O anteprojeto de lei para a reforma do Direito Internacional Privado no Brasil e sua coerência com o espírito da arbitragem internacional
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Atualizado em 24 de novembro de 2025 10:19
Em 19 de outubro de 2025, foi aprovado, por Comissão de Juristas formada no âmbito do poder legislativo brasileiro, projeto visando à reforma do Direito Internacional Privado pátrio ("Anteprojeto DIPr"1). Sob o propósito de regular "as relações jurídicas com elementos estrangeiros", o anteprojeto DIPr promove importantes alterações no sistema da conhecida LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, incluindo, mas não se limitando à regra acerca da escolha da lei aplicável a contratos internacionais.
Atualmente, o art. 9º da LINDB reflete uma escolha político-social que culmina por restringir parcialmente a autonomia da vontade das partes, ao dispor:
"Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente".
O anteprojeto DIPr, dentre outras proposições, visa dar maior clareza à norma acima, revelando o verdadeiro espírito do direito internacional privado, mediante a seguinte proposta:
"Art. 29. Exceto se houver abuso, as obrigações decorrentes de contratos internacionais serão regidas pelo direito escolhido pelas partes".
No âmbito da arbitragem, a disposição proposta no âmbito do Anteprojeto DIPr se alinha com o disposto no art. 2º, § § 1º e 2º da lei 9.307/1996 ("lei de arbitragem"):
"Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.
1º. Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública".
§ 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio".
Não há dúvidas do acerto da Comissão de Juristas ao propor o novo regramento contido no art. 29 do anteprojeto DIPr. Não apenas em razão do caráter obsoleto da atual redação do art. 9º da LINDB, mas, notadamente por preservar a ampla autonomia das partes em matéria de direito contratual internacional2. Tal proposta, ao menos em matéria arbitral, encontra perfeita sintonia com o espírito da arbitragem internacional. Com efeito, as disposições anteriormente referidas consagram a prevalência da mais ampla autonomia as partes para escolherem as regras de direito que regerão a arbitragem, regras estas que não só darão liberdade aos árbitros na condução do procedimento arbitral, mas também guiarão o direito material a ser aplicado na solução da controvérsia.3
O caráter internacional do contrato é que motiva a autonomia das partes na eleição de uma lei estrangeira para reger a relação jurídica4. A eleição de uma lei estrangeira em uma relação contratual e em uma arbitragem está vinculada, de forma intrínseca, à internacionalidade da relação jurídica.5
Foi, dessa forma, por exemplo, que o legislador brasileiro, atento ao conceito de contrato internacional e de internacionalidade da relação jurídica, promulgou, em 27 de dezembro de 2019 a lei 13.966, que estabeleceu novo regime à franquia empresarial. Nesse importante meio do direito empresarial, em que é frequente a adoção da arbitragem para resolução de conflitos, o legislador, cioso dos efeitos e das especificidades que permeiam os contratos internacionais6, cujos efeitos jurídicos causam influência direta na própria internacionalidade do litígio, foi feliz ao conceituar "contrato internacional" no corpo da aludida lei, como se observa no parágrafo segundo do art. 7º do referido diploma: "§ 2º Para os fins desta lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico."7
E, em havendo uma arbitragem puramente internacional, é imperioso que as partes envolvidas (partes, advogados, árbitros e instituição arbitral que eventualmente administre o procedimento) levem em consideração elementos cruciais que fazem com que a arbitragem internacional represente um método bastante peculiar em relação à arbitragem doméstica: (i) árbitros internacionais não estão necessariamente vinculados às disposições da lei da sede da arbitragem (lex arbitri)8, bem como não se vinculam a qualquer método de conflito de leis9; (ii) na arbitragem internacional, é fundamental o respeito à a lei escolhida pelas partes (no contrato) pare reger o mérito da controvérsia (lex causae e/ou a lex contractus). Trata-se de elementos consolidados na seara da arbitragem internacional10 e que se coadunam perfeitamente com a proposta do Anteprojeto DIPr, agora, definitivamente alinhado com o sistema arbitral brasileiro, garantindo segurança jurídica dos contratos internacionais firmados no Brasil, fomentando ainda mais a advocacia brasileira especializada em negócios e litígios internacionais.
Tal modificação legislativa não foi realizada de forma aleatória, mas coerente com o conceito de internacionalidade da relação jurídica, bem como alinhada à jurisprudência do STJ, que, de há muito, firmou o entendimento no sentido de reconhecer a autonomia da vontade das partes para escolha da lei aplicável aos contratos internacionais, independentemente, inclusive, da via de resolução neles prevista (arbitragem ou processo judicial). A esse respeito, é digno de nota o julgado oriundo do REsp 1.280.218/MG, em que, diante de uma situação de rara peculiaridade, respeitou a autonomia da vontade das partes, em território brasileiro, de questões sujeitas ao regime de prescrição extintiva previsto num direito estrangeiro, no caso, a lei do Estado de Nova Iorque, Estados Unidos da América. Parte da ementa do julgado merece ser aqui transcrita:
"DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. 1. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. INEXISTENTE. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/73. AFASTADA. 2. CONTRATO INTERNACIONAL. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. ELEIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. VALIDADE. VIOLAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. NÃO CONFIGURADA. PRESCRIÇÃO. AFASTADA. 3. FATO DO PRÍNCIPE. EFEITOS SOBRE CONTRATOS PRIVADOS. INADIMPLEMENTO. ROMPIMENTO DO LIAME OBJETIVO. RESTITUIÇÃO DAS PARTES AO STATUS QUO ANTE. 4. CONDIÇÃO SUSPENSIVA EXPRESSA. ABSOLUTA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. RECONHECIDA. NEGÓCIO JURÍDICO SUBORDINADO. INVALIDADE. ART. 116 DO CC/16. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, PROVIDO.
