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Sobre o amor e o desamor

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Atualizado em 22 de setembro de 2011 10:56

 

"O casamento foi a maneira que a humanidade encontrou de propagar a espécie sem causar falatório na vizinhança".


Luís Fernando Veríssimo

Quem for capaz de definir o que é o amor que atire a primeira rosa. Eu, pelo menos, já desisti, mesmo porque ouço com frequência alguém falar em amor e dar como exemplo uma relação viciada pela paixão. Epa! E não é a mesma coisa? Claro que não. Amor é o que une a mãe ao filho ou o médico dedicado a seu paciente moribundo. Paixão foi o que separou Tristão de Isolda e Carmen de José. Enquanto o amor une, a paixão separa.

Fiquemos com a tragédia da Carmen de Bizet. Que, na verdade, era a Carmen de Prosper Mérimée. Quem era ela? Uma, digamos assim, mulher leviana, que, aos olhos do soldado José, era uma princesa. Caído de paixão, ele, José, abandona a farda e se torna contrabandista. Ela, em pouco tempo, deixa o soldado com o coração partido, para cair nos braços de um toreador. Resultado: tragédia. Otto Preminger filmou a mesma história, que já existe em DVD, porém mudando o ambiente: Carmen Jones, interpretada por Dorothy Dandridge, trabalha não numa fábrica de charutos, como no original, mas numa fábrica de paraquedas, que são fornecidos para o Exército. Conhece, em razão disso, o soldado José, interpretado por Harry Belafonte, que ela vem a trocar não por um toreador, mas por um lutador de boxe. As belíssimas músicas são, evidentemente, as mesmas, com letras adaptadas para as novas circunstâncias, mas os atores são todos negros. E o final, claro, é o mesmo: tragédia. Moral da história: a paixão enlouquece.

Voltando à Espanha: pouca gente percebe que a "princesa" que encantava o apaixonado D. Quixote de la Mancha tinha o pavoroso nome de Aldonza, sendo por ele rebatizada como Dulcinéia, vendo ele nela uma doçura que o seu nome real não sugeriria a quem quer que fosse. E talvez ninguém mais além dele visse. Moral da história: a paixão cega.

Verdade que quando falo que amor é flecha, que vai e esquece o arco, ao passo que paixão é bumerangue (parte, mas retorna com o alvo preso), muita gente torce o nariz, dizendo que isso de ágape é coisa de teólogos.

Os cultores do Direito, em verdade, não costumam perder tempo com essas coisas. São criaturas práticas, que não dão tanto valor a essas distinções conceituais. Uma exceção talvez seja o Antonio Cezar Peluso, atualmente presidindo o Supremo Tribunal Federal. Na I Jornada Internacional de Direito de Família, nos idos de 97, ele apresentou estudo denominado "O Desamor como Causa de Separação", desdobramento de trabalho anterior, onde ele cuidava da culpa na separação e no divórcio. Em tais trabalhos ele questiona o entendimento vigente no sentido de ser fundamental que se aponte qual dos parceiros foi o responsável pela separação, para daí retirarem-se consequências jurídicas. Se for o homem o culpado, que pague pensão à ex-esposa; se for ela, nem pensão nem guarda dos filhos. Qual o fundamento ético disso?, indaga ele.

A seu ver, considerando a necessidade que temos todos de respeitar a dignidade das pessoas, especialmente daquelas com as quais convivemos ou convivíamos, nada mais adequado do que instituir para o parceiro mais bem aquinhoado, economicamente falando (em geral, o de sexo masculino, nos casamentos tradicionais), o dever de prover ao sustento do outro, menos aquinhoado (normalmente a mulher, considerando as uniões tradicionais), ainda que durante prazo razoável, estabelecendo-se uma pensão destinada a assegurar ao alimentando não só os meios de subsistência como propiciar-lhe os meios de preparação para retornar ao mercado de trabalho de que, não poucas vezes, o casamento a (geralmente isso se aplica à mulher) afastou. E isso sem falar, em princípio, nem em culpado nem em inocente. Aliás, qual o fundamento de atribuir responsabilidade a alguém que chegou à conclusão de que os sentimentos que o uniam a outra pessoa não mais existem?

Realmente, isso de o ex-marido pleitear a desoneração do pagamento de pensão quando a ex-mulher arruma um namorado, ou mesmo um novo companheiro, traz embutida a ideia de que a pensão é o preço da castidade dela. Ou que o marido é o dono da esposa. Mudou de dono, o novo dono que a sustente, já que se vai aproveitar sexualmente dela. É ainda a ideia da mulher como remédio. Ou, melhor, como preventivo contra os riscos de moléstias venéreas. A fidelidade remunerada, portanto, sob tal ótica, nada mais seria do que o meio com que contaria o ingênuo alimentante para ter certeza de que não corre risco de contaminação. E para isso realiza um contrato de exclusividade de uso. Contrato oneroso já se vê.

A proposta do ministro Peluso deixa de lado esse enfoque, para fixar-se no relacionamento como tal, onde a satisfação sexual é apenas um dos aspectos da união matrimonial, na qual os encargos financeiros não serão nem poderão ser postos de lado, mas, como parece correto, não se ligam primordialmente à atividade sexual. Nenhum filho pode ser compelido judicialmente a amar seus pais, da mesma forma como os pais não poderão ser compelidos a amar seus filhos. Entretanto, há entre eles determinado vínculo que acarreta a responsabilidade de prover ao sustento uns dos outros, independentemente da existência ou inexistência de laços afetivos. Entre os ex-cônjuges a situação não parece ser diversa: porque houve entre eles uma vida em comum, criou-se um dever recíproco de sustento que não diz com a conduta atual de ambos. Não se cuidaria de remunerar a conduta presente, mas de prestar homenagem à conduta passada. Sendo esse o enfoque, que diferença poderá trazer a conduta sexual do alimentando?

Talvez por isso, na Noruega eles criaram o instituto pelo qual duas pessoas firmam um contrato de união e se tornam meros samboer. União sem essa complicação que a moral judaico-cristã nos impôs e que o tempo vai-se encarregando de esgarçar. Ali, basta uma notificação cartorária e a união está desfeita. Pensão? Nem pensar. Ela que trabalhe.