI inexistiria eventual perempção de instância arbitral, pois a própria corte de arbitragem pode prorrogar o prazo do procedimento, se ele reputar necessário. Nesse sentido, v. JARVIN, Sigvard; DERAINS, Yves. Collection of ICC Arbitral Awards (1974-1985). The Netherlands: Kluwer Law, 1994. p. 539-542, nota de Yves Derains. 9 Nesse sentido, anota José Rogério Cruz e Tucci: "Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado 'dever de cooperação recíproca em prol da efetividade', o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal." (Código de processo civil anotado. José Rogério Cruz e Tucci et al. (coords). São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo; OAB Paraná, 2019, p. 13). 10 CLAY, Thomas. L'Arbitre. Paris: Dalloz, 2001. 11 Segundo Flávio Luiz Yarshell: "Tudo isso se traduz em segurança: as partes tendem a participar efetivamente do processo e, portanto, concorrem, no limite de sua parcialidade, para o resultado". (YARSHELL, Flávio Luiz. Processo arbitral coletivo: breve reflexão sob a ótica da segurança e da confiança. In: Arbitragem societária coletiva. MONTEIRO, André Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; BENEDUZI, Renato (Coords.). São Paulo: Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2021, p. 174).
Recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP")1 trouxe novamente à baila a discussão segundo a qual até que ponto é desejável e viável a interferência do Poder Judiciário em demandas arbitrais, especialmente ao tratar da vinculação das partes a uma cláusula compromissória incompleta, defeituosa ou patológica. Nessas breves linhas, buscar-se-á apurar, conforme a melhor doutrina e julgados referentes ao tema, aspectos principiológicos e práticos que poderiam (ou não), apontar para um rumo diferente daquele exposto no julgado objeto deste estudo. Longe de ser uma crítica ao entendimento dos doutos julgadores, busca-se tão somente apresentar um outro prisma para a análise do caso. Trata-se, na origem, de contrato de distribuição de software, contendo cláusula compromissória que indicava que litígios oriundos daquela avença seriam preferencialmente resolvidos por meio da arbitragem, dispondo ainda, dentre outros aspectos, sobre a sede de eventual arbitragem (São Paulo), o regulamento aplicável (CAMARB2, ainda que essa não fosse a Câmara escolhida), a composição do tribunal (três árbitros obrigatoriamente inscritos nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB), e a limitação quanto ao máximo a ser despendido pelas partes a título de custas arbitrais (cem mil reais). Justamente esse último aspecto (teto de custas para fins de arbitragem), gerou o embate que culminou na atuação do Poder Judiciário e prolação do acórdão, objeto dessas linhas. Quando do pedido de instauração de procedimento arbitral por uma das partes junto à CAMARB, seguida da constituição do tribunal arbitral, adveio sentença arbitral que extinguiu o procedimento em curso única e exclusivamente por entender que a Câmara não possuía jurisdição por conta de sua tabela de custas não comportar o teto fixado pelas partes, porém reconhecendo que a lide deveria ser submetida a um tribunal arbitral que atendesse a tal limitação. Diante disso, a parte autora propôs ação de instituição de arbitragem, nos termos do art. 7º da lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem") visando sanar a patologia que impedia a efetiva instauração do procedimento arbitral, clamando socorro ao Poder Judiciário para que, em uma atuação integrativa, cooperativa e em prol da arbitragem3, viabilizasse a apresentação do caso perante um tribunal arbitral, nos termos da cláusula compromissória firmada. A sentença acolheu a pretensão autoral, determinando fosse constituído compromisso arbitral entre as partes, designando o Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil para solução do litígio (aplicando-se ao procedimento o regulamento da CAMARB), e estipulando que a parte que sustentou a impossibilidade de submissão da lide ao juízo arbitral por conta do teto de custas constante na cláusula compromissória, ainda que sucumbente no procedimento, não ficaria obrigada a suportar o pagamento de valor superior a R$ 100.000,00, com custas, despesas procedimentais e honorários advocatícios condenatórios e contratuais, estes em relação aos advogados contratados pela parte adversa. O julgado relatado acima foi revisto pelo TJSP, que por meio de sua 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, por votação unânime, julgou improcedente a demanda, por entender que a situação dos autos não seria o caso de cláusula patológica, mas sim de enquadramento do procedimento arbitral a ser instaurado futuramente aos termos dispostos no compromisso, inclusive no que concerne à limitação quanto às custas e despesas.  A terceira juíza declarou voto convergente, suscitando a hipótese de "cláusula compromissória mista", apontando que, segundo seu entendimento, as partes teriam avençado que causas cujas despesas e custas excedessem o teto estipulado deveriam ser submetidas ao Poder Judiciário. Primeiramente, é pacífico que a derrogação da jurisdição estatal em favor de um método privado e alternativo de solução de conflitos advém da autonomia da vontade das partes (limitada, obviamente, a alguns aspectos, tais como a arbitrabilidade objetiva e subjetiva). Se os contratantes optaram livre, voluntária e conscientemente pela arbitragem como meio de solução de controvérsias que possam surgir em uma determinada relação jurídica, não cabe ao Poder Judiciário alterar tal panorama, sob pena de colocar em risco inclusive o instituto da arbitragem como um todo, extrapolando os limites do caso específico e contrariando o remansoso entendimento, notadamente de tribunais superiores, no sentido de fomentar, fortalecer e dar segurança jurídica à arbitragem. De qualquer modo, é de se dizer que não havendo dúvidas quanto à validade e existência da manifestação de vontade emanada pelas partes quando da escolha da arbitragem em detrimento do judiciário estatal para solucionar um litígio, qualquer questionamento ou dúvida que venha a surgir deve sempre ser solucionado tendo como norte que há de se privilegiar a autonomia da vontade das partes, interpretando eventuais dúvidas ou ambiguidades em favor arbitralis, e em atenção ao princípio do efeito útil da convenção de arbitragem. Sobre o tema, Selma Ferreira Lemes discorre que "(...) a interpretação consoante o efeito útil significa que devemos supor que os redatores de uma cláusula arbitral tinham a intenção de outorgar-lhe um significado real e possível de operacionalização"4. Além disso, após fixado entre as partes, de forma livre, voluntária e consciente, que serão submetidos os potenciais litígios de um contrato ou relação jurídica à arbitragem, tal disposição passa a ser vinculante e obrigatória, não podendo uma das partes desistir ou buscar se eximir de tal compromisso5. Sobre o tema, já se posicionaram os tribunais superiores, especialmente o Superior Tribunal de Justiça ("STJ")6. Situações como a abordada no julgado em referência se traduzem inegavelmente na hipótese de cláusula compromissória patológica, assim considerada aquela cuja redação é ambígua, confusa, obscura e, por isso, impede que a arbitragem seja iniciada. Não obstante necessite de complementação ou esclarecimento, a cláusula compromissória patológica já é suficiente para gerar os efeitos positivo (determinar que as partes estarão obrigadas a solucionar eventual litígio pela via arbitral), e negativo (retirar do Judiciário o poder jurisdicional para julgar a lide)7. Diante de uma cláusula compromissória existente, porém inoperante (como ocorre com uma cláusula compromissória patológica), a atuação do Poder Judiciário deve ter natureza integrativa, ou seja, voltada para o preenchimento da lacuna ou esclarecimento da ambiguidade e submissão da lide à arbitragem. Não cabe ao juízo estatal reescrever ou reinterpretar a vontade das partes, notadamente quando ela é clara e inequívoca, pendente apenas de que sejam aparadas algumas arestas que possibilite que a cláusula produza efeitos. Conforme destaca José Rogério Cruz e Tucci8, privilegiar e fomentar a arbitragem é importante em um aspecto amplo, extrapolando o âmbito do caso concreto e sendo requisito importante para garantir pujança econômica e um ambiente empresarial sadio a um país. Garantir que contratos sejam cumpridos, estabilizando as relações comerciais, e que o Poder Judiciário afiance esse ambiente de