(...)
2. Em contratos internacionais, é admitida a eleição de legislação aplicável, inclusive no que tange à regulação do prazo prescricional aplicável. Prescrição afastada, in casu, diante da aplicação do prazo previsto na lei contratualmente adotada (lei do Estado de Nova Iorque - Estados Unidos da América)".11
A liberdade na escolha da lei aplicável por partes capazes em suas avenças comerciais de caráter internacional é, não apenas coerente com a própria internacionalidade de uma relação jurídica12, mas salutar ao desenvolvimento do comércio internacional e, no que toca ao Brasil, de vital importância para o desenvolvimento do empresariado local. A proposta do Anteprojeto DIPr, nesse sentido, é além de coerente e salutar, muito segura, eis que estabelece, de forma didática, os limites da aplicação do direito estrangeiro, estando excluídas, por exemplo, hipóteses sensíveis, como direitos consumeristas e trabalhistas13.
É de se esperar, portanto, que o anteprojeto DIPr seja aprovado pelo Poder Legislativo colocando o Brasil na rota da modernidade em matéria de contratos internacionais.
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1 Ver, a esse respeito aqui. Acesso em 21 nov. 2025.
2 Ver ARAUJO, Nadia de. #4. A atualidade do art. 2º da Lei de Arbitragem e a necessária inclusão expressa da autonomia da vontade na escolha da lei nos contratos internacionais no Anteprojeto da Lei Geral de DIPr. Boletim do CBAr, 2025. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2025.
3 Nesse sentido, aduz Carlos Alberto Carmona: "Ponto fundamental da arbitragem é a liberdade dos contratantes ao estabelecer o modo pelo qual o seu litígio será resolvido. Tal liberdade diz respeito ao procedimento a ser adotado pelos árbitros e ao direito material a ser aplicado na solução do litígio, de sorte que o dispositivo legal comentado, ao referir-se no parágrafo primeiro a 'regras de direito', está-se reportando às regras de forma e de fundo [...]" (Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 64).
4 Nesse sentido, segundo Ricardo Ramalho Almeida: "O que realmente constitui a especificidade do contrato internacional, em comparação com o contrato interno, é justamente a possibilidade de escolha da lei (ou das leis, ou das normas de direito) aplicável ao contrato e aos eventuais litígios dele decorrentes, assim como a possibilidade de escolha da jurisdição internacionalmente competente para a solução de controvérsias". (O Conceito de Contrato Internacional. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, v. 53, 2017, p. 355, 2017).
5 Nesse sentido, ver OPPETIT, Bruno. Nota sobre a decisão proferida pela Corte de Apelação de Paris, 30/11/1972. Journal du Droit International, 1973, p. 394. Em idêntico sentido, ver LEE, João Bosco. A especificidade da arbitragem comercial internacional. In: CASELLA Paulo Borba (Coord.). Arbitragem: lei brasileira e praxe internacional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1999, p. 186.
6 Para uma noção geral das especificidades dos contratos internacionais ver ALMEIDA, Ricardo Ramalho. O Conceito de Contrato Internacional. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, v. 53, 2017, p. 355.
7 O texto do § 2º do art. 7º da Lei Lei nº 13.966/2019 adota o exato conceito de contrato internacional estabelecido por Henri Batiffol, que ensina que o contrato é internacional "quando, pelos atos concernentes à sua conclusão ou sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à localização de seu objeto, ele tem liames com mais de um sistema jurídico" (Contrats et conventions. Répertoire Dalloz de droit international privé, n. 9, p. 379, tradução livre).
8 Nesse sentido, a lição de Arthur Von Mehren: "In the case of judicial proceedings, sovereignty is focused; in the case of international commercial arbitrations, it is diffused or distributed. As a result, unlike the judge, the arbitrator has no lex fori." (Limitations on Party Choice of Governing Law: do they exist for International Commercial Arbitration?. The Mortimer and Raymond Sackler Institute of Advanced Studies. Tel Aviv University, 1986, p. 20).
9 Segundo Berthold Goldman: "we come across a remarkable innovation: the arbitrator is called upon to rule 'in accordance with (the rules of law) which he deems appropriate'. Thus, total freedom is left to him as to the choice of the rules of applicable law, and this choice will be direct: no allusion is made, indeed, to the passage by a rule of conflict, not only of an 'arbitral' claim, but of any legal system." (La volonté des parties et le rôle de l'arbitre dans l'arbitrage international. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, 1981, p. 482, tradução livre).
10 FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996, p. 881.
11 REsp nº 1.280.218/MG, Terceira Turma, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 21.06.2016, DJE 12.08.2016.
12 Sobre o assunto, ver NUNES, Thiago Marinho. Reflexões sobre a Internacionalidade da Arbitragem. In: Revista de Arbitragem GEARB. Belo Horizonte: N. 02, Jul./Dez. 2012, p. 252-282.
13 Nesse sentido, veros arts. 30 e 31 do Anteprojeto DIPr.

