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A revisão judicial de cláusulas arbitrais patológicas e o respeito à vontade das partes

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Atualizado às 08:54

Recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP")1 trouxe novamente à baila a discussão segundo a qual até que ponto é desejável e viável a interferência do Poder Judiciário em demandas arbitrais, especialmente ao tratar da vinculação das partes a uma cláusula compromissória incompleta, defeituosa ou patológica.

Nessas breves linhas, buscar-se-á apurar, conforme a melhor doutrina e julgados referentes ao tema, aspectos principiológicos e práticos que poderiam (ou não), apontar para um rumo diferente daquele exposto no julgado objeto deste estudo. Longe de ser uma crítica ao entendimento dos doutos julgadores, busca-se tão somente apresentar um outro prisma para a análise do caso.

Trata-se, na origem, de contrato de distribuição de software, contendo cláusula compromissória que indicava que litígios oriundos daquela avença seriam preferencialmente resolvidos por meio da arbitragem, dispondo ainda, dentre outros aspectos, sobre a sede de eventual arbitragem (São Paulo), o regulamento aplicável (CAMARB2, ainda que essa não fosse a Câmara escolhida), a composição do tribunal (três árbitros obrigatoriamente inscritos nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB), e a limitação quanto ao máximo a ser despendido pelas partes a título de custas arbitrais (cem mil reais).

Justamente esse último aspecto (teto de custas para fins de arbitragem), gerou o embate que culminou na atuação do Poder Judiciário e prolação do acórdão, objeto dessas linhas. Quando do pedido de instauração de procedimento arbitral por uma das partes junto à CAMARB, seguida da constituição do tribunal arbitral, adveio sentença arbitral que extinguiu o procedimento em curso única e exclusivamente por entender que a Câmara não possuía jurisdição por conta de sua tabela de custas não comportar o teto fixado pelas partes, porém reconhecendo que a lide deveria ser submetida a um tribunal arbitral que atendesse a tal limitação.

Diante disso, a parte autora propôs ação de instituição de arbitragem, nos termos do art. 7º da lei 9.307/1996 ("Lei de Arbitragem") visando sanar a patologia que impedia a efetiva instauração do procedimento arbitral, clamando socorro ao Poder Judiciário para que, em uma atuação integrativa, cooperativa e em prol da arbitragem3, viabilizasse a apresentação do caso perante um tribunal arbitral, nos termos da cláusula compromissória firmada. A sentença acolheu a pretensão autoral, determinando fosse constituído compromisso arbitral entre as partes, designando o Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil para solução do litígio (aplicando-se ao procedimento o regulamento da CAMARB), e estipulando que a parte que sustentou a impossibilidade de submissão da lide ao juízo arbitral por conta do teto de custas constante na cláusula compromissória, ainda que sucumbente no procedimento, não ficaria obrigada a suportar o pagamento de valor superior a R$ 100.000,00, com custas, despesas procedimentais e honorários advocatícios condenatórios e contratuais, estes em relação aos advogados contratados pela parte adversa.

O julgado relatado acima foi revisto pelo TJSP, que por meio de sua 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, por votação unânime, julgou improcedente a demanda, por entender que a situação dos autos não seria o caso de cláusula patológica, mas sim de enquadramento do procedimento arbitral a ser instaurado futuramente aos termos dispostos no compromisso, inclusive no que concerne à limitação quanto às custas e despesas.  A terceira juíza declarou voto convergente, suscitando a hipótese de "cláusula compromissória mista", apontando que, segundo seu entendimento, as partes teriam avençado que causas cujas despesas e custas excedessem o teto estipulado deveriam ser submetidas ao Poder Judiciário.

Primeiramente, é pacífico que a derrogação da jurisdição estatal em favor de um método privado e alternativo de solução de conflitos advém da autonomia da vontade das partes (limitada, obviamente, a alguns aspectos, tais como a arbitrabilidade objetiva e subjetiva). Se os contratantes optaram livre, voluntária e conscientemente pela arbitragem como meio de solução de controvérsias que possam surgir em uma determinada relação jurídica, não cabe ao Poder Judiciário alterar tal panorama, sob pena de colocar em risco inclusive o instituto da arbitragem como um todo, extrapolando os limites do caso específico e contrariando o remansoso entendimento, notadamente de tribunais superiores, no sentido de fomentar, fortalecer e dar segurança jurídica à arbitragem.

De qualquer modo, é de se dizer que não havendo dúvidas quanto à validade e existência da manifestação de vontade emanada pelas partes quando da escolha da arbitragem em detrimento do judiciário estatal para solucionar um litígio, qualquer questionamento ou dúvida que venha a surgir deve sempre ser solucionado tendo como norte que há de se privilegiar a autonomia da vontade das partes, interpretando eventuais dúvidas ou ambiguidades em favor arbitralis, e em atenção ao princípio do efeito útil da convenção de arbitragem.

