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Pontos de fuga

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Atualizado às 07:43

 

Lembro-me de Ching-Tsu como quem se apega a um frágil galho de árvore para tentar escapar da correnteza, mesmo pressentindo que ele não resistirá por muito tempo, a água é muita e minhas forças já não são o que eram. Ching-Tsu, com seu olhar misterioso, que o próprio nome sugeria, seu corpo bem torneado, qual o de um animal selvagem, ágil qual um felino. Cabelos negros, que as fugas constantes, as correrias loucas, as aventuras por becos e ruas faziam desfraldar ao vento, bandeira de revolta e coragem. Seu sorriso largo, repuxando ainda mais os olhos, incisões simétricas sob as sobrancelhas bem desenhadas.

Neste cubículo gelado, enquanto tirito de frio e de indignação, aquele nome traz um calor maior do que o das labaredas do colchão incendiado na cela produziam até há pouco. Sinto, pelo tato, que as feridas já cicatrizaram. A língua, roçando os dentes, me revela a presença de alguns tocos na gengiva, ainda dolorida. Sorrio, pensando menos no preço do meu atrevimento do que no prazer sentido em razão dele.

E paguei com gosto. Pagaria com todos os dentes, que o prazer merecia. O riso dos seus colegas de farda, diante do meganha com a cara cuspida, a explosão de seu ódio que se seguiu a isso, socos e mais socos, a fúria de um animal, ou de um insano, que a irresponsabilidade e a impunidade tornaram ainda mais louco. A lenta perda da consciência, os golpes, agora distantes, que não me diziam mais respeito, como se o corpo socado não mais me pertencesse. O vazio.

A porta de ferro não deixa passar luz alguma, nem mesmo junto ao chão. A grade de iluminação, se aquilo pode ser chamado de iluminação, reflete a luz do corredor, quando alguém acende. Esse acende-apaga ocorre com freqüência, mas a tempos variados, de modo que nuca sei se é dia ou se é noite. Atualmente, a luz está apagada mas minha falta de sono me faz supor que seja dia. Grito várias vezes, dizendo coisas desconexas. Menos para ser ouvido, quem me ouviria?, do que para saborear o retorno de minha voz. Modulo a voz, buscando somar novos sons ao som que retorna das paredes de cimento.

Assustados pelo som, ou atraídos por ele, pés miúdos correm daqui para ali. Suponho que sejam ratos entrando ou saindo da cela por algum buraco no chão. Silencio. Os pezinhos continuam a correr, riscando o chão com as unhas. Tento descobrir pelo som quantos ratos seriam. Dois? Três? Como ecos, os sons dos passos miúdos ora estão num canto, ora em outro canto do cubículo. Procuro adivinhar de onde virá o próximo som, apostando comigo mesmo. Suponho que os ratos estejam rindo de minha tolice.

Volto à realidade dos primeiros pensamentos, como a recriminar-me por haver-me esquecido de Ching-Tsu. Acho ridícula essa vergonha. Como se eu tivesse o dever de lembrar-me sempre de alguém que nem sei onde anda, se é pessoa viva ou morta. Como se o amor.

Fixo-me, porém, na lembrança de Ching-Tsu, para afastar o pensamento incômodo, que teima em penetrar em meu cubículo. Ching-Tsu, uma lembrança amarelada, uma imagem que se vai desbotando em minha mente. Luto para conservar ainda as emoções de nossos primeiros contatos. Seu rosto liso, que eu acariciava com um misto de atração e reverência. Aquela juventude que me fascinava. Fecho os olhos para vivenciar o devaneio. Eu preciso fechar os olhos para não ver algo nesta escuridão? Abro e fecho os olhos, procurando notar se o rosto de Ching-Tsu se altera. Tenho pálpebras feitas de vidro.

Tento levantar-me e sinto o corpo dolorido. Apoio as mãos no chão, mas o esforço é inútil. Peso toneladas. Ching-Tsu, Ching-Tsu, sussurro, como se rezasse. Solto o corpo e sinto, à minha volta, o chão pegajoso. Só então começo a sentir o mau-cheiro. Tenho o olfato nas palmas das mãos. Tateio-me, emporcalhando-me ainda mais. Essa tomada de consciência me traz desespero, diante de minha impotência. Sou um monte de feridas deixado em um canto qualquer de um lugar qualquer. Quem me encontrará aqui?

Grito e torno a gritar. Por milagre, aparecem no alto da parede as silhuetas da grade de ventilação. Tento ouvir passos. Para iludir-me penso que o visitante está calçando tênis. Ou estaria descalço? Grito novamente. A luz continua acesa, mas não ouço qualquer ruído.

Parece-me agora ver um anjo minúsculo descendo nas réstias de luz. O anjo tem o rosto de Chig-Tsu. Tem o mesmo corpo atlético de um anjo exterminador, sem a espada na mão. Choro, e a figura de Ching-Tsu baila nos meus olhos.

Eu te amo, Chig-Tsu. Nunca lhe disse isso, mas quero dizer isso agora antes que seja tarde. Lutei contra esse pensamento incômodo mais do que contra todas as muralhas que tentavam nos prender. Tentei fugir desse sentimento estranho, que me apequenava e me enqrandecia, que me aturdia e me animava. Lutei contra tantos, para não lutar contra mim mesmo. Para fugir de uma luta que já estava perdida antes mesmo de começar. Eu te amo, Ching-Tsu.

A luz se apaga antes que minha voz ecoe.

Chig-Tsu, onde está você? Os pezinhos voltam a correr de um canto para outro do cubículo, como se quisessem responder à minha indagação.

Estou em paz. Canto uma canção antiga, certamente inventando palavras sem sentido, para não perder a melodia. Revejo minha mãe, à beira de meu berço. A canção é a mesma. Cantamos em dueto.