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Cláusula de resolução de disputas nos contratos de construção com regras FIDIC e a (in)compatibilidade com o instituto da prescrição

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Atualizado às 08:39

Objetiva-se nas presentes linhas, discorrer sobre as cláusulas de resolução de disputas em contratos de construção, notadamente aquelas que contêm um tempo limite para a apresentação de determinada reclamação e a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente o instituto da prescrição. Em linhas simples, objetiva-se discutir se os chamados "contractual time limits" constituiriam ou não afronta ao instituto da prescrição e, ao fim e ao cabo, se seriam válidas no direito brasileiro.

Das grandes obras de infraestrutura, decorrem o surgimento de grandes e complexas avenças. Normalmente, as partes, em tais avenças, preferem resolver seus litígios por meio que entendem mais adequado em relação ao processo estatal. Assim, inserem cláusulas compromissórias, algumas delas escalonadas, precedidas ou de mediação ou da formação de comitê de dispute boards.

Tais cláusulas de resolução de disputas podem, ainda, conter determinado regramento que imponha a determinada parte o exercício de determinada pretensão em lapso temporal pré-determinado. É o que acontece, por exemplo, na praxe das arbitragens internacionais de construção, notadamente, quando as partes elegem regramentos como o da Fédération Internationale des ingénieurs-conseils ("FIDIC"1).

A FIDIC foi criada em 1913, na Bélgica, constituindo-se o maior organismo internacional mundial formado por associações nacionais de engenheiros consultores, advindas de mais de 100 países em todo o mundo. Criou, ao logo dos anos, regramentos úteis aos contratos de construção2, como o seu livro vermelho, comumente chamado de "Red Book", o mais tradicional e utilizado no mercado da construção.

O aludido Red Book contém uma série de regras e condições ("Condições FIDIC"), tais como direitos e deveres do dono da obra, do empreiteiro e subcontratados, riscos e responsabilidades, seguros, ocorrência de força maior, dentre outros. Em particular, a cláusula 20.1 das aludidas regras dispõe que: 

Clause 20.1 If the Contractor considers himself to be entitled to any extension of the Time for Completion and/or any additional payment, under any Clause of these Conditions or otherwise in connection with the Contract, the Contractor shall give notice to the Engineer, describing the event or circumstance giving rise to the claim. The notice shall be given as soon as practicable, and not later than 28 days after the Contractor became aware, or should have become aware, of the event or circumstance. If the Contractor fails to give notice of a claim within such period of 28 days, the Time for Completion shall not be extended, the Contractor shall not be entitled to additional payment, and the Employer shall be discharged from all liability in connection with the claim. Otherwise, the following provisions of this Sub-Clause shall apply. 

O termo que gera dúvida entre os operadores do direito diz respeito ao prazo de 28 dias que o empreiteiro possui para fazer uma reivindicação à contraparte que diga respeito a um pedido de extensão de tempo e/ou pagamentos adicionais decorrentes de determinada obra. Tal dúvida seria justificada pelos seguintes questionamentos: (i) os direitos supostamente violados, decorrentes da referida cláusula dariam ensejo ao nascimento de uma pretensão condenatória, sujeita, portanto, ao correspondente prazo prescricional? E, (ii) em caso positivo, haveria compatibilidade do referido prazo (28 dias) com o direito brasileiro?

O instituto da prescrição tem como objetivo a garantia de estabilidade das relações jurídicas. Isto é, extinguindo-se as pretensões, acabariam as incertezas, os processos tardios, cujas provas já se pereceram, seriam eliminados e, ao fim e ao cabo, garantir-se-ia a realização da paz social. No direito brasileiro, para que haja o curso do prazo prescricional, deve ocorrer, necessariamente, uma lesão ao direito. É o que dispõe o art. 189 do CC: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206." É, portanto, a partir da violação ao direito, isto é, do sofrimento da lesão ou do momento em que o direito subjetivo vem a ser negado pelo descumprimento do dever jurídico a que ele corresponde3, que o prazo prescricional passa a correr.

