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Deontologia judicial

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Atualizado em 31 de janeiro de 2007 14:57

"Os jornais informam hoje que o CNJ começou a elaborar um código de ética para tentar evitar desvios de conduta dos magistrados. Um dos itens que seriam incluídos é a proibição de juízes receberem presentes das partes."

(Migalhas, 5/1/2007)

Já aposentado, fui visitar um juiz amigo em seu local de trabalho, no centro da cidade de São Paulo. Conversamos o que tínhamos para conversar e ele, gentilmente, me convidou para almoçar com o grupo de colegas que todas as sextas-feiras se reuniam numa churrascaria a cem metros do fórum João Mendes. Lá sou apresentado a vários magistrados, todos muito mais moços do que eu. Um último do grupo não era juiz, era perito judicial. Terminado o almoço, vem a conta e eu tiro a carteira do bolso, como seria de esperar. O tal perito espalma a mão direita. "Bem se vê que o senhor é novo no grupo. O único que tira a carteira aqui sou eu."

Eu saí dali imaginando com que autoridade algum daqueles juízes divergiria de um laudo elaborado por aquele perito. Para que os advogados que ali também almoçavam haveriam de gastar dinheiro com designação de assistente técnico? Mais: como poderia um daqueles juízes arbitrar, imparcialmente, os honorários que seriam pagos ao mesmo perito? Em outras palavras: quem, de fato, estava pagando aquele almoço?

Muitíssimos anos antes, eu havia chegado à nova comarca há pouco tempo e, logo antes do almoço, dois nipônicos tocaram a campainha de minha casa. Fui atender e eles me exibiram dois abacaxis, que haviam colhido na horta deles. Os abacaxis tinham uma especialidade: a casca era lisa e a coroa não tinha os tradicionais espinhos. Agradeci a gentileza, levei as frutas para dentro e fui almoçar. Terminada a refeição, segui para o fórum, onde, dentre outras audiências, havia uma especial. Era relativa a uma reclamação trabalhista. Reclamados: os dois nipônicos. Surpreso, chamei o advogado deles para o gabinete e narrei-lhe o que havia ocorrido antes do almoço. "Como será ridículo eu dar-me por suspeito por causa de dois abacaxis, o que, aliás, implicará a desmoralização de seus ingênuos clientes, sugiro que o senhor acerte com o reclamante e o promotor de justiça um acordo justo, de cujo conteúdo eu não quero tomar o mais remoto conhecimento. Fui claro?"

De outra feita, indo visitar um juiz que eu mal conhecia e que morava numa bela casa, achou ele ser necessário me explicar que a casa de materiais de construção da comarca lhe fornecera, a preço de custo, tudo o que ele havia empregado na obra. Eu até pensei perguntar-lhe o que levaria um comerciante a abrir mão de seu justo lucro para beneficiar uma autoridade pública, mas me acovardei e preferi mudar de assunto.

E houve aquele outro juiz que, vivendo maritalmente com uma senhora, nomeava sua companheira para fazer todas as perícias que ele, dentro de seu superior entendimento, achava necessárias. Chamado ao Conselho de Magistratura para explicar-se, defendeu-se informando que eles não eram parentes nem casados entre si. Foi posto em disponibilidade, o que certamente diminuiu a renda familiar deles dois.

Mês de agosto, volta das férias. A mesa dos juízes costumava estar atulhada de autos de processo, os tais que não tramitam nas férias. Naquele específico início de agosto, o juiz titular estava indignadíssimo, pois o colega que assumira os trabalhos durante o mês de julho não havia dado uma única sentença, limitando-se a assinar os despachos preparados pelo cartório. Mais experiente e mais ingênuo, faço-lhe a natural observação: "Em seu lugar eu representaria ao Conselho Superior da Magistratura, dando conta do que ocorreu." Ele, menos ingênuo e mais covarde: "E eu lá sou louco? Não sei quem é o padrinho dele!"

