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Cidadania

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Atualizado às 08:01

"Se, como é infelizmente o caso de nossa época, a moral evangélica parece evaporada, a condição de seu renascimento não residiria nesta redescoberta de suas raízes naturais? Será que não quisemos, até agora, fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens? O resultado não é dos mais brilhantes: não temos mais nem homens nem cristãos".

(Paul Eugène Charbonneau)

Temos todos a convicção de que a escolha dos governantes seja algo de grande importância. Os nomes dos nossos partidos não dizem muito e sua ideologia diz menos ainda. E a biografia dos candidatos é, de modo geral, de desanimar. Como proceder?

Houve tempo em que os governantes tinham contato direto com o Criador, que lhes transmitia as regras a serem impostas aos súditos. Hamurabi e Moisés foram alguns que se valeram desse contato direto. Coisa muito mais fácil do que isso de democracia, que o Churchil disse ser a pior forma de governo, mas ainda não haviam encontrado outra melhor. Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time. O rei Henrique VIII, porém, colocou em dúvida a certeza de que os soberanos tivessem sangue azul, ao mandar decapitar em público suas incômodas esposas. E olhe o sangue vermelho escorrendo quando a cabeça da executada foi separada do corpo.

Muitos filósofos têm chamado a atenção para um fato preocupante, que não surgiu ontem. Enquanto na primeira metade do século passado os intelectuais discutiam a respeito da natureza de Deus, neste século a questão não está em acreditar ou em não acreditar. O que predomina é uma indiferença, é o "tanto faz quanto tanto fez". Para Hans Küng isso tem muito a ver com a crise de valores que permeia o mundo todo, pois "não existe ação moral, humana, incondicionalmente obrigatória, nem uma ética também incondicionalmente obrigatória, sem religião". O argumento é discutível, pois pode levar ao entendimento inverso: basta haver religião para que esses tais valores sejam observados. Basta verificar que um Estado comprometido com a religião, como Israel, teve no Líbano uma conduta que muitos equiparam à "limpeza étnica" pretendida pelo nazismo. Aliás, o próprio padre Küng arrola as atrocidades cometidas em nome do cristianismo ao longo da História, muitas delas voltadas contra os judeus. Dizer que matar crianças e produzir a maior poluição que o Mediterrâneo já conheceu se justificava pela necessidade de executar os terroristas do Hesbollah é invocar o Mein Kampf. Sem falar nas mais de 100.000 minas de fragmentação, proibidas pelas convenções internacionais, que foram ocultadas no território libanês e que explodirão nos próximos meses e anos, matando pessoas absolutamente alheias às divergências entre os dois Estados. Na África e no Cambodja ainda morre gente por causa desse encontro macabro.

Quando Albert Einstein declarou que não acreditava em um Deus pessoal, pois seu Deus era de outra espécie, a cosmic God, caiu o céu sobre sua cabeça, pois já morava nos Estados Unidos, onde até mesmo os ateus confessos são obrigados a jurar sobre a Bíblia, quando vão depor em Juízo, ou a ler nas notas de dólares que in God we trust. Coisas da democracia capitalista, certamente. "Todos têm o direito de acreditar naquilo em que eu acredito", como deve ter dito o W. Bush aos muçulmanos. Um dos que lhe caiu de santo porrete na cabeça do Einstein foi o conceituado Cardeal Fulton Sheen, autor de livros como A Vida de Cristo, que fez pilhéria: "acho que o Deus dele tem um s a mais". Os cardeais norte-americanos, aliás, são mestres em comicidade, como se viu quando acobertaram um número inimaginável de colegas pedófilos, pois puni-los acabaria levando a Igreja à bancarrota, tais as indenizações que as famílias exigiriam em Juízo. Não é para rir?

Eu poderia citar o padre jesuíta e teólogo Teilhard de Chardin e sua irrespondível afirmação de que a religião deve acompanhar as descobertas científicas e rever os conceitos que ela havia formulado quando tais descobertas ainda não haviam sido feitas. Só uma criança acreditaria que Deus fazia bonecos de barro, disse ele, curto e grosso. Prefiro, porém, ficar com outro padre, também teólogo, e ainda vivo. Hans Küng passou por maus bocados quando, a exemplo do nosso Leonardo Boff, resolveu dizer que seus superiores hierárquicos demonstram, por sua conduta, acreditar pouco em Jesus Cristo e sua mensagem de paz e tolerância. Não posso acreditar, diz ele, que Jesus, que advertiu os fariseus por causa da carga insuportável que estavam a lançar sobre os ombros das pessoas, declarasse hoje ser pecado mortal a utilização de todos os meios anticoncepcionais artificiais. Nem imaginar que Ele, que convidava para sua mesa justamente os que haviam falhado, proibisse para sempre o acesso à Sua mesa a todos os divorciados que voltassem a casar. Quer mais? O padre Küng tampouco consegue supor que Jesus, que constantemente se fazia acompanhar de mulheres, que cuidavam de sua manutenção, e cujos apóstolos, com exceção de Paulo, eram todos casados e assim permaneceram durante seu ministério, proibisse hoje aos homens ordenados o casamento e proibisse a todas as mulheres a ordenação. O homem não tem papas na língua, se me permitem o trocadilho.

