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Árbitros e arbitragens: a propósito do PL 3.293/2021

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Atualizado às 08:40

Em 23 de setembro de 2021 foi apresentado o PL 3.293/20211 de autoria da Exma. Deputada Federal Margarete Coelho, que tem no seu escopo a alteração da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), "para disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o encerramento do procedimento arbitral e a publicidade das ações anulatórias, além de dar outras providências" ("PL").

Entre os tópicos mais discutidos e criticados desde o advento do aludido PL está a mencionada disciplina de atuação do árbitro. Em relação a esse ponto, o PL propõe acréscimos aos arts. 13 e 14 da Lei de Arbitragem, da seguinte forma:

"Art. 13. Poderá ser árbitro qualquer pessoa capaz que tenha disponibilidade e a confiança das partes 

§8º O árbitro não poderá atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral 

§9º Não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada." 

"Art. 14 (...) 

§3º Os integrantes da secretaria ou diretoria executiva da câmara arbitral não poderão funcionar em nenhum procedimento administrado por aquele órgão, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, ou ainda como patrono de qualquer das partes."

Não há dúvidas de que eventuais propostas que visam o aprimoramento de um determinado sistema legal são salutares e bem-vindas. Assim o foi quando, de forma coordenada e organizada, uma comissão de juristas foi formada no âmbito do Senado Federal em 2013, liderada pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") Luís Felipe Salomão e que resultou na promulgação da lei 13.129, de 26 de maio de 2015. Encampando as orientações trazidas pela jurisprudência dos tribunais, em especial a do STJ, a referida lei muito mais aprimorou do que reformou o sistema arbitral brasileiro, alçando-o a um dos mais completos e modernos do mundo.

No entanto, o advento do PL em questão surgiu como uma verdadeira surpresa no âmbito arbitral, gerando perplexidade. Dentre os pontos elencados no PL para mudança da Lei de Arbitragem, o que mais causou repulsa se refere aos supracitados acréscimos aos arts. 13 e 14 da Lei de Arbitragem, os quais, em resumo, tratam das atribuições do profissional que exerce a função de árbitro.

O primeiro ponto que merece atenção é a limitação que o PL faz ao número de arbitragens por árbitro e a limitação da composição de painéis arbitrais pela criada impossibilidade de "haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento". Tal regra não pode prosperar, pois fere gravemente o mais importante princípio da arbitragem que é o da autonomia da vontade. Ademais, a referida disposição está em plena contradição com o art. 13, caput, da Lei de Arbitragem, segundo o qual "Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes". Trata-se aqui da confiança lida em seu sentido estrito, isto é, na crença na probidade moral, na sinceridade e lealdade e, também, na competência técnica2 do profissional que exerce a função de árbitro. Por evidente que, na dicção do art. 13, caput, da Lei de Arbitragem, os árbitros devem ter a confiança das partes, o que faz com que a indicação do árbitro represente uma das mais estratégicas e importantes decisões a serem tomadas na arbitragem3, não fazendo qualquer sentido técnico a proposta do PL em discussão.

O que parece ser o pano de fundo para a criação da referida regra seria a repetição de relações entre profissionais que, ora atuam na condição de árbitros, ora na condição de advogados. Ainda que seja essa a intenção do PL, o sentido jurídico da regra proposta não se alinha à liberdade conferida às partes para constituir o painel de seu interesse. É justamente na figura do árbitro que se concentra toda a valoração da arbitragem4. E são as partes, de forma livre, que fazem essa escolha e por ela se responsabilizam, ainda que o profissional nomeado possua uma grande quantidade de arbitragens em curso, ou que a parte saiba que o árbitro nomeado já funcionou como advogado de uma das partes contendentes ou tenha apresentado parecer ou opinião legal para o escritório de advocacia que patrocina os interesses de uma das partes na disputa. Não há nada de errado, ilegal ou antiético nessa prática, tampouco gera o aumento de tempo de tramitação das arbitragens ou o ingresso de ações anulatórias, como constou da justificação do PL.

