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Entre o poder e o dever

sexta-feira, 25 de março de 2011

Atualizado em 24 de março de 2011 13:42

 

Há muitos anos, uma alemãzinha que veio conhecer o Brasil hospedou-se por uns dias lá em casa. Foi levada para conhecer as praias de São Paulo, de onde voltou vermelha como um tomate maduro. Minha filha passou a noite toda cobrindo as costas da moça com Caladril. Na Via Anchieta ela ficara horrorizada com o número de motoristas que ultrapassavam outros veículos pela direita. "Se fosse na Alemanha, um motorista desses, sendo preso por um guarda de trânsito, jamais voltaria a dirigir automóvel" desabafou ela a certa altura de seu sofrimento com aquela reiteração de infrações que a deixavam visivelmente irritada, ignorando como as coisas funcionam do lado de cá do Atlântico.

Eu não sou, certamente, o primeiro a observar essa incrível tendência que temos de violar regras, não apenas no trânsito. Qualquer regra. Nem serei um cínico a dizer que sou exceção a essa regra. Quem me acreditaria? "Eu sou mais esperto do que vocês" é a mensagem que está por trás dessas transgressões. Ou seja, a rigor, há aí uma demonstração de baixa autoestima. Eu preciso provar que não sou tão medíocre como eu julgo que sou! Cumprir regras é como religião: coisa de crianças, velhos ou idiotas. Se os comerciantes e os industriais pagassem todos os impostos que deveriam pagar não enriqueceriam. E por aí vão as explicações, que culminam naquela pergunta cretina, que médicos e advogados fazem diariamente: "com recibo ou sem recibo?"

É claro que todos nós temos o inconfessável desejo (infantil!) de sermos Supermans, Batmans ou Homens-aranhas. Isso diz com termos poder e não com termos deveres. Tanto que uma série do Batman que era exibida na televisão nos anos 50 tinha isso de cômico: ele dirigia o batmóvel em baixa velocidade quando passava em frente a uma escola! E ainda fazia pregação moral ao Robin, que se queixava de que os bandidos estavam fugindo! Santo Mustang, Batman, então o crime compensa?

Não é preciso muito esforço de imaginação para perceber que no momento em que eu reconheço que tenho deveres eu estarei reconhecendo que tenho menos poder do que gostaria de ter. Deus não tem obrigações. Quem de nós fica feliz ao constatar que está mais para um medíocre Clark Kent do que para uma criatura praticamente invencível, corpo de aço e uma invejável capacidade de voar até onde a imaginação permite? O fato de Superman usar uma fantasia ridícula, uma capa que não lhe serve para nada e ainda por cima morrer de medo da kriptonita são coisas nas quais preferimos não pensar.

Por falar em filme, eu e minha mulher estávamos na fila do cinema, para comprar as entradas, quando ainda não havia esses corredores feitos de tiras de pano, imitação do que ocorre nos estabelecimentos bancários. Um casal de jovens se aproximou de nós com o dinheiro contadinho na mão, pedindo algo que lhes parecia muito natural: que comprássemos as entradas para eles. "Os senhores podem comprar as entradas para nós dois. Duas meias", o que faz supor que fossem ambos estudantes. Lecionam Ética nas escolas nos dias de hoje? Falavam baixo, educadamente. Minha resposta foi: "Posso mas não devo". Ele fez uma careta e lançou no ar um "hein?". Eu então lhe disse que eu posso matar aquele homem que está ali tomando sorvete junto àquele balcão, posso jogar uma pedra naquele espelho que você está vendo lá adiante, posso fazer tudo aquilo que tiver vontade de fazer. Só que eu não devo matar aquele homem, nem devo quebrar aquele espelho, pois isso me trará consequências desagradáveis. Ele olhou para a moça, que estava mais ausente ainda. Fui curto desta vez: "Está vendo esta fila? Ela começa ali na frente e termina lá adiante. É lá que vocês devem ficar se quiserem comprar as entradas". Eles se retiraram sem nada dizer. Menos mal, pois se continuassem naquele propósito, o próximo passo seria eu voltar-me para as pessoas que vinham atrás de nós na fila e lhes indagar, como num plebiscito: "Este rapaz está querendo que eu compre as entradas para ele, passando na frente de vocês todos. Vocês concordam com isso?"

Outra vez foi na fila do teatro. Dois casais já estavam na nossa frente quando chegamos. Algum tempo depois chegou um terceiro casal, cumprimentou-os e puxou conversa com eles. A fila foi andando e os seis caminhando na minha frente, em animado bate-papo. Quando nos aproximamos da bilheteria, eu me interpus entre os quatro primeiros e o casal de penetras, sem dizer nada. Apenas olhei para estes últimos, que se despediram dos amigos e se retiraram, sem me dizerem o que pensavam de minha família. De minha mãe, principalmente.

Sei de um juiz de Direito que se recusava a permitir que seus filhos entrassem no carro do fórum, para irem à escola, pois o doutor Matos ensinou-lhes que da mesma forma como o furto de uso é reprovável, assim também o é o peculato de uso. Um dos filhos dele hoje é juiz no Estado do Mato Grosso e não tenho dúvidas de que passará aos filhos essa salutar jurisprudência. Será ela majoritária?

Em compensação conheci outro juiz, que, havendo perdido a mãe em um acidente automobilístico, investia contra os motoristas que lhe caíam nas mãos com uma fúria terrível, exigindo deles que observassem os mais mínimos cuidados quando na direção de veículo motorizado. Desconhecendo, aliás, a lição do professor lusitano Luiz da Cunha Gonçalves: "o motorista que entender de cumprir sempre, em todas as circunstâncias, as regras de tráfego, certamente causará algum acidente". Já judicando num dos tribunais de Alçada, ia e vinha à cidade onde morava em carro oficial. No qual mandara instalar um aparelho detector de radar, para poder trafegar em velocidade muito acima daquela permitida. Era esse o exemplo de respeito às leis que ele transmitia ao seu motorista. Seria ela a única autoridade a agir assim?

A Maria Helena ainda não se havia acostumado com o novo automóvel, sabendo nós todos que a resistência dos pedais ao esforço dos pés do motorista varia de carro para carro. Deu-se então que ela, pretendendo sair da garagem, imprimiu ao pedal de aceleração mais força do que a necessária, o que fez o veículo avançar pela calçada, por onde trafegava um homem de aparência muito simples, talvez um mendigo. Ele assustou-se, ela desceu do carro reluzente e foi indagar dele se estava bem, mesmo porque tudo não passara do susto que ambos tomaram. Ele, gentilmente, espalmou a mão direita, balançando negativamente a cabeça. Ela insistiu com ele, que terminou aquele incidente com uma sábia observação, que sintetiza tudo isso que eu tentei abordar, dita em seu peculiar dialeto: "Minha senhora, quem pode porsuir, porsói; quem não pode porsuir não porsói." E continuou sua marcha, com a cabeça erguida, como é próprio dos filósofos.