estabilidade é essencial não só às partes contratantes, mas à própria coletividade. O entendimento apresentado pelo TJSP encontra óbice prático, na medida em que, conforme consta dos autos, o valor envolvido no litígio a ser dirimido entre as partes torna impossível que se cumpra o teto indicado na cláusula compromissória, tendo sido apresentado nos autos planilha que indicava os custos estimados para a condução de uma arbitragem desse porte nas mais conceituadas instituições arbitrais do país, e nenhuma delas atendia o teto fixado na cláusula (ou seja, na prática era ela inoperante, patológica). Faz-se necessário, ainda, destacar que, com todo o respeito a entendimento em sentido diverso, o caso não se amolda ao conceito de hybrid arbitration clause, como sugerido pelo voto convergente que integra o acórdão. Referidas cláusulas submetem o litígio à arbitragem, porém preveem o apoio do judiciário estatal em algumas hipóteses, de forma colaborativa9, ou ainda estipulam, de forma detalhada, quais litígios serão submetidos à arbitragem ou outro método de resolução de conflitos10 (inclusive o judiciário estatal), e não no sentido de retirar do juízo arbitral a jurisdição sobre o litígio, como sugerido no voto em questão. Além disso, o entendimento consignado no voto convergente afronta, ao menos em tese, o parágrafo único do art. 8º da Lei de Arbitragem, ao retirar do tribunal arbitral a incumbência de decidir acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem (princípio da competência-competência). Por este prisma, verifica-se que a solução dada pela decisão de primeiro grau mostrava-se adequada e atendia à finalidade integrativa e colaborativa que se espera do Poder Judiciário quando instado a se pronunciar sobre demandas envolvendo a arbitragem. A patologia fora sanada de forma a não gerar qualquer prejuízo às partes (eis que uma delas aceitou arcar com os custos que excedessem o teto da cláusula compromissória, inclusive da contraparte), indicou-se uma câmara arbitral reconhecida, séria e que não fora anteriormente indicada por qualquer das partes (de modo a evitar que, nas palavras do julgador de primeiro grau, "para que não se diga ao fim que se pendeu para um lado em detrimento do outro"), aplicando-se, no mais, o que já era previsto na cláusula compromissória originalmente entabulada pelas partes. Inegável que tal solução deu interpretação favor arbitralis e outorgando efeito útil à cláusula, sem olvidar a vontade das partes expressa no contrato. Não cabe ao Poder Judiciário reescrever as cláusulas de um contrato, ou dar interpretação diametralmente diversa daquela que as partes buscaram externar na avença, como fez o TJSP no caso em apreço. Incursões e revisões do Poder Judiciário acerca de lides na qual as partes optaram livre e conscientemente em derrogar de sua jurisdição em prol de um tribunal arbitral são indesejáveis e contraproducentes, tanto para as partes como para a sociedade, colocando em risco a almejada e desejada segurança jurídica. __________ 1 Apelação Cìvel nº. 1107427-98.2021.8.26.0100. Ementa: "APELAÇÃO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA DE ARBITRAGEM. Sentença que constituiu compromisso arbitral entre as partes e designou o Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil para solução do litígio. Inconformismo da requerida. Alegação de violação ao princípio da adstrição ao pedido. Nulidade não reconhecida. Julgamento do mérito do recurso que há de beneficiar a recorrente. Inteligência do art. 282, §2º, do CPC. Mérito. Reconhecimento da incompetência da Jurisdição Arbitral pela Câmara eleita pelas partes. Tribunal Arbitral que, ao interpretar a cláusula compromissória, entendeu que seu intuito seria restringir a atuação da Jurisdição Arbitral aos casos cujas custas procedimentais fossem inferiores a R$ 100.000,00. Interpretação que há de ser considerada na espécie em prestígio ao princípio do kompetenz-kompetenz. Inteligência do art. 8º da Lei nº. 9.307/96. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO". 2 Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil. 3 Sobre o assunto ver: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 23 out. 2022. 4 LEMES, Selma M. Ferreira. Cláusulas Arbitrais Ambíguas ou Contraditórias e a Interpretação da Vontade das Partes. In: MARTINS, Pedro B; GARCEZ, José Maria R. (orgs.). Reflexões sobre Arbitragem, in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima. São Paulo: LTr, 2002. 5 GUERRERO, Luis Fernando. Convenção de Arbitragem e Processo Arbitral. 4ª Edição - Revista e Atualizada. São Paulo: Almedina, 2022. 6 A título de exemplo, colhe-se o seguinte julgado: "DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL. SENTENÇA ARBITRAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO TÍTULO EXEQUENDO. INEXISTÊNCIA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ARBITRAL. DERROGAÇÃO DA JURISDIÇÃO ESTATAL. 1. Ação de execução de título executivo judicial - sentença arbitral. 2. Ação ajuizada em 26/09/2014. Recurso especial concluso ao gabinete em 13/12/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir se é nula a sentença arbitral que embasa a presente ação de execução de título executivo judicial. 4. A pactuação válida de cláusula compromissória possui força vinculante, obrigando as partes da relação contratual a respeitar, para a resolução dos conflitos daí decorrentes, a competência atribuída ao árbitro. (...) 8. Como regra, a celebração de cláusula compromissória implica a derrogação da jurisdição estatal, impondo ao árbitro o poder-dever de decidir as questões decorrentes do contrato e, inclusive, decidir acerca da própria existência, validade e eficácia da cláusula compromissória (princípio da Kompetenz-Kompetenz). Assim, se pairassem dúvidas acerca da própria contratação da cláusula compromissória arbitral, tal questão deveria ser dirimida pelo árbitro, não cabendo à parte intentar fazê-lo perante o juízo estatal. 9. Recurso especial conhecido e não provido". (STJ - REsp: 1818982 MS 2018/0285229-7, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 04/02/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/02/2020) (grifei). 7 Neste particular, importante destacar que o STJ reconhece que as patologias podem apresentar diferentes graus, sendo que no caso de omissão de forma essencial (p. ex., não atendimento do previsto no art. 4º, §2º, da Lei de Arbitragem), ela não produz efeito prático e perde sua função, hipótese na qual não gera seus efeitos positivo e negativo (AgInt no AgInt no REsp: 1431391/SP - Relator Min. Antônio Carlos Ferreira, DJE 24/04/2020). Não é essa a hipótese do caso em análise. 8 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Questões Polêmicas do Processo Arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2019. 9 MEIRA MOSER, Luiz Gustavo. Cláusula Compromissória Híbrida: o Judiciário Cooperativo no Procedimento Arbitral. Publicado em 16 set. 2008. Disponível aqui. Acesso em 17 out. 2022. 10 "'Split' or 'hybrid' clauses allow one or both parties the right to elect litigation or arbitration once the dispute has arisen. These clauses have the advantage of allowing the most appropriate dispute resolution mechanism to be selected once the nature of the dispute and the location of the respondent's assets are actually known. However, careful consideration needs to be given to the inclusion of such clauses because in some jurisdictions they are not considered to be a proper reference to arbitration and are, therefore, invalid. In other jurisdictions, the validity of split clauses has not yet been tested. Even if split clauses are confirmed to be valid in the seat of arbitration, advice should also be sought on their validity in any jurisdiction of potential enforcement of an award. Split clauses are of two types: 'sole option', where one party has the right of election, and 'mutual option', where both parties have the right of election. Mutual option clauses can be very complex and run the risk of parallel proceedings if one party elects to arbitrate and the other elects to litigate (.) Split clauses are enforceable in England & Wales, Australia, Hong Kong, and Singapore, among others." (DEBEVOISE & PLIMPTON. "Debevoise International Arbitration Clause Handbook". 2018, p. 21/22. Debevoise & Plimpton LLP).
