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O terceiro financiador na arbitragem e fraude à execução

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Atualizado em 27 de outubro de 2025 09:24

O tema relativo ao terceiro financiador na arbitragem, conhecido no jargão internacional como "Third Party Funding", foi objeto de acórdão de lavra da 18ª Câmara Cível do TJ/MG. De forma surpreendente, o Judiciário mineiro entendeu que tal mecanismo, em vista de uma ação de execução pretérita, perde os seus efeitos. Em outras palavras, o mecanismo do terceiro financiador na arbitragem, se posto em prática quando pendente ação de execução movida contra a parte financiada, configura fraude à execução, nos termos do art. 792, inciso IV do CPC. O acórdão em questão restou assim ementado1:

"EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS DE TERCEIRO INVESTIDOR - FINANCIAMENTO DE DEMANDA ARBITRAL.

FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA - SUFICIÊNCIA DE ANÁLISE - NULIDADE - NÃO OCORRÊNCIA - Afigura-se fundamentada a sentença que aborda as circunstâncias do litígio, ainda que sem mencionar expressamente algum dispositivo legal suscitado pelas partes, conforme previsão do art. 93, IX, da Constituição da República, cuja interpretação foi pacificada no Tema 339 do STF.

CONTRATO SUBSEQUENTE SEM ADITAMENTO - CESSIONÁRIOS DISTINTOS - CONTINUIDADE OU COLIGAÇÃO CONTRATUAL - NÃO OCORRÊNCIA - Instrumento subsequente sem aditamento ou prorrogação, em que há cessionários distintos, não caracteriza continuidade ou coligação contratual, mas, ao revés, expressa inequívoca novação contratual.

CESSÃO DE CRÉDITOS FUTUROS - OPONIBILIDADE DE EXECUÇÃO JUDICIAL PRETÉRITA - INEFICÁCIA SUPERVENIENTE - Ainda que não haja expressa disposição legal sobre a disciplina do terceiro investidor (litigation finance ou third-party-funding"), sua prática é reconhecida no mercado (tipicidade social), o que obriga os contratantes à observância dos limites contratuais e seus efeitos, inclusive a oponibilidade perante terceiros, uma vez que o objeto ou bem da cessão de crédito pode ser futuro, mas a cessão, além de conhecida e atual, é superveniente à execução judicial.

EXECUÇÃO PENDENTE - CRONOLOGIA DE FATOS E CONTRATOS - FRAUDE CONFIGURADA - Se, da análise do conjunto probatório coligido, afere-se a reconhecida pendência da execução judicial, com amplo conhecimento do cedente e do cessionário do crédito, além do manifesto prejuízo à segurança patrimonial do exequente, configura-se fraude à execução, nos termos do art. 792, IV, do CPC". 

Em sumaríssima exposição, o caso tem origem em financiamento obtido por uma parte no ano de 2017, de modo a ingressar com processo arbitral em face de outra empresa.

Tal financiamento, consubstanciado pela cessão de potencial crédito à empresa de um grupo financiador (a L.D. LLC) foi aditado quatro anos depois, e firmado por fundo do mesmo grupo financiador (o Fundo L.B.B.F.I.E.D.C.N.P). Ocorre que tal aditamento se deu no curso de ação de execução proposta em 2018 por uma instituição financeira contra a parte financiada. Observe-se que cessão de crédito só seria implementada sob condição suspensiva, qual seja, o êxito nos processos arbitrais. Com efeito, não houve alienação de qualquer bem que integra o patrimônio da executada. Ainda assim, diante dessas circunstâncias, a turma julgadora entendeu que a nova contratação representaria novação objetiva, vez que culminou na presença de novo cessionário, configurando-se, assim, hipótese de fraude à execução. Os fundamentos adotados pelo acórdão, além de equivocados, revelam excessivo formalismo que vulnera a razão de ser de um dos mecanismos mais modernos de acesso à justiça, com boa aceitação e utilização no âmbito da arbitragem, que é o Third Party Funding.

Objeto de vigorosos estudos nos últimos anos2, notadamente em razão de uma lacuna existente na lei 9.307/96 ("lei de arbitragem"), o mecanismo do Third Party Funding tem como objetivo possibilitar que uma parte, que contratou a arbitragem como modo de resolução de litígios oriundos de determinada avença, e esteja em situação financeira deficitária3, tenha a possibilidade de ser financiada por uma terceira parte, que cobrirá todos os custos da arbitragem mediante uma taxa de êxito, caso a parte financiada se sagre vencedora na contenda. Nesse sentido, expõe a doutrina4:

"Em linhas gerais, pode-se conceituar o financiamento por terceiros como o investimento feito por um terceiro em um ou mais litígios com os quais ele não possui qualquer outra ligação, por meio da qual parcela (ou a totalidade) dos custos da demanda (e consequentemente dos riscos) é repassada ao financiador, cuja remuneração está vinculada ao sucesso da demanda". 

