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Dúvidas razoáveis sobre a independência e imparcialidade do árbitro na visão de recente decisão da Corte de Apelação de Paris, França

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Atualizado às 07:31

Um dos temas que vêm ganhando muita relevância na seara da arbitragem nos últimos anos diz respeito à extensão do dever de revelação dos árbitros, notadamente no que tange às dúvidas razoáveis sobre a independência e a imparcialidade da pessoa que se dispõe a exercer a função de árbitro. Diz-se extensão, pois certos fatos que, normalmente, não eram revelados pelos árbitros, passaram a ser, seja pela própria iniciativa da pessoa indicada como árbitro, seja pelos constantes pedidos de esclarecimentos formulados pelas partes, ou pelo entendimento manifestado pelos tribunais superiores no Brasil em recentes decisões1.

A questão é de extrema relevância e, recentemente, foi o foco das atenções da comunidade arbitral não só no Brasil, mas no mundo, em razão da decisão proferida pela Câmara Comercial Internacional da Corte de Apelação de Paris em 10 de janeiro de 2023.

O caso em questão dizia respeito a recurso com pedido de anulação de sentença arbitral parcial proferida por Tribunal Arbitral formado sob a égide de uma arbitragem internacional administrada pela Câmara de Comércio Internacional ("CCI"). A disputa no caso se deu entre duas partes de origem africana, o Port Autonome de Douala ("PAD") e o Douala International Terminal ("DIT"), tendo como pano de fundo contrato de concessão assinado em 28 de junho de 2004, com duração de 15 anos, para a gestão e a operação do modernizado terminal de contêineres do Porto de Douala ("Contrato").

Durante a execução do Contrato, surgiu uma disputa entre as partes em relação a distribuição das receitas provenientes do estacionamento de contêineres e de mercadorias na área de concessão. Em 16 de janeiro de 2019, o DIT iniciou uma arbitragem perante a Corte Internacional de Arbitragem da Câmara Internacional de Comércio em Paris ("CCI"), com base no art. 31 do Contrato. O DIT nomeou o Sr. Hugo Barbier, como coárbitro. O PAD nomeou o Sr. Achille André Ngwanza, como coárbitro. Os coárbitros nomearam o Sr. Thomas Clay como presidente do tribunal arbitral.

Por sentença parcial datada de 10 de novembro de 2020, o Tribunal Arbitral decidiu, inter alia, pela condenação do PAD, de modo que este indenizasse o DIT pelos danos causados e decidiu que o montante da compensação seria calculado em proporção ao período durante o qual o DIT fora privado da oportunidade de participar de um processo de concorrência internacional, o que lhe havia causado uma perda de 58,6 milhões de euros por todo o período da concessão de 15 anos, em relação ao período efetivo entre o final do Contrato e o primeiro dia da nova concessão, viabilizada após a implementação da nova licitação. Decidiu que, se o DIT recebesse a nova concessão, a duração da compensação recebida seria deduzida da duração da nova concessão.

Contra tal sentença parcial, o PAD apresentou, em 14 de dezembro de 2020, perante a Corte de Apelação de Paris recurso de anulação. Paralelamente, no contexto do procedimento arbitral, em relação aos outros pontos em litígio no mesmo tribunal arbitral, o PAD apresentou, em 20 de abril de 2021, um pedido de impugnação do presidente do tribunal arbitral perante a Corte Internacional de Arbitragem da CCI. Em 12 de maio de 2021, a Secretaria da CCI notificou as partes sobre a rejeição do pedido de impugnação do árbitro presidente.

Finalmente, diante da rejeição do pedido de impugnação realizado pelo PAD contra o árbitro presidente, o PAD ingressou com novo pedido de anulação (nesse caso, em razão da sentença final prolatada), sob a alegação de irregularidade na constituição do tribunal arbitral.

A irregularidade suscitada se deu no seguinte contexto: o árbitro presidente, no curso do procedimento, publicou nota de pesar pelo falecimento do principal patrono do DIT, o Professor Emmanuel Gaillard. Em tal nota, além dos elogios de praxe, afirmou que "o consultava antes de qualquer escolha importante"2. Tal menção se deu num contexto em que o árbitro presidente não só lidava com uma parte representada pelo escritório do qual pertencia o Professor Emmanuel Gaillard como também atuava em outros casos, dentre os quais uma audiência ocorreria em semanas, na qual o mesmo árbitro presidente também atuava como árbitro em caso envolvendo parte defendida pelo escritório do Professor Emmanuel Gaillard. Tais informações não foram reveladas no curso da arbitragem pelo árbitro presidente.