Outro caso: nós ambos éramos juízes substitutos. Ele foi designado para uma comarca, cujo chefe político tinha um escritório de advocacia bastante conceituado. Era homem influente e chegou a ocupar vários cargos públicos. Um dos advogados do tal escritório tinha aproximadamente a mesma idade do meu colega de magistratura, sendo natural que se formasse entre eles uma camaradagem. Quando aquele juiz se inscreveu para promoção, o tal camarada advogado prontificou-se a levá-lo ao escritório do advogado-político, ao qual apresentou o candidato a promoção: "Este é aquele juiz que nos concedeu aquele habeas corpus relativo a fulano de tal."

Por fim este: havia na comarca uma Casa do Menor, cujo presidente de honra era o juiz de menores, como então se dizia, isto é, um dos juízes, de competência cumulativa, respondia pela Vara de Menores. O verdadeiro presidente da tal Casa do Menor era um empresário, dono de uma revendedora de automóveis, a qual, como é habitual, vendia carros pelo consórcio. Deu-se que dezoito consorciados, por motivos lá deles, contrataram uma dupla de advogados para acionar a tal revendedora, que não estaria cumprindo suas obrigações. Eles entraram com uma ação, pedindo uma tutela antecipada, que foi indeferida pelo juiz a que, por coincidência, havia sido distribuída a causa. Coincidência porque ele era ninguém mais ninguém menos do que o tal presidente honorário da entidade presidida pelo tal empresário contra o qual era movida a tal ação. Empresário que, dias antes, aparecera sorrindo em foto divulgada pelo jornal local, ao entregar ao tal juiz de menores um carro para a tal entidade presidida, de certa forma, por ambos. Os advogados suscitaram a suspeição do juiz, anexando à petição a página do jornal com a tal fotografia e o sorriso de ambos.

Fosse você o juiz e recebesse o ofício do Tribunal, requisitando informações sobre aquilo, que você faria? Pois o tal juiz representou imediatamente ao promotor público da comarca, o qual, também imediatamente, ofereceu denúncia contra os dois advogados e contra os dezoito clientes da dupla, atribuindo aos vinte réus o cometimento dos famosos crimes contra a honra alheia. Denúncia que foi imediatamente recebida pelo colega do tal juiz de menores.

Impetrado habeas corpus, com liminar rejeitada, sobreveio o acórdão, que considerou que o meio escolhido sabidamente não se presta a um exame aprofundado das provas, nos termos de iterativa jurisprudência. Ou seja, para verificar se os clientes respondem pelos desmandos de seu advogado, na esfera criminal, é preciso exame aprofundado das provas, meu caro Damásio Evangelista de Jesus.

O solerte advogado deixou transitar em julgado o incrível acórdão do TACrim e impetrou outro HC junto ao Superior Tribunal de Justiça, obtendo liminar que mandou parar tudo aquilo. Dia do julgamento, lá está o impetrante para sustentar oralmente as razões da impetração. Entusiasmado, começa seu discurso dizendo que se sentia vexado por aquela teratologia jurídica estar ocorrendo em São Paulo. Ainda se fosse num desses rincões de nosso país ...

O relator, em voto curto e grosso, diz o que até as crianças sabem: o cliente não responde criminalmente pelos desmandos do seu advogado. Quanto ao advogado, ao exercer o direito de suscitar o impedimento do juiz, ele não está a cometer crime algum, máxime se a alegação estiver acompanhada de prova documental. Ordem concedida unanimemente.

Encerrado o julgamento? Encerrado nada. O ministro William Paterson, que concordara com o relator, pede ao advogado que aguarde um instante, ao mesmo tempo em que determina às taquígrafas que vão tomar um cafezinho, não precisam anotar o que eu vou dizer.

"Ilustre advogado", começa ele, "ouvi com atenção sua brilhante oração e concordei plenamente com seus argumentos. Quero, porém, fazer uma pequena e modesta observação. Eu sou do rincão da Bahia, pois nasci em Amargosa. Meu colega aqui do lado também é dos rincões do Brasil, pois nasceu em Cobrobó das Antas. E posso assegurar-lhe que em nossos rincões nós jamais vimos um absurdo desses."

Eu me limitei a dizer "Touché!", todos rimos e eu voltei para São Paulo com mais essa no meu currículo.

Se você coleciona teratologias jurídicas ou costuma jogar no bicho, anote aí o número de registro 199900847520, relator Ministro Vicente Leal.