As regras que concernem à atividade do árbitro, número de arbitragens em curso, relacionamentos mantidos com as partes e/ou seus patronos e respectiva revelação de tais pontos são questões autorreguláveis5. A prática arbitral, notadamente a internacional, coube disciplinar tais questões, o que foi feito por meio das Regras da IBA sobre Conflito de Interesses na Arbitragem Internacional6. Além disso, ainda que as partes prefiram não se valer das aludidas regras, elas mesmas podem fazer os questionamentos que entendam necessários no início do procedimento. Aliás, essa prática vem ganhando corpo e é salutar para a transparência da arbitragem. Ao profissional indicado para assumir o posto de árbitro cabe tão somente tecer os esclarecimentos pretendidos pela parte, e nada mais. Árbitro é pessoa da confiança da parte que o indica e esse é um dos grandes valores conferidos pela Lei de Arbitragem. Não é a quantidade de arbitragens que um árbitro atua que influenciará no tempo de tramitação do procedimento arbitral e na qualidade das decisões arbitrais, mas sim o caráter ético e a seriedade dos julgadores escolhidos pelas partes para resolver a controvérsia7. Não há necessidade de se estabelecer regramento específico para isso, tampouco seria salutar, pois, repita-se, sepultaria a autonomia da vontade das partes, desvirtuando-se por completo a liberdade contratual caracterizadora da arbitragem.

Igualmente não prospera a regra que tem por condão impedir a atuação de secretários e diretores de câmaras arbitrais em procedimentos administrados por aquele órgão. O PL parece confundir a figura do árbitro com a da instituição arbitral, o que é um equívoco técnico. A instituição arbitral deve zelar pela administração do procedimento arbitral, atuando de forma escorreita e ética8. Não possui a instituição arbitral poderes jurisdicionais, os quais pertencem unicamente aos árbitros constituídos, não havendo, dessa forma, qualquer ingerência dos dirigentes de instituições arbitrais sobre as decisões a serem tomadas no mérito da disputa. A proposta do PL, nesse sentido, desconsidera, inclusive a orientação do STJ que, em julgado recente, entendeu, de forma definitiva, que "a instituição arbitral por ser simples organizadora do procedimento arbitral não possui interesse processual nem legitimidade para integrar o polo passivo da ação"9.

Após vinte cinco anos de vigência da Lei de Arbitragem, o Brasil passou a ser considerado um dos mais respeitados players do mundo em matéria de arbitragem, tendo o aperfeiçoamento da prática arbitral brasileira se consolidado e expandido por todas as regiões do Brasil. Esse sucesso se deve não só ao legislador (que apresentou um projeto de lei moderno e baseado em diplomas de importância significativa, como a Lei Espanhola de Arbitragem10 e a Lei Modelo da Uncitral11), e que evoluiu ao longo do tempo, se alinhando à tendência jurisprudencial a respeito de importantes temas (e.g. regulamentação da arbitragem envolvendo a administração pública, a permissão do uso de medidas cautelares pré-arbitrais perante o Poder Judiciário inter alia), mas também a comunidade arbitral como um todo, como advogados, in house coulsels e árbitros atuantes nessa seara que compreendeu o "espírito" da arbitragem e suas peculiaridades. Prova disso é o baixo índice de anulação de sentenças arbitrais pelo Poder Judiciário, bem como a maciça jurisprudência pró-arbitragem desenvolvida no âmbito dos tribunais superiores, em especial a do STJ12.

Para que o Brasil permaneça sendo considerado um dos top players da arbitragem no mundo e mantenha o nível de confiabilidade para sediar arbitragens internacionais, é preciso de estabilidade legislativa. A Lei de Arbitragem, repita-se, é uma lei moderna, de princípios e que foi recentemente aprimorada pelo legislador, mediante estudo sério, coordenado e organizado. Por mais que seja louvável qualquer proposta de mudança legislativa, a que foi apresentada por meio do PL ora comentado não pode prevalecer, sob pena de levar o Brasil à decadência arbitral. É preciso que as principais entidades arbitrais brasileiras se mobilizem junto ao congresso nacional para, após o diálogo técnico e construtivo com as lideranças legislativas, levar o PL em discussão ao definitivo arquivamento13.