O crescimento do uso do mecanismo do Third Party Funding é revelado, não apenas pela sua inclusão em regras arbitrais5 e em diretrizes6 providas por respeitosas instituições, como pelos constantes esclarecimentos que são formulados pelas partes numa arbitragem, a respeito de uma delas estar sendo financiada por um terceiro. Trata-se de questão relevante para fins de transparência e de não ocorrência de conflitos de interesse na arbitragem.

O aumento da litigância na área empresarial e os consideráveis custos que as partes incorrem numa arbitragem, levam à discussão a respeito da chamada "impecuniosidade", isto é, a necessidade de acesso à justiça versus o princípio da força obrigatória dos contratos. Como não há no sistema processual brasileiro qualquer norma que imponha ao Estado "oferecer assistência para o cidadão acessar a arbitragem"7, ganha força o mecanismo do Third Party Funding, pelo qual um terceiro financiador investe em determinada demanda e supre todas as necessidades de custeio da arbitragem pela parte financiada, resolvendo, ou no mínimo, mitigando o eventual impedimento de acesso à justiça daquela parte. Certamente, trata-se da medida mais adequada e importante para que a parte sem recursos tenha viabilizada a sua garantia constitucional de acesso à justiça.

A decisão proferida pelo TJ/MG põe em risco o uso de tal mecanismo, cuja difusão é crescente no Brasil e no exterior. A uma, a decisão sequer explora, de forma devida, a função do mecanismo do Third Party Funding, reduzindo a uma superficial menção à validade de tal mecanismo (a qual sequer é discutível). A duas, a decisão promove a sua investigação à luz da proteção do exequente de boa-fé, e é nessa parte que, com as vênias de praxe, o Poder Judiciário incorre em equívoco de fundamento, ao deixar de contrastar a função do mecanismo do Third Party Funding com o elemento subjetivo da boa-fé do terceiro adquirente (o exequente), o que fora levado em consideração pelo TJ/MG nas razões de decidir.

Com efeito, para que ocorra fraude à execução são necessários certos requisitos como: existência de uma demanda em curso, a citação válida do devedor e a alienação do bem que cause a insolvência do devedor. Quanto a esse último aspecto, o art. 792, inciso IV do CPC, adotado na decisão ora comentada, dispõe claramente que a alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução "quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência"8. Não há, de fato, qualquer elemento posto no acórdão do TJ/MG que conduza a essa conclusão. Isso porque, diante de uma análise, ainda que em caráter perfunctório, o mecanismo do Third Party Funding, em sua essência, tem como condão viabilizar potenciais ganhos do chamado devedor (na acepção legal do CPC), visto que o financiamento é feito após profunda análise acerca das chances de êxito do recebimento de um crédito. Tal exame não foi levado em consideração pelo TJ/MG, que optou por se ater a um critério temporal, formalista e equivocado, dando ênfase a eventual saldo remanescente da parte financiadora e não ao potencial ganho pela parte financiada.

Os equívocos do acórdão de lavra do TJ/MG não param neste ponto, pois no caso em questão não há provas de que a parte financiada (ora executada) se tornaria insolvente com o financiamento do litígio, tampouco restou provada má-fé da parte financiada e da financiadora capaz de caracterizar intuito de prejudicar o credor (terceiro, exequente). A jurisprudência do STJ, aliás, já manifestou entendimento nesse exato sentido:

"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. CESSÃO DE CRÉDITOS ALEGADAMENTE REALIZADA EM FRAUDE À EXECUÇÃO. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE AFASTA A FRAUDE POR FALTA DE EVENTUS DAMINI E NÃO COMPROVAÇÃO DE CONSILIUM FRAUDIS. SUMULA Nº 7 DO STJ. 1. O acórdão estadual recorrido, pelo seu voto vencedor, afirmou que não seria possível reconhecer a ocorrência de fraude à execução, porque não havia indícios de que o cedente do crédito, ou seja, o executado, se tornaria insolvente com essa operação (eventus damini) e nem de que ele e o cessionário se associaram para prejudicar o credor (consilium fraudis). 2. Eventuais divergências entre o voto vencedor e o voto vencido com relação a esses temas fáticos devem ser solucionadas pela atribuição de maior crédito ao voto vencedor. 3. Não se trata, vale dizer, de negar a eficácia prequestionadora do voto vencido, mas simplesmente de reconhecer a impossibilidade de cotejar, em grau de recurso especial, os votos vencedor e vencido para averiguar qual deles incorpora moldura fática mais consentânea com a prova dos autos. Isso com fundamento na Súmula nº 7 do STJ. 4. Agravo interno não provido"9.

A partir do precedente acima transcrito, é possível concluir que faltou ao TJ/MG analisar o que realmente constitui o instituto da fraude à execução, e suas funções, as quais, na visão de Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo devem conciliar dois objetivos: "de um lado, evitar que a atividade jurisdicional se frustre porque os bens que a ela estariam sujeitos foram transferidos para o patrimônio de terceiro; e, de outro lado, definir claramente em que situações os bens permanecerão sujeitos à atividade jurisdicional ainda que estejam em patrimônio de terceiro. O sistema se completa, ainda, pela existência à disposição do terceiro de um meio processual para que esse possa alegar e provar que a situação em que o bem foi transferido ao seu patrimônio não se configurava como alguma daquelas definidas como fraude de execução"10.