Objetiva-se nas presentes linhas, discorrer sobre as cláusulas de resolução de disputas em contratos de construção, notadamente aquelas que contêm um tempo limite para a apresentação de determinada reclamação e a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente o instituto da prescrição. Em linhas simples, objetiva-se discutir se os chamados "contractual time limits" constituiriam ou não afronta ao instituto da prescrição e, ao fim e ao cabo, se seriam válidas no direito brasileiro. Das grandes obras de infraestrutura, decorrem o surgimento de grandes e complexas avenças. Normalmente, as partes, em tais avenças, preferem resolver seus litígios por meio que entendem mais adequado em relação ao processo estatal. Assim, inserem cláusulas compromissórias, algumas delas escalonadas, precedidas ou de mediação ou da formação de comitê de dispute boards. Tais cláusulas de resolução de disputas podem, ainda, conter determinado regramento que imponha a determinada parte o exercício de determinada pretensão em lapso temporal pré-determinado. É o que acontece, por exemplo, na praxe das arbitragens internacionais de construção, notadamente, quando as partes elegem regramentos como o da Fédération Internationale des ingénieurs-conseils ("FIDIC"1). A FIDIC foi criada em 1913, na Bélgica, constituindo-se o maior organismo internacional mundial formado por associações nacionais de engenheiros consultores, advindas de mais de 100 países em todo o mundo. Criou, ao logo dos anos, regramentos úteis aos contratos de construção2, como o seu livro vermelho, comumente chamado de "Red Book", o mais tradicional e utilizado no mercado da construção. O aludido Red Book contém uma série de regras e condições ("Condições FIDIC"), tais como direitos e deveres do dono da obra, do empreiteiro e subcontratados, riscos e responsabilidades, seguros, ocorrência de força maior, dentre outros. Em particular, a cláusula 20.1 das aludidas regras dispõe que:  Clause 20.1 If the Contractor considers himself to be entitled to any extension of the Time for Completion and/or any additional payment, under any Clause of these Conditions or otherwise in connection with the Contract, the Contractor shall give notice to the Engineer, describing the event or circumstance giving rise to the claim. The notice shall be given as soon as practicable, and not later than 28 days after the Contractor became aware, or should have become aware, of the event or circumstance. If the Contractor fails to give notice of a claim within such period of 28 days, the Time for Completion shall not be extended, the Contractor shall not be entitled to additional payment, and the Employer shall be discharged from all liability in connection with the claim. Otherwise, the following provisions of this Sub-Clause shall apply.  O termo que gera dúvida entre os operadores do direito diz respeito ao prazo de 28 dias que o empreiteiro possui para fazer uma reivindicação à contraparte que diga respeito a um pedido de extensão de tempo e/ou pagamentos adicionais decorrentes de determinada obra. Tal dúvida seria justificada pelos seguintes questionamentos: (i) os direitos supostamente violados, decorrentes da referida cláusula dariam ensejo ao nascimento de uma pretensão condenatória, sujeita, portanto, ao correspondente prazo prescricional? E, (ii) em caso positivo, haveria compatibilidade do referido prazo (28 dias) com o direito brasileiro? O instituto da prescrição tem como objetivo a garantia de estabilidade das relações jurídicas. Isto é, extinguindo-se as pretensões, acabariam as incertezas, os processos tardios, cujas provas já se pereceram, seriam eliminados e, ao fim e ao cabo, garantir-se-ia a realização da paz social. No direito brasileiro, para que haja o curso do prazo prescricional, deve ocorrer, necessariamente, uma lesão ao direito. É o que dispõe o art. 189 do CC: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206." É, portanto, a partir da violação ao direito, isto é, do sofrimento da lesão ou do momento em que o direito subjetivo vem a ser negado pelo descumprimento do dever jurídico a que ele corresponde3, que o prazo prescricional passa a correr. O prazo de 28 dias estipulado pela clausula 20.01 das Condições FIDIC não parece, em princípio, criar um estado de sujeição às partes contratantes, a ponto de gerar perda de direitos. Ao revés, ao estatuir o direito da parte lesada de perquirir seus alegados direitos a favor da extensão dos prazos contratuais e do pagamento de verbas adicionais, o regramento induz o surgimento de uma pretensão de evidente natureza condenatória, a qual, segundo o direito brasileiro, se extingue pela prescrição. Essa é, inclusive, a opinião de Humberto Theodoro Junior: "Para exigir pagamento de serviços e verbas extraordinárias, fora dos parâmetros da convenção, o direito do empreiteiro tem raiz na lei, e não no contrato, e assume, quando resistido, a categoria de pretensão. Logo, seu regime é da prescrição, seja quando se dê o seu enfoque sob o prisma direto da empreitada ou da prestação de serviços (Cód. Civil, arts. 610 e 596), seja quando se faça a sua subsunção à figura genérica do enriquecimento sem causa (art. 884)"4. A assimilação de tal prazo estipulado contratualmente já foi objeto de discussão em sede de arbitragens internacionais. No caso CCI 11.039/2002, por exemplo, o tribunal arbitral valorizou e aplicou prazo de prescrição contratualmente firmado entre as partes. Nesse caso, um contrato de assistência técnica fora firmado entre uma empresa alemã (requerente) e outra dinamarquesa (requerida). Em virtude da alteração de determinadas circunstâncias do projeto intentado pela empresa requerente, um procedimento arbitral foi por ela instaurado junto à CCI de modo a reaver custos adicionais incorridos. A sede da arbitragem foi fixada em Berlim e a lei aplicável ao fundo da controvérsia era a alemã. Durante o curso do processo, o tribunal arbitral decidiu, primeiramente, que as Condições FIDIC seriam aplicáveis à controvérsia, em razão de constar em todos os documentos postos nos autos a intenção das partes de se submeterem às referidas regras5. Assim declarado, cabia ao tribunal arbitral decidir acerca do pleito da requerida de que, à luz das regras postas nas Condições FIDIC, o prazo de prescrição de um ano teria se escoado. De forma coerente com os princípios que norteiam a prescrição, o tribunal arbitral, conquanto entendesse que as Condições FIDIC se aplicariam à controvérsia, mas sabendo que a prescrição é questão que faz parte do mérito do litígio, procurou investigar no direito material alemão (BGB) se o prazo prescricional convencionado entre as partes por meio das Condições FIDIC se adequava à lei material alemã. O resultado encontrado pelo tribunal foi que, em primeiro lugar, o prazo prescricional estabelecido em contrato seria permitido pelo direito alemão, e, em segundo lugar, que a redução do prazo convencionada entre as partes com igual poder de barganha não teria o condão de criar uma situação de falta de razoabilidade, de desequilíbrio entre as partes6. Por todas essas razões, considerando o contractual time-limit de acordo com a lei alemã, o tribunal arbitral julgou prescrita a pretensão. Nada obstante é preciso asseverar que nem sempre o prazo prescricional convencionado entre as partes terá o condão de excluir de disposição legal imperativa. Foi o que restou decidido na sentença proferida no caso CCI nº 6.230, de 1990. Nesse caso, um contrato de construção fora firmado entre uma empresa austríaca (Requerida) e o governo de determinado país. Na cadeia de subcontratos ligados ao principal, a Requerida estabelecera um subcontrato com uma empresa inglesa (Requerente). Em razão de um conflito relativo a projetos realizados pela empresa inglesa subcontratada e não quitados pelo principal contratante, uma arbitragem fora instaurada perante a CCI. Tanto o contrato principal como o subcontrato eram regidos pelas Condições FIDIC, sendo ainda a eles aplicável o direito suíço. A sede da arbitragem restou fixada em Zurique. Entre os diversos argumentos de defesa formulados pela Requerida encontrava-se o de que a pretensão arbitral estaria prescrita diante do não preenchimento das regras dispostas nas Condições FIDIC. Segundo a Requerida, a demanda teria sido instaurada em prazo superior ao disposto nas referidas condições, as quais eram aplicáveis ao contrato e, pois, à demanda. Ao revés do caso anteriormente mencionado, o tribunal arbitral, ao investigar as disposições da lei material suíça, aplicáveis ao mérito, simplesmente descartou os limites temporais impostos pelas Condições FIDIC, pois entendeu que à prescrição se aplicava o direito suíço. Determinando ao caso, portanto, a