Para a Corte de Apelação de Paris, tais fatos constituem circunstância que, sem que se coloque em jogo a integridade intelectual e profissional do árbitro impugnado, era de natureza a fazer com que as partes pensassem que o presidente do tribunal arbitral não estaria livre de seu julgamento e, assim, criar uma situação ao PAD de dúvida justificada quanto à independência e imparcialidade do árbitro impugnado3.

Apesar de não ter entrado diretamente no mérito das consequências da ausência do cumprimento do dever de revelação, o acórdão de lavra da Corte de Apelação de Paris serve de alerta para a comunidade arbitral, em especial, a brasileira, sobre a importância do cumprimento de tal dever. É evidente que, certas situações, que envolvem as partes, seus patronos e os árbitros, dispensam a revelação prévia, ainda que um dos candidatos ao posto de árbitro tenha realizado algum serviço para o escritório de advocacia de uma das partes4. São exatamente as situações enumeradas na conhecida Lista Verde provida pelas Diretrizes da IBA sobre Conflito de Interesses na Arbitragem Internacional5. Em especial, situações corriqueiras, em que, por exemplo, o árbitro participa de painéis de congresso ou de bancas de mestrado ou doutorado com um dos patronos das partes. Mas há um limite para o razoável, há um limite para que o meramente subjetivo se torne objetivo.

O que se quer dizer é, em regra, as informações eventualmente não reveladas por um árbitro não são, per se, suficientes para gerar uma dúvida justificada acerca da independência e imparcialidade do aludido profissional6. Notadamente, quando as eventuais informações não reveladas estão sob domínio público, e assim, do ponto de vista objetivo, não necessariamente acarretam o impedimento do árbitro.

No entanto, o caso ora comentado trouxe um ponto fora da curva: a não revelação de uma grande proximidade, aliada a afirmações de cunho muito pessoal, como o fato de o árbitro consultar o patrono da parte antes de qualquer escolha importante, culminaram no entendimento de que o tribunal arbitral fora irregularmente constituído.

Transpondo o caso ora comentado para o direito brasileiro, deve-se observar que a eventual dúvida não revelada, não deve ser caracterizada como mínima (como pretende impor o Projeto de Lei Federal nº 3.293/2021, ou "PL Antiarbitragem"7, mas sim dúvida justificada, aquela de caráter objetivo, a qual deve ser imperiosamente revelada pela pessoa que se dispõe a exercer a função de árbitro8. Com efeito, a plena confiança das partes no árbitro e em sua imparcialidade apenas se dá com o devido exercício do dever de revelação9, ainda que as eventuais revelações sejam questões simples, dispostas em domínio público, mas que tenham relevância aos olhos de quem realmente litiga na arbitragem, isto é, as partes. São pontos que justificam a seriedade com que deve ser exercida atividade jurisdicional10.

__________

1 A esse respeito, ver, por todos: TJ-SP. AC: 10564004720198260100 SP 1056400-47.2019.8.26.0100, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 25/08/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 25/08/2020, conhecido como "Caso Alper".

3 No original, assim estabeleceu a Câmara Comercial Internacional da Corte de Apelação de Paris: "En revanche, le fait d'établir un lien entre l'existence des liens personnels étroits précités et une procédure d'arbitrage en cours, par la mention : « c'est sous ses nouvelles couleurs que je devais le retrouver dans trois semaines pour des audiences où il agirait comme conseil et moi comme arbitre, et je me réjouissais d'entendre à nouveau ses redoutables plaidoiries au couteau, où la précision et la hauteur de vue séduisaient bien plus encore que n'importe quel effet de manche. Ce rendez-vous n'aura pas lieu, pas plus que nos rencontres régulières (.) » associée à celle selon laquelle, de son côté, il le consultait « avant tout choix important », alors que l'arbitrage mentionné dont il était le président se poursuivait entre les mêmes parties, constitue une circonstance qui, sans remettre en cause l'intégrité intellectuelle et professionnelle de l'intéressé, était de nature à laisser penser aux parties que le président du tribunal arbitral pouvait ne pas être libre de son jugement et ainsi créer dans l'esprit du PAD un doute raisonnable quant à l'indépendance et l'impartialité de cet arbitre".

