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Apenas um cadáver

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Atualizado às 06:10

O homem de meia idade, mais para gordo do que para magro, cabelos ralos penteados para trás, terno cinza, algo amarfanhado, e cachecol envolvendo o pescoço, ingressou no trem do metrô na estação Jabaquara, sentido norte, e, antes da estação Armênia, já estava morto.

Na troca de passageiros na estação da Sé, a mulher que se havia sentado ao lado dele, na sétima fileira da direita, levantou-se enquanto ele continuou sentado, olhos cerrados, com o rosto encostado no batente da janela, cujo vidro estava fechado. Outra mulher, um pouco mais velha e mais gorda do que aquela, tomou-lhe o lugar, pronunciando um quase inaudível "licença" enquanto se sentava ao lado do homem morto de terno cinza algo amarfanhado.

Àquela hora, as pessoas, certamente dirigindo-se para casa, depois de um dia estafante passado no escritório ou na fábrica, acotovelavam-se e se ajeitavam como podiam, acostumadas, ao que tudo indicava, àquele desconforto.

A senhora mais gorda e mais velha do que a anterior olhava a paisagem, ignorando a penca de passageiros que se espremiam no corredor do vagão. Quem a conhecesse talvez estranhasse aquela curiosidade, pois há mais de dezessete anos ela fazia aquele trajeto, sempre viajando de metrô. Que haveria lá fora que ela ainda não tivesse visto no dia anterior, na semana anterior ou mesmo no mês anterior? As casas cinzentas, emporcalhadas por pseudo-grafiteiros sem inspiração? As poucas árvores que passavam correndo junto à janela, sem que se pudesse tentar decifrar sua espécie? Novidade mesmo talvez o esqueleto de um novo arranha-céu, algo incapaz de despertar a curiosidade de alguém que não fosse um índio chegado da Amazônia recentemente. O fato é que o olhar da senhora atravessava o vidro, talvez sem fixar-se em nenhum objeto. Talvez até invejasse seu companheiro de fileira que, sem se importar com o risco de passar do ponto de destino, fechara os olhos e, ao que tudo indicava, sonhava a sono solto.

Isso ela pensaria se alguma vez tivesse prestado atenção ao seu companheiro de viagem, coisa que alguém que observasse a imobilidade da cabeça dela poria em dúvida. Pensaria ela nas dívidas? No baixo salário? Na mais recente bebedeira do marido?

Descendo ela, sentou-se no mesmo banco um padre, algo digno de chamar a atenção, pois não só usava uma tira de pano branca fechando a camisa em torno do pescoço como, de onde saíra aquilo? uma roupa preta, inçada de botões ao longo do corpo, que mais parecia um vestido longo. Trazia a mão direita fechada, mas dava para ver que escapavam por baixo umas sementes, presas umas às outras, talvez com algum fio de náilon. Tinha um cacoete, que consistia em esfregar ritmadamente o dedo polegar sobre o dedo indicador, que, evidentemente, estava dobrado. Eu soube que era um padre porque uma senhora o chamou quando se vagou o lugar em que ele, bem mais velho do que ela, consentiu em ocupar.

Ele movimentava os lábios, mas, de onde eu estava, não se ouvia som algum. Que diria aquele homem estranho, ao lado de um cadáver? Com que fantasma conversaria enquanto coçava o dedo?

O trem prosseguiu sua marcha em direção ao ponto final, com número cada vez menor de passageiros subindo, em confronto com os que iam descendo pelo caminho.

Logo que os últimos passageiros, eu entre eles, descemos ao fim da viagem duas senhoras entraram no vagão e se puseram a varrer freneticamente o chão, talvez para impressionar melhor os novos passageiros que fariam do ponto final o ponto inicial de sua viagem.

Havia tantos lugares no vagão que ninguém necessitaria de dividir espaço com o homem de terno cinza amarfanhado, que permanecia com o rosto encostado na janela.

Ele certamente faria aquela viagem de volta e tantas mais até que se encerrasse o expediente do metrô.

Fui para casa com mais essa dúvida na cabeça: a que horas se encerra o tráfego dos trens do metrô?