aplicação do prazo prescricional de dez anos com fulcro no direito suíço, considerou que a pretensão arbitral não se encontrava prescrita7. A conclusão a que se chega após a análise desses julgados é a de que nada impede que as partes convencionem acerca do prazo de prescrição para uma determinada pretensão8. Até mesmo para os casos que envolvem o direito da construção é interessante a estipulação de regras especiais, por exemplo, o caso das Condições FIDIC, também para a prescrição. Ocorre que os contractual time-limits sempre dependerão de um exame dos árbitros da lei aplicável ao mérito da controvérsia9. Se tal lei permitir que as partes estipulem consensualmente o prazo de prescrição, valerá o que estiver no contrato. Caso contrário, imperará a lei10. Logo, para as arbitragens internacionais em que a lei aplicável ao mérito seja a lei brasileira, não haverá lugar para acordos acerca da prescrição, em razão do disposto no art. 192 do CC, que dispõe: "Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes"11. O objetivo dessas breves linhas não foi o de firmar uma posição sobre o assunto, mas levá-lo ao debate, diante da importância de se respeitar o regramento escolhido pelas partes numa determinada avença e sua compatibilidade com o direito aplicável ao mérito em determinado caso. Conquanto se presuma curto o prazo estipulado na cláusula 20.01 das Condições FIDIC, ao mesmo tempo, não se pode deixar de levar em conta que tal prazo tem a sua razão de ser. Modelos como esse têm como objetivo primordial o de garantir eficácia e equilíbrio nas relações contratuais mantidas entre os atores da indústria da construção, tais como o dono da obra, empreiteiro, fornecedores, prestadores de serviços, consultores projetistas, dentre outros12. O tempo indefinido ou excessivamente prolongado por ser pernicioso à estabilidade das relações comerciais mantidas no setor de infraestrutura. __________ 1 Ou, em inglês:  International Federation of Consulting Engineers. A tradução livre para o português poderia ser a seguinte: Federação Internacional de Engenheiros em Consultoria. 2 A FIDIC adotou condições gerais relativas ao mercado de trabalho de engenharia civil, isto é, um contrato-modelo difundido e largamente utilizado no mercado internacional de construção. Segundo Fouchard, Gaillard e Goldman, "La Fédération internationale des ingénieurs-conseils (Fidic) a élaboré des 'Conditions générales applicable aux marchés de travaux de génie civil' (Conditions of contract for works of civil engineering construction), dont la dernière édition, la quatrième, a été adoptée en 1987. Il s'agit d'un contrat-type largement utilisé dans les contrats internationaux de construction et de genie civil qui pré-suppose l'intervention de trois parties: le maître de l'ouvrage, l'entrepreneur, et 'l'ingénieur', qui est le bureau d'étude, d'ingénierie, ou l'architecte chargé par le maître de l'ouvrage, en vertu d'un contrat distinct, de l'assister et d'agir en son nom lors de l'exécution des travaux" (Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 20). 3 Nesse sentido, Santiago Dantas, em suas aulas ministradas na antiga Faculdade Nacional de Direito, enunciou, com clareza, o conceito de lesão jurídica: "Que é a lesão de direito? A lesão de direito é aquele momento em que o direito subjetivo vem a ser negado pelo não cumprimento do dever jurídico que a ele corresponde. Sabe-se que da lesão do direito nascem dois efeitos: em primeiro lugar, um novo dever jurídico, que é a responsabilidade, o dever de ressarcir o dano, e, em segundo, a ação, o direito de invocar a tutela do Estado para corrigir a lesão do direito. A prescrição deve se conceituar em íntima ligação com a lesão do direito. Não surge o problema da prescrição, enquanto não há uma lesão do direito" (Prescrição e decadência. Programa de direito civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945). Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 395 e ss.) 4 JUNIOR, Humberto Theodoro. Empreitada. Alterações e acréscimos ao projeto. Remuneração complementar. Prescrição e decadência. Revista Forense, Vol. 378 (Pareceres), p. 217. 5 Nos termos da sentença: "[The Arbitral Tribunal found as follows]... The Parties had earlier made their intention clear to enter the Fidic Agreement and had now agreed on the wording by the Exchange of various drafts and views on individual clauses. [Claimant] must have been aware that [Respondent] presumed that the Agreement was valid between the Parties, event without joint signatures on the Fidic Agreement." Trecho da Sentença proferida no Caso CCI nº 11.039, de 2002. ICC International Court of Arbitration Bulletin, Paris: ICC Publication, v. 19, nº 2, p. 96, 2008. 6 Sentença proferida no Caso CCI nº 11.039, de 2002. ICC International Court of Arbitration Bulletin, Paris: ICC Publication, v. 19, nº 2, p. 96, 2008. 7 Sentença proferida no Caso CCI nº 6.230, de 1990. JARVIN, Sigvard; DERAINS, Yves; HASCHER, Dominique. Collection of ICC Arbitral Awards (1991-1995). The Netherlands: Kluwer Law, 1997. p. 95-96 8 Em sistemas conservadores como é o americano, a estipulação contratual da prescrição é aplicável à arbitragem, conforme informado por David A. Weintraub: "The third circumstance under which statutes of limitation would apply in arbitration is where the parties' contract expressely provides. Unless dictated otherwise by public policy, attorneys may include contractual language expressly providing that statutes of limitation shall apply in arbitration. Such clauses can specify a specific state's statute of limitation, or define a specific limitations period. This principle is illustrated in NCR Corporation v. CBS Liquor Control, Inc., 874 F. Sup. 168, 173 (S.D. Ohio 1993), aff'd 43 F.3d 1076 (6th Cir. 1995). The court stated that the parties 'could have lawfully incorporated... either an express limitation on claims or incorporated a statute of limitations by reference but they did not so'. The inclusion of such an express limitation would be relatively simple in any contract" (When do statutes of limitation apply in arbitration?. The Nebraska Lawyer, p. 26, nov.-dec. 2007). 9 A esse respeito, Luiz Olavo Baptista aduz o seguinte: "Outra exceção ocorre quando as partes tentam variar o prazo de prescrição pela sua própria vontade. Nesse caso há que saber se a lei aplicável admite essa mudança. Há grande diversidade quanto à admissão da possível modificação, pela vontade das partes, dos lapsos prescricionais, como uma pesquisa do CNUDCI o aponta, pois bem pode o juiz entender que a ordem pública a isso se impõe" (Dos contratos internacionais: uma visão teórica e prática. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 125). 10 Nesse sentido, afirmam Fouchard Gaillard e Goldman: "Le respect des délais fixés par les parties, directement ou par réference à un règlement d'arbitrage, pour introduire une demande d'arbitrage ne préjuge pas de l'irrecevabilité de la demande d'arbitrage susceptible de résulter du non-respect des exigences de la loi applicable au fond du contrat. Si la loi régissant un contrat de vente soumis à un tribunal arbitral impose que l'action en garantie des vices cachés soit exercée dans une période déterminée ou 'à bref délai', par exemple, il appartient aux arbitres, indépendamment du respect des règles de procédure, de sanctionner au fond le non-respect de ces délais pour en tirer les conséquences prévues par la loi applicable à la vente." (Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 673-674). 11 Ver, nesse sentido, NUNES, Thiago. Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 256. 12 A importância das regras criadas pela FIDIC, no sentido de uniformização do direito da construção (o que garante segurança jurídica ao respectivo mercado) é bem destacada pela obra de Gustavo Scheffer da Silveira: "Sans avoir à nous prononcer sur le bien-fondé de cette affirmation, force est de constater que les contrats-type de la FIDIC jouent depuis longtemps um rôle très important dans l'uniformisation du droit de la construction. Ces contrats on été redigés non seulement avec l'assistance des juristes spécialisés en la matière, mais également avec la participation des maitres de l'ouvrage, des ingénieurs, des entreprises de construction, de International Bar Association et des instituitions financières telles que la Banque mondiale. Par conséquent, ces contrats bénéficient d'une grande légitimité devat les opérateurs de la construction internationale et sont ainsi les contrats-type les plus utilisés dans le domaine de la construction  Internationale, utilisés dans au moins 50% des contrats internatiounaux de construction conclus à travers le monde". (Les modes de règlement des différends dans les contrats internationaux de construction. Bruxelles: Bruylant, 2018, p. 26-27).