4 Nesse sentido, é o entendimento de Carlos Eduardo Stefen Elias: "Em geral, o mero fato de o árbitro ter realizado um único serviço com ou para o escritório de advocacia que representa uma das partes não consiste em causa para a aparência de parcialidade, especialmente se o negócio tiver sido de minimis, assim como ocorre com a prestação direta de serviço do escritório do árbitro para a própria parte" (Imparcialidade dos árbitros. São Paulo: Almedina, 2021, p. 152).

5 A esse respeito, ver IBA Guidelines on Conflict of Interest NOv 2014 TEXT PAGES.indd (ibanet.org). Acesso em 28 jan. 2023. Sobre a aludida Lista Verde, cita-se o entendimento de Daniela Vicente de Almeida: "Por último, surge-nos a lista verde que enumera as circunstâncias que não põem em causa a isenção dos árbitros, ou seja, cuja revelação dos factos não é exigida aos árbitros por se considerar que não estão em causa conflitos de interesses. São exemplos desses factos as opiniões que tenham sido dadas pelo árbitro num texto acadêmico ou num jornal sobre a matéria alvo da arbitragem; o facto e de um advogado terem sido ambos nomeados como árbitros num outro processo arbitral ou o facto de o árbitro ter frequentado a mesma faculdade que outro árbitro ou advogado de uma das partes, etc". (O dever de revelação como problema de independência e imparcialidade dos árbitros. Coimbra: Almedina, 2018, p. 137).

6 Esse é, inclusive, o entendimento de Daniela Vicente de Almeida: "Nesta senda, não nos parece crucial que o árbitro tenha de revelar todas as circunstâncias em que tenha contactado previamente com um dos intervenientes no processo: o que importa garantir é que esses factos não influenciam o modo como o árbitro decidirá aquele processo e que aquelas circunstâncias não representam, para as partes, um motivo que as façam suspeitar do árbitro se por hipótese venham a ter conhecimento delas mais tarde". (O dever de revelação como problema de independência e imparcialidade dos árbitros. Coimbra: Almedina, 2018, p. 138).

7 Ver, a esse respeito: Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021 - Migalhas. Acesso em 28 jan. 2023.

8 Conforme a precisa lição de Ricardo Dalmaso Marques: "Árbitros devem ponderar se a não revelação poderá ser suscitada posteriormente como causa razoável de invalidade do processo e da sentença - ou de denegação de homologação, se estrangeira -, por não se ter obtido um consentimento informado das partes para a sua contratação. Devem ponderar apenas se a informação é desconhecida, relevante e necessária, e não se há riscos de impugnações descabidas com base nos fatos informados (O dever de revelação dos árbitros. São Paulo: Almedina, 2018, p. 255-256).

9 Segundo Alfonso Gomez-Acebo: "On the one hand, they provided for the right of any disputing party to challenge an arbitrator 'if circumstances exist that give rise to justifiable doubts as to the arbitrator's impartiality or independence'. On the other hand, they protected the parties' right of challenge by imposing on every arbitrator a continuing duty of disclosing to the parties 'any circumstances likely to give rise to justifiable doubts as to his impartiality or independence'." (The Standard of Impartiality and Independence, International Arbitration Law Library, vol. 34, 2016, p. 69-96).

10 Nesse sentido, é o entendimento de Andréa Galhardo Palma e Renato de Toledo Piza: "Como ponto de partida, é preciso entender que os fatos e circunstâncias merecedores de revelação são todos aqueles que possam despertar dúvida quanto à esperada neutralidade do árbitro pela perspectiva da parte (aos olhos da parte). Dizendo o mesmo, mas por outro ângulo, não pode o árbitro deixar de informar fatos que apenas ele, pessoalmente, considere irrelevantes. Muito pelo contrário. Tomar o problema pela perspectiva da parte reclama que o dever de revelação seja amplo, evitando-se o risco da omissão quanto ao fato que muito embora o julgador considere irrelevante, poderia não ser assim percebido pelas partes". (Dever de revelação do árbitro: direito subjetivo das partes ou discricionariedade do árbitro? In: Direito Internacional Aplicado. CUNHA, Fernando Antonio Maia da; LAZZARESCHI NETO, Alfredo Sérgio (Coords.). Vol. II. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 413-414).