Sobre o tema, Selma Ferreira Lemes discorre que "(...) a interpretação consoante o efeito útil significa que devemos supor que os redatores de uma cláusula arbitral tinham a intenção de outorgar-lhe um significado real e possível de operacionalização"4.

Além disso, após fixado entre as partes, de forma livre, voluntária e consciente, que serão submetidos os potenciais litígios de um contrato ou relação jurídica à arbitragem, tal disposição passa a ser vinculante e obrigatória, não podendo uma das partes desistir ou buscar se eximir de tal compromisso5. Sobre o tema, já se posicionaram os tribunais superiores, especialmente o Superior Tribunal de Justiça ("STJ")6.

Situações como a abordada no julgado em referência se traduzem inegavelmente na hipótese de cláusula compromissória patológica, assim considerada aquela cuja redação é ambígua, confusa, obscura e, por isso, impede que a arbitragem seja iniciada. Não obstante necessite de complementação ou esclarecimento, a cláusula compromissória patológica já é suficiente para gerar os efeitos positivo (determinar que as partes estarão obrigadas a solucionar eventual litígio pela via arbitral), e negativo (retirar do Judiciário o poder jurisdicional para julgar a lide)7.

Diante de uma cláusula compromissória existente, porém inoperante (como ocorre com uma cláusula compromissória patológica), a atuação do Poder Judiciário deve ter natureza integrativa, ou seja, voltada para o preenchimento da lacuna ou esclarecimento da ambiguidade e submissão da lide à arbitragem. Não cabe ao juízo estatal reescrever ou reinterpretar a vontade das partes, notadamente quando ela é clara e inequívoca, pendente apenas de que sejam aparadas algumas arestas que possibilite que a cláusula produza efeitos.

Conforme destaca José Rogério Cruz e Tucci8, privilegiar e fomentar a arbitragem é importante em um aspecto amplo, extrapolando o âmbito do caso concreto e sendo requisito importante para garantir pujança econômica e um ambiente empresarial sadio a um país. Garantir que contratos sejam cumpridos, estabilizando as relações comerciais, e que o Poder Judiciário afiance esse ambiente de estabilidade é essencial não só às partes contratantes, mas à própria coletividade.

O entendimento apresentado pelo TJSP encontra óbice prático, na medida em que, conforme consta dos autos, o valor envolvido no litígio a ser dirimido entre as partes torna impossível que se cumpra o teto indicado na cláusula compromissória, tendo sido apresentado nos autos planilha que indicava os custos estimados para a condução de uma arbitragem desse porte nas mais conceituadas instituições arbitrais do país, e nenhuma delas atendia o teto fixado na cláusula (ou seja, na prática era ela inoperante, patológica).

Faz-se necessário, ainda, destacar que, com todo o respeito a entendimento em sentido diverso, o caso não se amolda ao conceito de hybrid arbitration clause, como sugerido pelo voto convergente que integra o acórdão. Referidas cláusulas submetem o litígio à arbitragem, porém preveem o apoio do judiciário estatal em algumas hipóteses, de forma colaborativa9, ou ainda estipulam, de forma detalhada, quais litígios serão submetidos à arbitragem ou outro método de resolução de conflitos10 (inclusive o judiciário estatal), e não no sentido de retirar do juízo arbitral a jurisdição sobre o litígio, como sugerido no voto em questão.

Além disso, o entendimento consignado no voto convergente afronta, ao menos em tese, o parágrafo único do art. 8º da Lei de Arbitragem, ao retirar do tribunal arbitral a incumbência de decidir acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem (princípio da competência-competência).

Por este prisma, verifica-se que a solução dada pela decisão de primeiro grau mostrava-se adequada e atendia à finalidade integrativa e colaborativa que se espera do Poder Judiciário quando instado a se pronunciar sobre demandas envolvendo a arbitragem. A patologia fora sanada de forma a não gerar qualquer prejuízo às partes (eis que uma delas aceitou arcar com os custos que excedessem o teto da cláusula compromissória, inclusive da contraparte), indicou-se uma câmara arbitral reconhecida, séria e que não fora anteriormente indicada por qualquer das partes (de modo a evitar que, nas palavras do julgador de primeiro grau, "para que não se diga ao fim que se pendeu para um lado em detrimento do outro"), aplicando-se, no mais, o que já era previsto na cláusula compromissória originalmente entabulada pelas partes. Inegável que tal solução deu interpretação favor arbitralis e outorgando efeito útil à cláusula, sem olvidar a vontade das partes expressa no contrato.

Não cabe ao Poder Judiciário reescrever as cláusulas de um contrato, ou dar interpretação diametralmente diversa daquela que as partes buscaram externar na avença, como fez o TJSP no caso em apreço. Incursões e revisões do Poder Judiciário acerca de lides na qual as partes optaram livre e conscientemente em derrogar de sua jurisdição em prol de um tribunal arbitral são indesejáveis e contraproducentes, tanto para as partes como para a sociedade, colocando em risco a almejada e desejada segurança jurídica.