Muito tem-se discutido sobre os malefícios advindos do PL 3.293/21 de autoria da Exma. Sra. deputada Federal Margarete Coelho, que tem sido cunhado pela doutrina especializada como "PL antiarbitragem". Conforme já se discorreu em escritos anteriores, o aludido projeto tem como principal premissa "disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do procedimento arbitral e a publicidade das ações anulatórias, além de dar outras providências". Apesar disso, quando bem analisado, o PL antiarbitragem, como o próprio nome diz, inviabiliza o uso da arbitragem no Brasil. O fato é que, tal inviabilização gera efeitos diretos no mercado, uma vez que diversos de seus setores utilizam a arbitragem como principal mecanismo de resolução de controvérsias. Um deles, é o agronegócio, objeto dessas breves linhas. Dados públicos demonstram um crescimento exponencial do agronegócio nas últimas décadas, colocando o Brasil entre os países com o maior crescimento da produtividade agrícola no mundo. A partir da análise dos dados censitários no período compreendido entre 1970 e 2006, concluiu-se que a taxa média anual da produtividade total dos fatores foi de 3,5%, valor considerado elevado quando comparado a taxa média mundial, que tem sido de 1,84% ao ano1. O otimismo dos setores políticos e empresariais quanto ao crescimento do agronegócio justifica-se não somente pelos indicadores econômicos citados - que colocam o agronegócio como o principal setor da economia nacional -, como também pelo seu potencial para crescimento em um cenário futuro. O Brasil conta com abundantes recursos hídricos, possui clima favorável ao plantio e cultivo, e seu vasto território ostenta proporções continentais. Estima-se que o país possua 22% das terras agricultáveis do mundo2 ou, segundo dados recentes, tenha crescido 44,8%, chegando a 664.784 km² em 2018, o equivalente a 7,6% do território nacional, considerando a parte terrestre e marítima do país3. Como consequência direta do desenvolvimento do agronegócio, nas últimas décadas o crescimento do setor foi acompanhado da sofisticação das relações comerciais a ele inerentes, uma vez que sua cadeia produtiva engloba uma gama complexa e variada de atividades comerciais. Obrigatoriamente, o sistema do agronegócio incorpora, além da agropecuária propriamente dita, a produção e comercialização de insumos, a indústria de transformação e processamento, e a rede de distribuição da produção. Complementando a cadeia, encontram-se os serviços de apoio, pesquisa e assistência técnica, além do transporte e logística, comercialização, concessão de crédito, exportação e importação (atividade desenvolvida pelas empresas multinacionais denominadas tradings), serviços portuários, distribuidores (dealers), bolsas e o consumidor final4. É natural que no âmbito de um cenário comercial competitivo surjam divergências, algumas de alta complexidade jurídica. No caso do agronegócio, as demandas podem envolver não somente pequenos produtores rurais e comerciantes locais, como grandes latifundiários, multinacionais e conglomerados industriais de grande envergadura, atraindo as atenções do mercado e dos principais agentes do setor. A via tradicionalmente utilizada para a resolução de tais conflitos ainda é, na grande maioria dos casos, o processo estatal. No entanto, a cadeia produtiva do agronegócio, com sua complexa rede de relações negociais, pode dar origem a demandas cuja resolução mais adequada pode ultrapassar a capacidade do sistema judiciário de solucioná-las no tempo e modo satisfatórios, e que dependam de maior minúcia e expertise que apenas aqueles totalmente envolvidos na cadeia agronegocial possam proporcionar. Nesse sentido, a arbitragem tem surgido como remédio promissor no campo de resolução de disputas no setor do agronegócio. Nessa seara, uma série de matérias tem sido adequadamente resolvidas por arbitragem: disputas nos contratos de compra e venda de commodities agrícolas (em especial soja e cana-de-açúcar); disputas no âmbito de contratos agrários de parceria e arrendamento; disputas no âmbito de contratos de financiamento rural e compra e venda de insumos (sementes, defensivos agrícolas); disputas no âmbito de contratos de fornecimento e de integração vertical; disputas no âmbito de contratos imobiliários de compra e venda de imóveis; disputas no âmbito de relações societárias decorrentes de estatutos, contratos socais, acordos de acionistas, joint ventures, entre outros. O uso da arbitragem passou, inclusive, a ser ainda mais debatido no campo do agronegócio quando da promulgação da lei 13.986/2020 ("Nova Lei do Agro"), a qual promoveu importantes comandos normativos com o intuito de fomentar o agronegócio nacional, possibilitando, por exemplo, que títulos recebíveis do agronegócio possam ser atrelados à moeda estrangeira, atraindo o ingresso de capital estrangeiro no Brasil em prol do agronegócio. Nesses casos, o investidor estrangeiro exige que a cláusula de resolução de disputas se dê por arbitragem, o que constitui, na maioria das vezes, condição essencial para a realização do negócio. O incremento das disputas (como as acima exemplificadas) no setor agroindustrial incentivou até mesmo entidades centenárias, como a Sociedade Rural Brasileira a desenvolver projeto na área de resolução extrajudicial de disputas, criando a sua própria câmara de arbitragem5. Consolidado o uso da arbitragem para a resolução de disputas no setor agroindustrial, sobreveio o PL antiarbitragem, que se aprovado, não só representará o fim da prática da arbitragem no Brasil, mas, por via reflexa, gerará severos prejuízos ao agronegócio nacional e, consequentemente, à economia brasileira. Alguns pontos do PL antiarbitragem que causam efeito perverso no mercado agroindustrial, podem ser abaixo elencados: a) O PL antiarbitragem impõe restrições à liberdade das Partes incompatíveis com o modelo jurídico no qual a arbitragem se funda, tanto no direito brasileiro, como no cenário internacional; b) O PL antiarbitragem gera insegurança jurídica ao ambiente de negócios, aumento de custos de transação, aumento do risco de crescimento de demandas judiciais, menor concorrência e aumento de custos à sociedade, afastando ou reduzindo os investimentos no país, o que no mercado agroindustrial gera imediato impacto, dados os investimentos estrangeiros fomentados, em especial, pela Nova Lei do Agro; c) Quanto aos árbitros, o PL antiarbitragem propõe modificação para impor-lhes dever de revelar fatos que denotem "dúvida mínima" sobre sua imparcialidade e independência, substituindo o atual critério da "dúvida justificada". Assim, o Brasil passaria a adotar critério isolado, diferente de todos os demais países, muitos dos quais com secular convívio arbitral, dos tratados, de guias e diretrizes internacionais. Dúvida justificável, no sistema da Lei de Arbitragem de hoje, é um conceito juridicamente objetivo, cuja aplicação contribui para segurança jurídica da arbitragem no Brasil. "Dúvida mínima", ao contrário, não é. Sendo esse o critério do legislador, todo e qualquer elemento poderá ser utilizado para tentar, após a decisão de mérito, anular procedimentos arbitrais a pretexto de violação a deveres de revelação. A instabilidade será enorme, o que certamente gerará impactos negativos na cadeia produtiva agroindustrial, que perderá estabilidade em razão de uma brecha para um possível sem-número de ações judiciais que tenham por objeto anular sentenças arbitrais sob o manto da aludida "dúvida mínima"; d) O PL antiarbitragem limita a quantidade de processos em que um mesmo profissional pode atuar, o que representa intromissão indevida do Estado na atividade profissional e impõe um cerceamento inconstitucional à livre iniciativa. Ademais, esse controle já é realizado pelos usuários que livremente optam pela arbitragem, sendo desnecessário impor limites por via legal.  