Na célebre pintura feita por Michelângelo Buonarrotti na Capela Sistina, por determinação de seu carrasco, o papa Júlio II, Deus veste um camisolão, tem barba e cabelos brancos e toca seu indicador no indicador do primeiro homem, feito de barro, como sabemos. Considerando que o papa era um tirano, que havia escravizado o artista até que este erigisse na Praça São Pedro uma tumba faraônica que lembrasse para sempre o nome daquele Sumo Pontífice, torna-se claro que aquela figura antropomórfica contava com o apoio papal. Além de antropomórfica (isto é, Deus tem cabeça, tronco e membros, como se fosse humano), a figura de Deus ainda é, para muitos, antropopática, isto é, sente, pensa e age como se fosse humano.

Küng, homenageando nossa inteligência, nos adverte que, em realidade, é impossível falarmos de uma entidade tão superior, a não ser utilizando nossa linguagem humana. "Desse Deus e a esse Deus nós, certamente, só poderemos falar utilizando conceitos, imagens e idéias figuradas, códigos e símbolos." É ele o Deus bíblico, "que pode ser percebido sob uma nova visão do mundo, segundo Copérnico, Galileu e Darwin". Quem diria?

Fico aqui a imaginar o que pensaria quem não conhece o jogo de tênis se visse a certa altura de uma partida, um dos jogadores segurar duas bolinhas amarelas e levantá-las, mostrando-as ao adversário. Que quer dizer isso? Que ele agora vai usar bolinhas? Mas eles vinham jogando com bolinhas até ali! Que vai usar agora bolinhas amarelas? Mas as bolinhas com que vinham jogando eram amarelas. Mistério!

Subamos alguns degraus. Alberto Einstein ensinou-nos que E=Mc2. No mundo todo há certamente pessoas que sabem o que isso significa e a relevância disso para a ciência e para o mundo. Eu, no entanto, não tenho a menor idéia daquilo que está por trás dessa famosa fórmula. Você é capaz de me explicar o que se contém nela? Cartas para a redação.

Eu poderia subir alguns muitos degraus e tentar mostrar se acredito num Deus pessoal ou num Deus cósmico. Mas, e daí? "Tanto faz como tanto fez" dirá o leitor. "Não estou nem aí", dirão outros. Note que essa frase é empregada por muitos também quando falamos em eleição de governantes. Pensar dói.

A questão, como diz Küng, não está em discutir conceitos. Qualquer um de nós afirmaria o que ele afirmou em seu livro Por que ainda ser cristão hoje?, de que me vali para estas reflexões: "Não deixo absolutamente de reconhecer o fracasso histórico do cristianismo". Nem por isso ele deixa de propor que continuemos a cristianizar a sociedade em que vivemos.

O desafio é: será possível salvar o nosso planeta sem fazermos da religião algo mais concreto, mais "terreno", algo menos preocupado com conceitos e mais comprometido com ações tendentes a fazer imporem-se aqueles valores que nossa inteligência, limitada que seja, concorda serem atributos desse Criador de tudo? O também perseguido frei Leonardo Boff segue esse mesmo caminho, tanto que escreveu um livro chamado Ecologia - Grito da Terra, Grito dos pobres.

Será possível escolhermos governantes que pensem menos em si e mais no serviço que os aguarda, no respeito à dignidade humana, na luta contra todo tipo de opressão, num projeto de um Poder Judiciário minimamente eficiente, em programas que estimulem a solidariedade e a cidadania?

Eu creio que sim. Se meu testemunho vale alguma coisa, eu posso dizer: por incrível que possa parecer, isso tudo já foi pior do que é hoje. Não é de hoje que político furta, nem é de hoje que muito juiz merece algema e xadrez. E se alguma coisa melhorou, é porque pessoas não ficaram reclamando na escuridão porque a lâmpada se apagou. Elas preferiram acender um palito de fósforo.