Nessa mesma linha, como bem afirmam Napoleão Casado Filho e Alexia Paola Diegues Alves da Cunha, a "mera existência de litígio ou de execução pendente, sem demonstração concreta de má-fé, consilium fraudis ou ocultação patrimonial dolosa, não deve conduzir à caracterização de fraude, sob pena de desestimular ou mesmo inviabilizar o mercado de financiamento de demandas judiciais, instrumento legítimo de alocação de riscos entre agentes especializados"11.

É de se esperar que, conforme os pontos deduzidos nessas linhas o acórdão de lavra do TJ/MG ora comentado seja revertido, em prol não apenas do bom direito, mas por uma questão de cunho econômico, isto é, a manutenção sadia, segura e estável do mercado do Third Party Funding, gerando estímulo aos investidores e, ao mesmo tempo, protegendo o sagrado ao direito de acesso à justiça.

__________________________

1 TJMG, 18ª Câmara Cível, Apelação Cível n. 1.000.23.268860-6/001, rel. Des. Marcelo de Oliveira Milagres, j. 13.08.2024.

2 Ver, a esse respeito, as seguintes obras de referência: CASADO FILHO, Napoleão. Arbitragem e Acesso à Justiça: o novo paradigma do third party funding. São Paulo: Saraiva, 2017; CARDOSO, Marcel Carvalho Engholm. Arbitragem e Financiamento por Terceiros. São Paulo: Almedina, 2020; e CABRAL, Thiago Dias Delfino. Impecuniosidade e Arbitragem: uma análise da ausência de recursos financeiros para a instauração do procedimento arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2020.

3 Tal fenômeno é bem explicado por Napoleão Casado Filho: "É evidente que, sempre que possível, se deve buscar a intenção das partes para solucionar um caso arbitral. Contudo, na situação em que uma das partes passa a não possuir recursos para fazer frente às despesas do procedimento, tal verificação da intenção não é nada simples. Afinal, em regra, as partes não pensaram, que, um dia, poderiam estar sem condições de enfrentar os custos do procedimento arbitral. Assim, continuamos, em regra, com o problema sem solução aparente" (CASADO FILHO, Napoleão. Arbitragem e Acesso à Justiça: o novo paradigma do third party funding. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 82-83).

4 CARDOSO, Marcel Carvalho Engholm. Arbitragem e financiamento por terceiros. São Paulo: Almedina, 2020, p. 49.

5 Ver Artigo 11(7) do Regulamento de Arbitragem da CCI: "Para auxiliar os candidatos a árbitro e os árbitros a cumprirem os seus deveres nos termos dos artigos 11(2) e 11(3), cada parte deverá notificar prontamente a Secretaria, o tribunal arbitral e as demais partes da existência e da identidade de qualquer terceiro que tenha celebrado acordo relativo ao financiamento de demandas ou defesas, nos quais essa parte tenha interesse econômico no resultado final da arbitragem."; Artigo 9.6 do Regulamento de Arbitragem da CAM-CCBC: "9.6 As partes deverão informar a existência de financiamento de terceiros na primeira oportunidade possível, para que os árbitros possam verificar e revelar a existência de eventual conflito."; Artigo 3-A do Código de Ética da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem Ciesp/Fiesp; Diretriz CIArb sobre Financiamento de Terceiros, de 2025. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2025.

6 A exemplo da recente Diretriz CIArb sobre Financiamento de Terceiros, divulgada em 2025. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2025. No mesmo sentido, as recentes alterações às Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesse em Arbitragem Internacional. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2025.

7 CABRAL, Thiago Dias Delfino. Impecuniosidade e Arbitragem: uma análise da ausência de recursos financeiros para a instauração do procedimento arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 81.

8 A esse respeito, ensina Cândido Dinamarco que: "(...) em termos práticos essa fraude visa a embaraçar a realização da penhora do bem ou sua alienação mediante adjudicação ao credor ou em leilão judicial, que são atos inerentes a essa modalidade executiva. Consiste, portanto, na prática de atos potencialmente capazes de reduzir o acervo de bens economicamente apreciáveis, que constitui o patrimônio responsável do devedor" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. IV. 5. Ed. São Paulo: Editora JusPodivm e Editora Malheiros, 2024, p. 438)

9 STJ, Terceira Turma, AgInt no AREsp nº 2.451.057/MS, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 29/04/2024.

10 AMADEO, Rodolfo da Costa Manso real. A relevância do elemento subjetivo na fraude à execução. Tese de Doutoramento. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 10-11.

11 CASADO FILHO, Napoleão e CUNHA, Alexia Paola Diegues Alves da. O financiamento de terceiros (third-party funding") em arbitragens e a fragilidade da interpretação judicial sobre fraude à execução: uma análise crítica do precedente do TJMG. In PUC-SP ADR News, 2ª ed. 2025, p. 67.