O prazo de 28 dias estipulado pela clausula 20.01 das Condições FIDIC não parece, em princípio, criar um estado de sujeição às partes contratantes, a ponto de gerar perda de direitos. Ao revés, ao estatuir o direito da parte lesada de perquirir seus alegados direitos a favor da extensão dos prazos contratuais e do pagamento de verbas adicionais, o regramento induz o surgimento de uma pretensão de evidente natureza condenatória, a qual, segundo o direito brasileiro, se extingue pela prescrição. Essa é, inclusive, a opinião de Humberto Theodoro Junior:

"Para exigir pagamento de serviços e verbas extraordinárias, fora dos parâmetros da convenção, o direito do empreiteiro tem raiz na lei, e não no contrato, e assume, quando resistido, a categoria de pretensão. Logo, seu regime é da prescrição, seja quando se dê o seu enfoque sob o prisma direto da empreitada ou da prestação de serviços (Cód. Civil, arts. 610 e 596), seja quando se faça a sua subsunção à figura genérica do enriquecimento sem causa (art. 884)"4.

A assimilação de tal prazo estipulado contratualmente já foi objeto de discussão em sede de arbitragens internacionais. No caso CCI 11.039/2002, por exemplo, o tribunal arbitral valorizou e aplicou prazo de prescrição contratualmente firmado entre as partes. Nesse caso, um contrato de assistência técnica fora firmado entre uma empresa alemã (requerente) e outra dinamarquesa (requerida). Em virtude da alteração de determinadas circunstâncias do projeto intentado pela empresa requerente, um procedimento arbitral foi por ela instaurado junto à CCI de modo a reaver custos adicionais incorridos. A sede da arbitragem foi fixada em Berlim e a lei aplicável ao fundo da controvérsia era a alemã.

Durante o curso do processo, o tribunal arbitral decidiu, primeiramente, que as Condições FIDIC seriam aplicáveis à controvérsia, em razão de constar em todos os documentos postos nos autos a intenção das partes de se submeterem às referidas regras5. Assim declarado, cabia ao tribunal arbitral decidir acerca do pleito da requerida de que, à luz das regras postas nas Condições FIDIC, o prazo de prescrição de um ano teria se escoado.

De forma coerente com os princípios que norteiam a prescrição, o tribunal arbitral, conquanto entendesse que as Condições FIDIC se aplicariam à controvérsia, mas sabendo que a prescrição é questão que faz parte do mérito do litígio, procurou investigar no direito material alemão (BGB) se o prazo prescricional convencionado entre as partes por meio das Condições FIDIC se adequava à lei material alemã. O resultado encontrado pelo tribunal foi que, em primeiro lugar, o prazo prescricional estabelecido em contrato seria permitido pelo direito alemão, e, em segundo lugar, que a redução do prazo convencionada entre as partes com igual poder de barganha não teria o condão de criar uma situação de falta de razoabilidade, de desequilíbrio entre as partes6.

Por todas essas razões, considerando o contractual time-limit de acordo com a lei alemã, o tribunal arbitral julgou prescrita a pretensão.

Nada obstante é preciso asseverar que nem sempre o prazo prescricional convencionado entre as partes terá o condão de excluir de disposição legal imperativa. Foi o que restou decidido na sentença proferida no caso CCI nº 6.230, de 1990. Nesse caso, um contrato de construção fora firmado entre uma empresa austríaca (Requerida) e o governo de determinado país. Na cadeia de subcontratos ligados ao principal, a Requerida estabelecera um subcontrato com uma empresa inglesa (Requerente). Em razão de um conflito relativo a projetos realizados pela empresa inglesa subcontratada e não quitados pelo principal contratante, uma arbitragem fora instaurada perante a CCI. Tanto o contrato principal como o subcontrato eram regidos pelas Condições FIDIC, sendo ainda a eles aplicável o direito suíço. A sede da arbitragem restou fixada em Zurique.

Entre os diversos argumentos de defesa formulados pela Requerida encontrava-se o de que a pretensão arbitral estaria prescrita diante do não preenchimento das regras dispostas nas Condições FIDIC. Segundo a Requerida, a demanda teria sido instaurada em prazo superior ao disposto nas referidas condições, as quais eram aplicáveis ao contrato e, pois, à demanda.