__________

1 Fonte: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em 22 out. 2021.

2 Segundo Antônio Lopes de Sá: "O conhecimento, no caso, não é apenas a acumulação de teorias, teoremas e experiências, mas também o domínio pleno sobre tudo o que é abrangido pela tarefa que se encontra sob a responsabilidade direta de um profissional (...). É dever ético-profissional dominar o conhecimento, como condição originária da qualidade ou eficácia da tarefa". (Ética Profissional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 155).

3 O caráter estratégico da escolha do árbitro é, inclusive, frisado nas diretrizes do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb), que em sua Guideline 1 dispõe: "As the selection of arbitrators is one of the most important strategic decisions in arbitration, the parties may want to interview a prospective arbitrator before making an appointment instead of relying solely on publicly available information and personal recommendations". Para a verificação das diretrizes editadas pelo CIArb e correspondentes comentários ver aqui. Acesso em 22 out. 2021.

4 Segundo Selma Ferreira Lemes: "Discorrer sobre o papel do árbitro no procedimento arbitral impõe, inicialmente, refletir sobre um adágio mundialmente conhecido: 'a arbitragem vale o que vale o árbitro", fato incontroverso. E mais, saliento que "o árbitro representa a chave da abóbada da arbitragem e ao seu redor gravitam todos os temas e conceitos afeitos à arbitragem'." Fonte aqui. Acesso em 22 out. 2021.

5 Ver, nesse sentido, ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, p. 234.

6 Diretrizes da International Bar Association sobre Conflitos de Interesses na Arbitragem Internacional. Fonte: IBA Guidelines on Conflict of Interest NOv 2014 TEXT PAGES.indd (ibanet.org). Acesso em 22 out. 2021.

7 Aduz, nesse sentido, a Ministra do STJ Nancy Andrighi: "Ousa-se afirmar que o sucesso e a utilização frequente da arbitragem dependem da qualidade moral, ética e técnica daquele que irá desempenhar o papel de árbitro, pois na lisura de seu comportamento e na seriedade do julgamento que proferir repousam a segurança e confiança dos cidadãos quanto à eficácia da arbitragem como forma alternativa de solução de conflitos". (A ética como pilar de segurança da arbitragem, Revista de Doutrina e Jurisprudência, Brasília, (53): ll-84, jan./abr. 1997).

8 Nesse sentido, a opinião de Gilberto Giusti: "Pois comportamento não menos escorreito é o que também se espera das instituições de arbitragem, assim entendidas, nas palavras do art. 5º da lei 9.307/1996, o "órgão arbitral institucional ou entidade especializada" com regulamento a que as partes podem se reportar por ocasião da celebração da convenção de arbitragem e, principalmente, que contenham estrutura adequada para administrar o respectivo procedimento arbitral, se assim for eleito pelas partes". (A ética das instituições de arbitragem, Revista brasileira de arbitragem, v. 10, n. 40, out./dez. 2013, p. 82).

9 STJ, Terceira Turma, REsp nº 1.433.940, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 26.09.2017, DJ 02.10.2017, v.u.

10 Lei 63/2011, de 14 de dezembro (versão atualizada). Fonte: BOE.es - BOE-A-2003-23646 Ley 60/2003, de 23 de diciembre, de Arbitraje. Acesso em 22 out. 2021.

11 A Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional é uma lei modelo preparada e adotada pela pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional em 21 de junho de 1985 e revista em 2006. Disponível aqui. Acesso em 22 out. 2021.

12 Dados que podem ser aferidos em pesquisa realizada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem ("CBAr") em conjunto com a Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem ("ABEArb"). Fonte aqui. Acesso em 22 out. 2021.

13 No mesmo sentido (de arquivamento do PL) vide a opinião de José Rogério Cruz e Tucci. Acesso em 22 out.2021.