__________

1 Apelação Cìvel nº. 1107427-98.2021.8.26.0100. Ementa: "APELAÇÃO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA DE ARBITRAGEM. Sentença que constituiu compromisso arbitral entre as partes e designou o Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil para solução do litígio. Inconformismo da requerida. Alegação de violação ao princípio da adstrição ao pedido. Nulidade não reconhecida. Julgamento do mérito do recurso que há de beneficiar a recorrente. Inteligência do art. 282, §2º, do CPC. Mérito. Reconhecimento da incompetência da Jurisdição Arbitral pela Câmara eleita pelas partes. Tribunal Arbitral que, ao interpretar a cláusula compromissória, entendeu que seu intuito seria restringir a atuação da Jurisdição Arbitral aos casos cujas custas procedimentais fossem inferiores a R$ 100.000,00. Interpretação que há de ser considerada na espécie em prestígio ao princípio do kompetenz-kompetenz. Inteligência do art. 8º da Lei nº. 9.307/96. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO".

3 Sobre o assunto ver: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui" - Migalhas. Acesso em 23 out. 2022.

4 LEMES, Selma M. Ferreira. Cláusulas Arbitrais Ambíguas ou Contraditórias e a Interpretação da Vontade das Partes. In: MARTINS, Pedro B; GARCEZ, José Maria R. (orgs.). Reflexões sobre Arbitragem, in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima. São Paulo: LTr, 2002.

5 GUERRERO, Luis Fernando. Convenção de Arbitragem e Processo Arbitral. 4ª Edição - Revista e Atualizada. São Paulo: Almedina, 2022.

6 A título de exemplo, colhe-se o seguinte julgado: "DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL. SENTENÇA ARBITRAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO TÍTULO EXEQUENDO. INEXISTÊNCIA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ARBITRAL. DERROGAÇÃO DA JURISDIÇÃO ESTATAL. 1. Ação de execução de título executivo judicial - sentença arbitral. 2. Ação ajuizada em 26/09/2014. Recurso especial concluso ao gabinete em 13/12/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir se é nula a sentença arbitral que embasa a presente ação de execução de título executivo judicial. 4. A pactuação válida de cláusula compromissória possui força vinculante, obrigando as partes da relação contratual a respeitar, para a resolução dos conflitos daí decorrentes, a competência atribuída ao árbitro. (...) 8. Como regra, a celebração de cláusula compromissória implica a derrogação da jurisdição estatal, impondo ao árbitro o poder-dever de decidir as questões decorrentes do contrato e, inclusive, decidir acerca da própria existência, validade e eficácia da cláusula compromissória (princípio da Kompetenz-Kompetenz). Assim, se pairassem dúvidas acerca da própria contratação da cláusula compromissória arbitral, tal questão deveria ser dirimida pelo árbitro, não cabendo à parte intentar fazê-lo perante o juízo estatal. 9. Recurso especial conhecido e não provido". (STJ - REsp: 1818982 MS 2018/0285229-7, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 04/02/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/02/2020) (grifei).

7 Neste particular, importante destacar que o STJ reconhece que as patologias podem apresentar diferentes graus, sendo que no caso de omissão de forma essencial (p. ex., não atendimento do previsto no art. 4º, §2º, da Lei de Arbitragem), ela não produz efeito prático e perde sua função, hipótese na qual não gera seus efeitos positivo e negativo (AgInt no AgInt no REsp: 1431391/SP - Relator Min. Antônio Carlos Ferreira, DJE 24/04/2020). Não é essa a hipótese do caso em análise.

8 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Questões Polêmicas do Processo Arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

9 MEIRA MOSER, Luiz Gustavo. Cláusula Compromissória Híbrida: o Judiciário Cooperativo no Procedimento Arbitral. Publicado em 16 set. 2008. Disponível aqui. Acesso em 17 out. 2022.

10 "'Split' or 'hybrid' clauses allow one or both parties the right to elect litigation or arbitration once the dispute has arisen. These clauses have the advantage of allowing the most appropriate dispute resolution mechanism to be selected once the nature of the dispute and the location of the respondent's assets are actually known. However, careful consideration needs to be given to the inclusion of such clauses because in some jurisdictions they are not considered to be a proper reference to arbitration and are, therefore, invalid. In other jurisdictions, the validity of split clauses has not yet been tested. Even if split clauses are confirmed to be valid in the seat of arbitration, advice should also be sought on their validity in any jurisdiction of potential enforcement of an award. Split clauses are of two types: 'sole option', where one party has the right of election, and 'mutual option', where both parties have the right of election. Mutual option clauses can be very complex and run the risk of parallel proceedings if one party elects to arbitrate and the other elects to litigate (.) Split clauses are enforceable in England & Wales, Australia, Hong Kong, and Singapore, among others." (DEBEVOISE & PLIMPTON. "Debevoise International Arbitration Clause Handbook". 2018, p. 21/22. Debevoise & Plimpton LLP).