Importante ressaltar que o cerceamento legislativo da quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar não resultará em procedimentos mais céleres, mas cerceará a escolha dos usuários quanto aos profissionais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, muito especializadas, para as quais o mercado necessita de profissionais capacitados tanto na matéria objeto da disputa quanto na condução de arbitragens. O mercado agroindustrial, que conta com um número restrito de especialistas em resolução de disputas, será diretamente afetado caso o PL seja aprovado; e) O PL antiarbitragem regula, no plano legal, deveres de publicação de certas informações dos processos arbitrais, tais como a composição do Tribunal Arbitral, o valor da disputa ou mesmo a íntegra das decisões. Todavia, essa medida é inadequada, uma vez que essas matérias são universalmente deixadas ao autorregramento do próprio setor, permitindo que se adote, em cada caso, a solução mais apropriada para aquela disputa em particular. A revelação indiscriminada dessas informações suscita o risco de ensejar intimidação, manobras de procrastinação ou pressão sobre partes e árbitros, sem que se vislumbrem vantagens que decorreriam de um modelo legal que impõe, a priori, a divulgação de informações sensíveis e que, como regra, os agentes de mercado optam por manter em caráter reservado. A violação da confidencialidade possui um custo relevante para os agentes econômicos, em especial no agronegócio. Em outras palavras, desenvolver negócios em um país que não permite a solução de conflitos legais confidencialmente é mais arriscado e mais caro. O resultado tenderá a afugentar os melhores profissionais, reduzir a escolha da arbitragem como método adequado de solução de disputas, gerando efeitos adversos nos negócios travados no ambiente agronegocial. As sugestões propostas pelo PL antiarbitragem, se implementadas, no melhor cenário, terão como resultado imediato (i) a queda de investimentos estrangeiros, em razão da perda da arbitragem como método de resolução alternativo de disputas ou, num cenário mais favorável (mas ainda ruim para o agronegócio) a (ii) redução de casos, a migração das arbitragens brasileiras para outros países e a eliminação do país como possível sede de arbitragens internacionais, elemento que não interessa aos players do agronegócio, que, em sua grande maioria, querem ver suas demandas resolvidas em ambiente interno e privativo, isto é, sem exposições. De uma forma geral, o PL antiarbitragem, caso aprovado, causará severos prejuízos à economia brasileira, em especial, ao agronegócio, conhecido por sua necessidade de se manter estável e, sem sombra de dúvidas, o setor mais importante da economia brasileira. __________ 1 Tal cálculo se dá a partir da apuração da quantidade de insumos e produtos, de forma a apurar o aumento da quantidade de produto que não é explicada pelo aumento da quantidade de insumos. FUGLIE, K., WANG, S.L., BALL, V.E. (coord.). "Productivity growth in agriculture: An international perspective". In: European Review of Agricultural Economics, v. 40, 3, p. 531-534, jul. 2013; e GASQUES, José Garcia, "Sources of growth in Brazilian agriculture: Total Factor Productivity". In: EuroChoices v. 16, 1, p. 24-25, 2017. 2 RODRIGUES, Roberto. "O céu é o limite para o agronegócio brasileiro". In: Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro, v. 60, 11, p.14-15, nov. 2006. 3 Fonte: Área agrícola cresce em dois anos e ocupa 7,6% do território nacional | Agência de Notícias (ibge.gov.br). Acesso em 28 ago. 2022. 4 CONTINI, Elísio; GASQUES, José Garcia; LEONARDI, Renato Barros de Aguiar; BASTOS, Eliana Teles. "Evolução recente e tendências do agronegócio", Revista de Política Agrícola, Ano XV, n. 1, p. 5-28, jan./mar. 2006. 5 Fundada em 1919, a SRB atua como agente negociador político, gerador de conteúdo e serviços para toda a cadeia produtiva do agronegócio. A entidade defende a cadeia produtiva rural eficiente, competitiva e sustentável e tem como bandeiras fundamentais o respeito ao direito de propriedade, a segurança jurídica, a sustentabilidade, a eficiência e a desburocratização. Como parte desses projetos, um centro de mediação e arbitragem foi criado no âmbito da SRB ("CARB"), que, recentemente, foi incorporado a prestigiada Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil ("Camarb"), um dos mais importantes centros arbitrais brasileiros. Para informações, ver: Arbitragem - SRB. Acesso em 20 ago. 2022.
As breves notas a seguir se propõem a investigar como e dentro de quais limites deve ser exercido o devido processo legal na arbitragem. Não raro, ao longo de um procedimento arbitral, pode ocorrer às partes de solicitar a exibição de documentos fora das datas previstas no calendário procedimental, apresentar novas demandas após a assinatura do termo de arbitragem ou, em casos mais graves, adotar posturas protelatórias e contrárias ao dever de cooperação. Diante de tal cenário, a falta de respostas assertivas por parte dos árbitros pode prejudicar a eficiência da arbitragem, tornando-a excessivamente demorada e custosa. Por essa razão, defende-se que tribunais arbitrais devem adotar postura firme ao manejar questões procedimentais, de modo a assegurar a observância de garantias processuais das partes sem frustrar a eficiência do procedimento. De acordo com Eduardo de Albuquerque Parente, à diferença do processo estatal, no qual o devido processo legal é definido por normas processuais preestabelecidas, no processo arbitral, o devido processo legal constitui-se por normas criadas pelas partes e árbitros1. Assim, na arbitragem o conceito de processo legal é preenchido pela lei 9.307/96 ("lei de arbitragem"), pelos regulamentos de instituições arbitrais, pela vontade das partes e pela ação diretiva dos árbitros2. A primeira fonte do devido processo legal na arbitragem é, portanto, a lei. Nesse sentido, o art. 21, parágrafo 2º, da Lei de Arbitragem estabelece que, no procedimento arbitral, deverão sempre ser respeitados "os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento". Contudo, independentemente do quão detalhadas forem as normas elaboradas pelas partes ou pela instituição arbitral quanto à condução no procedimento, é impossível conceber ex ante todas as eventualidades possíveis que possam emergir no curso de uma arbitragem. Por esse motivo, dispõe o árbitro de ampla discricionariedade para nortear o procedimento naquilo em que as partes forem omissas ou dissidentes3. Nessa linha, na ausência de acordo específico das partes, a maioria das legislações arbitrais concede ao tribunal arbitral discricionariedade para conduzir o procedimento da forma que entender adequado. No Brasil, essa discricionariedade encontra respaldo no artigo 21, caput, da lei de arbitragem4. Em direito comparado, prescrições semelhantes podem ser encontradas no art. 1.042(4), do Código de Processo Civil Alemão5, no art. 34(1), do English Arbitration Act6, no art. 1.509, do Código de Processo Civil Francês7 e no art. 182(2) da lei Federal Suíça sobre Direito Internacional Privado8. A discricionariedade do árbitro, contudo, não é ilimitada, na medida em que submetida às contrições impostas pelo due process. Cabe, então, aos árbitros a árdua tarefa de equilibrar dois objetivos aparentemente inconciliáveis: eficiência procedimental e devido processo legal. Se, por exemplo, o tribunal arbitral deparar-se com a solicitação de uma das partes para a produção de documentos de última hora, ao autorizar tal solicitação, poderá prejudicar a eficiência do procedimento. Por outro lado, se deixar de admiti-las, a sentença arbitral a ser proferida correrá o risco de ser objeto de demanda anulatória fundada em violação do devido processo legal9. Trata-se, contudo, de uma falsa dicotomia, pois a eficiência da arbitragem deve ser compreendida como resultado da realização do princípio do devido processo legal. Mesmo as garantias processuais fundamentais estão sujeitas a limitações. Nenhuma lei ou diretriz em matéria de arbitragem dispõe que as partes devem possuir toda oportunidade para apresentar seu caso, pois preferem referir-se a uma oportunidade dita razoável. Aqui, a escolha terminológica não é fortuita, pois serve exatamente ao fim de prevenir eventuais abusos que o uso de formulações excessivamente abrangentes poderia autorizar10. Embora poucos mecanismos sejam mais eficientes para conter abusos das partes do que árbitros experientes e capacitados11, frequentemente os árbitros receiam em tomar medidas assertivas, contrárias à vontade de alguma das partes, o que pode decorrer do temor de proferir sentença arbitral que possa ser eventualmente não homologada ou anulada pelo juízo estatal. De fato, regulamentos de diversas instituições arbitrais, como a CCI12, a LCIA13 e a SIAC14, reforçam o dever primordial do árbitro