Ao revés do caso anteriormente mencionado, o tribunal arbitral, ao investigar as disposições da lei material suíça, aplicáveis ao mérito, simplesmente descartou os limites temporais impostos pelas Condições FIDIC, pois entendeu que à prescrição se aplicava o direito suíço. Determinando ao caso, portanto, a aplicação do prazo prescricional de dez anos com fulcro no direito suíço, considerou que a pretensão arbitral não se encontrava prescrita7.

A conclusão a que se chega após a análise desses julgados é a de que nada impede que as partes convencionem acerca do prazo de prescrição para uma determinada pretensão8. Até mesmo para os casos que envolvem o direito da construção é interessante a estipulação de regras especiais, por exemplo, o caso das Condições FIDIC, também para a prescrição. Ocorre que os contractual time-limits sempre dependerão de um exame dos árbitros da lei aplicável ao mérito da controvérsia9. Se tal lei permitir que as partes estipulem consensualmente o prazo de prescrição, valerá o que estiver no contrato. Caso contrário, imperará a lei10. Logo, para as arbitragens internacionais em que a lei aplicável ao mérito seja a lei brasileira, não haverá lugar para acordos acerca da prescrição, em razão do disposto no art. 192 do CC, que dispõe: "Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes"11.

O objetivo dessas breves linhas não foi o de firmar uma posição sobre o assunto, mas levá-lo ao debate, diante da importância de se respeitar o regramento escolhido pelas partes numa determinada avença e sua compatibilidade com o direito aplicável ao mérito em determinado caso.

Conquanto se presuma curto o prazo estipulado na cláusula 20.01 das Condições FIDIC, ao mesmo tempo, não se pode deixar de levar em conta que tal prazo tem a sua razão de ser. Modelos como esse têm como objetivo primordial o de garantir eficácia e equilíbrio nas relações contratuais mantidas entre os atores da indústria da construção, tais como o dono da obra, empreiteiro, fornecedores, prestadores de serviços, consultores projetistas, dentre outros12. O tempo indefinido ou excessivamente prolongado por ser pernicioso à estabilidade das relações comerciais mantidas no setor de infraestrutura.

__________

1 Ou, em inglês:  International Federation of Consulting Engineers. A tradução livre para o português poderia ser a seguinte: Federação Internacional de Engenheiros em Consultoria.

2 A FIDIC adotou condições gerais relativas ao mercado de trabalho de engenharia civil, isto é, um contrato-modelo difundido e largamente utilizado no mercado internacional de construção. Segundo Fouchard, Gaillard e Goldman, "La Fédération internationale des ingénieurs-conseils (Fidic) a élaboré des 'Conditions générales applicable aux marchés de travaux de génie civil' (Conditions of contract for works of civil engineering construction), dont la dernière édition, la quatrième, a été adoptée en 1987. Il s'agit d'un contrat-type largement utilisé dans les contrats internationaux de construction et de genie civil qui pré-suppose l'intervention de trois parties: le maître de l'ouvrage, l'entrepreneur, et 'l'ingénieur', qui est le bureau d'étude, d'ingénierie, ou l'architecte chargé par le maître de l'ouvrage, en vertu d'un contrat distinct, de l'assister et d'agir en son nom lors de l'exécution des travaux" (Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 20).

3 Nesse sentido, Santiago Dantas, em suas aulas ministradas na antiga Faculdade Nacional de Direito, enunciou, com clareza, o conceito de lesão jurídica: "Que é a lesão de direito? A lesão de direito é aquele momento em que o direito subjetivo vem a ser negado pelo não cumprimento do dever jurídico que a ele corresponde. Sabe-se que da lesão do direito nascem dois efeitos: em primeiro lugar, um novo dever jurídico, que é a responsabilidade, o dever de ressarcir o dano, e, em segundo, a ação, o direito de invocar a tutela do Estado para corrigir a lesão do direito. A prescrição deve se conceituar em íntima ligação com a lesão do direito. Não surge o problema da prescrição, enquanto não há uma lesão do direito" (Prescrição e decadência. Programa de direito civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945). Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 395 e ss.)

4 JUNIOR, Humberto Theodoro. Empreitada. Alterações e acréscimos ao projeto. Remuneração complementar. Prescrição e decadência. Revista Forense, Vol. 378 (Pareceres), p. 217.