de realizar todo esforço razoável a fim de garantir a eficácia da sentença. Desse modo, em se tratando de arbitragens internacionais, observa-se que as cortes estatais costumam reconhecer violações ao devido processo legal somente em casos de relevante gravidade, atribuindo uma leitura estrita ao artigo V(1)(b), da Convenção de Nova York15. A título exemplificativo, em ação anulatória verificada no caso Corporacion Transnacional de Inversiones SA v STET International Spa, o tribunal estadunidense decidiu que, para que ocorra a anulação de sentença arbitral por violação do artigo 18 da Lei Modelo da UNCITRAL, a conduta dos árbitros deve ser séria a ponto de ofender as mais básicas noções de moralidade e justiça16. No caso Grosso v. Barney, a corte norte-americana entendeu que os árbitros agiram dentro dos limites de seus poderes discricionários ao se recusarem a receber um novo pedido quando a parte tentou alterar suas alegações iniciais sem evidências concretas17. Ainda, no caso Peters Fabrics Inc. v. Jantzen Inc., o tribunal distrital constatou que o árbitro agiu dentro de seus poderes ao se recusar a considerar um pedido reconvencional apresentado por uma das partes às vésperas da audiência arbitral18. Dessa forma, apesar de árbitros deixarem de empregar medidas rígidas a fim de evitar o risco de proferir uma sentença ineficaz, a experiência demonstra que, ao contrário do que se poderia supor, o juiz estatal raramente sanciona árbitros que adotam uma postura firme na condução do procedimento. Tendo em vista as considerações aqui apresentadas, pode-se afirmar que o tribunal arbitral ideal seria aquele capaz de resguardar a equidade processual, tratando as partes de forma igualitária e oferecendo a elas oportunidade razoável para apresentação de seus argumentos, ao mesmo tempo em que garante o desenrolar do procedimento de acordo com as regras procedimentais e calendário inicialmente acordados. De modo geral, vale esperar dos árbitros maior disposição para tomar medidas direcionadas a desencorajar as partes a optarem por táticas agressivas e protelatórias. Das partes, espera-se um comportamento que sugira que tempo e dinheiro são elementos que lhe são caros. _____ 1 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. 2010. São Paulo: Atlas, 2012, p. 103-104. 2 Ibidem, p. 129-130. 3 CARMONA Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2009, p. 292. 4 Art. 21: "A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento". 5 German Code of Civil Procedure, section 1.042(4): "Absent an agreement by the parties, and in those cases regarding which the present Book does not make any provisions, the procedural rules shall be determined by the arbitral tribunal at its sole discretion. The arbitral tribunal is authorised to decide on the admissibility of the taking of evidence, to so take evidence, and to assess the results at its sole discretion". 6 English Arbitration Act, article 34(1): "It shall be for the tribunal to decide all procedural and evidential matters, subject to the right of the parties to agree any matter". 7 Code de procédure civile, article 1.509: "[...] Dans le silence de la convention d'arbitrage, le tribunal arbitral règle la procédure autant qu'il est besoin, soit directement, soit par référence à un règlement d'arbitrage ou à des règles de procédure". 8 Loi fédérale sur le droit international privé, article 182(2) : "Si les parties n'ont pas réglé la procédure, celle-ci sera, au besoin, fixée par le tribunal arbitral, soit directement, soit par référence à une loi ou à un règlement d'arbitrage". 9 REED, Lucy F.; SALEH, Shaparak, Bon courage, TRIBUNALS!, BCDR International Arbitration Review, v. 2, a. 1, 2015, p. 5. 10 REED, Lucy F.Ab(use) of due process: sword vs shield, Arbitration International, Oxford University Press, v. 33, a. 3, 2017, p. 368. 11 PARK, William W. Arbitration's Discontents: Of Elephants and Pornography, Arbitration International, Oxford University Press, v. 17, a. 3, 2001, p. 272. 12 Regulamento de arbitragem CCI, artigo 42: "Em todos os casos não expressamente previstos no Regulamento, a Corte e o tribunal arbitral deverão proceder em conformidade com o espírito do Regulamento, fazendo o possível para assegurar que a sentença arbitral seja executável perante a lei". 13 LCIA Arbitration Rules, article 32(2): "For all matters not expressly provided in the Arbitration Agreement, the LCIA, the LCIA Court, the Registrar, the Arbitral Tribunal, any tribunal secretary and each of the parties shall act at all times in good faith, respecting the spirit of the Arbitration Agreement, and shall make every reasonable effort to ensure that any award is legally recognised and enforceable at the arbitral seat". 14 SIAC Arbitration Rules, 41(2): "In all matters not expressly provided for in these Rules, the President, the Court, the Registrar and the Tribunal shall act in the spirit of these Rules and shall make every reasonable effort to ensure the fair, expeditious and economical conclusion of the arbitration and the enforceability of any Award". 15 BERG, Albert Jan Van Den. The New York Arbitration Convention of 1958: towards a uniform judicial interpretation, T.M.C. Asser Institute, The Hague, 1981, p. 297. 16 Parsons & Whittemore Overseas Co. v. Societe Generale de L'Industrie du Papier (RAKTA), 508 F.2d 969 (2d Cir. 1974), p. 215. 17 Grosso v. Barney, 2003 WL 22657305 at *5 (E.D. Pa. Oct. 24, 2003): "arbitrators were well within the proper scope of their discretion in refusing to hear the new claim". 18 Peters Fabrics, Inc. v. Jantzen, Inc., 582 F. Supp. 1287 (S.D.N.Y. 1984): "The arbitrator acted well within the proper scope of his discretion in refusing to consider a counterclaim submitted only one week before the arbitration hearing".
"Não complique demais as coisas, não se perca nos detalhes, isso é arbitragem, isso é visado como sendo temporal e economicamente eficiente para que os negócios possam seguir". Essa foi a fala de abertura do webinar promovido pela Swiss Chambers' Arbitration Institution em junho de 20201, que tratou das famosas virtual hearings. Apesar de tal fala se tornar cada vez mais distante temporalmente, as preocupações inerentes a ela permanecem presentes, razão pela qual discorrer-se-á, nessas breves linhas, sobre a evolução da arbitragem processada 100% por meio da modalidade remota desde o advento da pandemia da Covid-19 ("Pandemia"). Apesar de não ter sido a primeira vez que novas tecnologias surgiram para permitir o processamento mais eficiente e menos oneroso das arbitragens, ou que os atores da arbitragem passaram a estar baseados em localidades diferentes, 2020 foi palco de uma rápida adaptação da comunidade arbitral, diante do fato de que as etapas da arbitragem que ainda eram conduzidas de forma presencial sofreram um inesperado e irredutível impedimento causado pela Pandemia. Tal adaptação ocorreu diligentemente, com o prosseguimento normal dos procedimentos e a rápida disponibilização de instrumentos de apoio para tanto. Da mesma forma, doutrinadores e praticantes logo engajaram estudos sobre a matéria das arbitragens remotas e, consequentemente, questionamentos, preocupações e soluções.  Nesse contexto, apesar de muitos desses instrumentos e estudos tomarem um viés emergencial, já se pode dizer que as audiências remotas em específico, e o procedimento como um todo, tendem a não retornarem a uma realidade em que o virtual não seja ao menos preponderante. Entretanto, apesar de poder soar inédito, a realidade demonstra que os procedimentos arbitrais em geral já eram realizados, em sua maior parte, de forma remota2. Seja pela troca de documentos, pelas conferências entre árbitros ou audiências sobre questões procedimentais, a realidade na qual a arbitragem lida com partes localizadas em diversos estados e/ou países já impunha tal necessidade. Assim, em uma pesquisa realizada em 20183, verificou-se que, dentre o rol de entrevistados, mais de 90% já havia tido experiências em arbitragens com alguma etapa realizada por meio de videoconferências, ao passo que o International Centre for Settlement of Investment Disputes ("ICSID") afirmou que no ano de 2019 cerca de 60% de suas audiências já eram realizadas por videoconferência4. para alguns autores, o que teria mudado do dia para a noite com o advento da Pandemia, seria apenas a realização de audiências de forma remota na fase instrutória, as quais eram bastante limitadas, sendo essas realizadas especialmente no caso de testemunhas de menor relevância5. Mesmo