5 Nos termos da sentença: "[The Arbitral Tribunal found as follows]... The Parties had earlier made their intention clear to enter the Fidic Agreement and had now agreed on the wording by the Exchange of various drafts and views on individual clauses. [Claimant] must have been aware that [Respondent] presumed that the Agreement was valid between the Parties, event without joint signatures on the Fidic Agreement." Trecho da Sentença proferida no Caso CCI nº 11.039, de 2002. ICC International Court of Arbitration Bulletin, Paris: ICC Publication, v. 19, nº 2, p. 96, 2008.

6 Sentença proferida no Caso CCI nº 11.039, de 2002. ICC International Court of Arbitration Bulletin, Paris: ICC Publication, v. 19, nº 2, p. 96, 2008.

7 Sentença proferida no Caso CCI nº 6.230, de 1990. JARVIN, Sigvard; DERAINS, Yves; HASCHER, Dominique. Collection of ICC Arbitral Awards (1991-1995). The Netherlands: Kluwer Law, 1997. p. 95-96

8 Em sistemas conservadores como é o americano, a estipulação contratual da prescrição é aplicável à arbitragem, conforme informado por David A. Weintraub: "The third circumstance under which statutes of limitation would apply in arbitration is where the parties' contract expressely provides. Unless dictated otherwise by public policy, attorneys may include contractual language expressly providing that statutes of limitation shall apply in arbitration. Such clauses can specify a specific state's statute of limitation, or define a specific limitations period. This principle is illustrated in NCR Corporation v. CBS Liquor Control, Inc., 874 F. Sup. 168, 173 (S.D. Ohio 1993), aff'd 43 F.3d 1076 (6th Cir. 1995). The court stated that the parties 'could have lawfully incorporated... either an express limitation on claims or incorporated a statute of limitations by reference but they did not so'. The inclusion of such an express limitation would be relatively simple in any contract" (When do statutes of limitation apply in arbitration?. The Nebraska Lawyer, p. 26, nov.-dec. 2007).

9 A esse respeito, Luiz Olavo Baptista aduz o seguinte: "Outra exceção ocorre quando as partes tentam variar o prazo de prescrição pela sua própria vontade. Nesse caso há que saber se a lei aplicável admite essa mudança. Há grande diversidade quanto à admissão da possível modificação, pela vontade das partes, dos lapsos prescricionais, como uma pesquisa do CNUDCI o aponta, pois bem pode o juiz entender que a ordem pública a isso se impõe" (Dos contratos internacionais: uma visão teórica e prática. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 125).

10 Nesse sentido, afirmam Fouchard Gaillard e Goldman: "Le respect des délais fixés par les parties, directement ou par réference à un règlement d'arbitrage, pour introduire une demande d'arbitrage ne préjuge pas de l'irrecevabilité de la demande d'arbitrage susceptible de résulter du non-respect des exigences de la loi applicable au fond du contrat. Si la loi régissant un contrat de vente soumis à un tribunal arbitral impose que l'action en garantie des vices cachés soit exercée dans une période déterminée ou 'à bref délai', par exemple, il appartient aux arbitres, indépendamment du respect des règles de procédure, de sanctionner au fond le non-respect de ces délais pour en tirer les conséquences prévues par la loi applicable à la vente." (Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 673-674).

11 Ver, nesse sentido, NUNES, Thiago. Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 256.

12 A importância das regras criadas pela FIDIC, no sentido de uniformização do direito da construção (o que garante segurança jurídica ao respectivo mercado) é bem destacada pela obra de Gustavo Scheffer da Silveira: "Sans avoir à nous prononcer sur le bien-fondé de cette affirmation, force est de constater que les contrats-type de la FIDIC jouent depuis longtemps um rôle très important dans l'uniformisation du droit de la construction. Ces contrats on été redigés non seulement avec l'assistance des juristes spécialisés en la matière, mais également avec la participation des maitres de l'ouvrage, des ingénieurs, des entreprises de construction, de International Bar Association et des instituitions financières telles que la Banque mondiale. Par conséquent, ces contrats bénéficient d'une grande légitimité devat les opérateurs de la construction internationale et sont ainsi les contrats-type les plus utilisés dans le domaine de la construction  Internationale, utilisés dans au moins 50% des contrats internatiounaux de construction conclus à travers le monde". (Les modes de règlement des différends dans les contrats internationaux de construction. Bruxelles: Bruylant, 2018, p. 26-27).