assim, muitos dos ditos problemas enfrentados pela comunidade arbitral a partir das audiências remotas, na verdade, já encontram respostas nas experiências passadas. Exemplo disto é o Seoul Protocol on Video Conference in International Arbitration ("Seoul Protocol")6, o qual já tinha tido sua primeira minuta apresentada ao público em evento de novembro de 2018, endereçando questões que já poderiam, em alguma medida, ser encontradas mesmo em outros e anteriores guias, divulgados em 2012 e 20177. Questões como o local em que a testemunha prestaria seu depoimento, a necessidade de testes prévios dos equipamentos e de definições sobre o manuseio de documentos no âmbito das videoconferências, já eram tratadas e discutidas pela comunidade arbitral8-9. Dessa forma, ainda que menos generalizado, já havia uma forte tradição de elementos remotos nos procedimentos arbitrais, principalmente internacionais. De forma mais pulverizada, havia também discussões e orientações sobre tais práticas. Todavia, não se nega que a sua evolução ainda era lenta e gradual. O mesmo pode ser verificado a partir de uma análise das cortes no cenário mundial, também se verificando posicionamentos muito anteriores ao advento da Pandemia sobre a matéria. Desde o final dos anos 90, as cortes domésticas do Canadá já lidavam com a realidade de testemunhos por videoconferência, sendo diversos os exemplos encontrados10, inclusive com posicionamentos expressos e entusiasmados em favor desse mecanismo. O mesmo ocorria em 2005, no Reino Unido, com o caso Polanski v. Condé Nast Publications Limited11. Assim, pode-se considerar que o histórico da utilização das videoconferências para cross-examination não é recente, e tampouco inédito. Com o advento da Pandemia, as discussões a respeito da possibilidade - e consequências - da realização de procedimentos arbitrais integralmente de forma remota, fomentaram a criação de diversas regras, por meio de diferentes órgãos e institutos. Nesse sentido, o já referido Seoul Protocol, divulgado em 18 de março de 2020, iniciou então o que se tornaria um movimento global em busca de soluções para a nova realidade de procedimentos remotos. Este foi sucedido por outros importantes instrumentos como o ICC Guidance Note on Possible Measures Aimed at Mitigating the Effects of the COVID-19 Pandemic12, de 09 de abril de 2020, e o CIArb Guidance Note On Remote Dispute Resolution Proceedings, de 08 de abril de 202013. Em âmbito nacional, diversas instituições também divulgaram protocolos nesse sentido. Ainda em março de 2020, o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá ("CAM-CCBC"), a, Câmara de Conciliação Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP ("CMA-CIESP/FIESP") e a Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial-Brasil ("CAMARB") já haviam se manifestado sobre a migração à modalidade remota, tendo emitido, posteriormente, orientações mais específicas sobre o funcionamento das audiências, o que se verifica, por exemplo nas Notas sobre Reuniões e Audiências Remotas do CAM-CCBC14 e as Orientações da CMA-CIESP/FIESP para a Realização de Audiências Virtuais[15]. Para além das questões meramente técnicas, as instituições arbitrais viram a necessidade de dar um passo a mais, o que resultou em que algumas das mais relevantes câmaras internacionais viessem a inserir em seus regulamentos questões relacionadas à condução dos procedimentos de forma remota. Esse foi o caso da Câmara de Comércio Internacional ("CCI"), que teve a revisão de seu regulamento divulgada em 202116, e da London Court of International Arbitration ("LCIA"), que consolidou o caráter remoto dos procedimentos arbitrais, o qual já era em grande parte previsto no seu regulamento de 2014. Além destas alterações na LCIA e da CCI, também foi realizada uma atualização das IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration, amplamente utilizadas em arbitragens administradas pelas mais diversas câmaras ao redor do mundo, dando ênfase às remote hearings e, assim, influenciando o desenvolvimento da produção probatória em arbitragens principalmente internacionais17. Deve se registrar, por fim, que os procedimentos 100% remotos, em que se inclui a realização de audiências totalmente virtuais, não violam, per se, os princípios do contraditório, da ampla defesa, do livre convencimento ou da igualdade das Partes, cabendo ao Tribunal Arbitral, após ouvidas as Partes, decidir acerca do formato para a realização da audiência18. Com todas essas inovações e atualizações decorrentes do cenário de Pandemia, a comunidade arbitral sairá desse momento com uma bagagem muito mais extensa na condução de procedimentos arbitrais remotos. Não há dúvidas, assim, de que os procedimentos arbitrais processados integralmente de forma remota vieram para ficar. Com o preestabelecimento de regras, discutidas entre as partes, o tribunal arbitral e a instituição arbitral responsável pela administração do procedimento, o procedimento arbitral processado de forma remota tende a ser o caminho mais viável para a resolução de conflitos, em curto espaço de tempo e de forma economicamente viável e eficiente. ______________ 1 Disponível em Virtual Hearings in International Arbitration | ASA SCAI Webinar. Acesso em: 09 jan. 2021. 2 SCHERER, Maxi. Chapter 4: The Legal Framework of Remote Hearings. In: "International Arbitration and the Covid-19 Revolution" (Editado por Maxi Scherer, Niuscha Bassiri, Mohamed S. Abdel Wahab), Kluwer Law International, 2020. p. 67.       3 Disponível em: 2018 International Arbitration Survey: The Evolution of International Arbitration. Acesso em 05 mar. 2021. 4 Disponível em: ?A Brief Guide to Online Hearings at ICSID. Acesso em 20 fev. 2021. 5 Disponível em: Rethinking Virtual Hearings. Acesso em 18 fev. 2021. 6 Disponível em: Seoul Protocol on Video Conference in International Arbitration. Acesso em 01 mar. 2021. 7 Como o "Information Technology in International Arbitration" (2017), o "Techniques for Controlling Time and Costs in Arbitration" (2012), o Apêndice IV do Regulamento de Arbitragem da International Court of Arbitration ("ICC") de 2012 e o "Effective Management in Arbitration - A Guide to In-House Counsel and Other Party Representatives". 8Conforme reportado em: The 7th Asia Pacific ADR Conference. Acesso em 02 mar. 2021. 9 Disponível em: KCAB Releases Draft Protocol on Video Conferencing. Acesso em 01 mar. 2021. 10 CANADÁ, Corte Superior de Justiça de Ontario. Guarantee Co. of North America v. Nuytten, 1997; CANADÁ, Corte Superior de Justiça de Ontario. Wright v. Wasilewski, 2001. Disponível em: Wright v. Wasilewski, 2001 CanLII 28026 (ON SC). Acesso em: 15 mar. 2021; CANADÁ, Corte Superior de Justiça de Ontario. Davies v The Corporation of the Municipality of Clarington, 2015. Disponível em: Davies v. Clarington (Municipality), [2015] O.J. No. 3599. Acesso em 16 mar. 2021.  11 Disponível em: Judgments - Polanski (Appellant) v. Conde Nast Publications Limited (Respondents). Acesso em 02 mar. 2021. 12 Disponível em: ICC Guidance Note on Possible Measures Aimed at Mitigating the Effects of the COVID-19 Pandemic. Acesso em 02 mar. 2021. 13 Disponível em: Guidance Note on Remote Dispute Resolution Proceedings. Acesso em 20 fev. 2021. 14 Disponível em: Notas sobre Reuniões e Audiências Remotas do CAM-CCBC. Acesso em 01 mar. 2021. 15 Disponível em: Orientações da Câmara Ciesp/Fiesp para a realização de Audiências Virtuais. Acesso em 28 fev. 2021. 16 Disponível em: Regulamento de Arbitragem ICC. Acesso em 28 fev. 2021. 17 Disponível em: Reforma das Regras da IBA para a Produção de Provas em Arbitragem Internacional. Acesso em 06 mar. 2021. 18 A discussão a respeito do formato da audiência arbitral, atualmente, foi objeto de pesquisa do International Council for Commercial Arbitration ("ICCA"), intitulada "Does a Right to a Physical Hearing Exist in International Arbitration?", que investigou 86 jurisdições signatárias da Convenção de Nova Iorque. Em tal pesquisa, experts de cada uma das jurisdições se debruçaram sobre tal questionamento, tal como foi o caso do report de Rafael Francisco Alves sobre o Brasil, tendo constatado que em diversas jurisdições não há um direito a priori de uma audiência presencial. Este é o caso dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e país de Gales, todos, é claro, com as suas especificidades. Informações sobre tal pesquisa estão disponíveis em: Does a Right to a Physical Hearing Exist in International Arbitration?. Acesso em 23 jun. 2022.