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Presente (O)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Atualizado em 27 de dezembro de 2007 10:22

 

"Vingança é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais"

Guimarães Rosa, Grandes Sertões: Veredas

Quando aquela criança nasceu, seus olhos fizeram a alegria do pai. Mais que alegria: júbilo. Filho de japoneses, sabia alguma coisa a respeito de fator dominante. Cabelos pretos e olhos puxados vão passar de pai para filho até o fim dos tempos, brincava o amigo médico. Aquele era o primeiro filho. A tensão pela espera, gravidez difícil, risco de aborto, meses e meses de repouso imposto à mãe. "Faça tudo o que puder, doutor". Foi feito. E a criança ali estava. Testa grande, cabelos negros, olhos amendoados.

Os parentes vinham chegando do interior do Estado para conhecer o primogênito. A emoção dos velhos nipônicos, com sua gesticulação comedida, as palavras soltas, desligadas umas das outras, mas suficientes para indicar que agora podiam morrer em paz. Os olhos se perpetuariam, se dependesse do Ivanzinho.

O nome foi escolhido sem titubeio. Já antevia o pai as travessuras do petiz. Visita à casa dos avós, ainda engatinhando, a puxar a toalha da mesa da sala, sempre longa, qual convite. E o jarro de flores se espatifando no chão, com barulho que assustaria o guri. O pai o ergueria com orgulho, prometendo à avó comprar outro igual. Sua mãe sorriria, aquele sorriso oriental enigmático, entre feliz e incrédulo. Um jarro chinês daqueles não se compra em qualquer esquina, meu filho, diria a mãe, se ela falasse.

Quando atirasse um dos gatinhos pela janela do apartamento, o pai o repreenderia. Mas uma repreensão pro forma. Aos amigos ele já teria a desculpa. Com um nome desses, só poderia ser terrível. E beberiam à saúde do jovem czar.

A tez morena da mãe daria ao jovem sansei um rosto belo, a que as moças do bairro não resistiriam. Teria de comprar outro telefone, pois o de casa mal daria para os namoros do galã. Não se falava ainda em telefone celular, uma pena. Freqüentando a academia, o nosso Bruce Lee desenvolveria a musculatura. Mens sana. A frase era idiota, ele reconhecia, mas a síntese dos latinos, nessas horas, é inigualável.

O filho seria um ás na computação, que mal engatinhava no outro lado do mundo. O pai, modesto servidor público, certamente obteria uma bolsa de estudos para o jovem. Esses políticos que vivem nos pedindo votos, que se colocam à disposição, apareça, apareça, tapinha nas costas. Queria ver agora. Tenho um filho que é uma fera. No Brasil não há curso para ele. Preciso de uma bolsa para alguma faculdade no Japão. A melhor. Prova seletiva ? Ele vai tirar de letra. E vai voltar pê-agá-dê. Bota cargo na frente dele !

O pai sonhava, como sonham os pais de primeiro filho. A realidade foge dos pés e quem se disponha a botar-lhes sapatos de chumbo corre risco de vida. "Você diz isso porque já tem quatro. E nenhum saiu ao que você desejava. Você é um despeitado, isso é o que você é. Espere só para ver. Tomaremos juntos a primeira bebedeira dele. Um brinde ao sucesso !" E os copos se tocariam enquanto o álcool aumentaria a emoção do mais recente pai do quarteirão. Ou da rua, ou do bairro, ou do mundo. Porque os sonhos não se medem em anos, dias ou horas. Pára o tempo. E corre o tempo. Sonha-se com séculos em segundos. E vivem-se os séculos sonhados.

Chegou do trabalho exausto. Fora um dia e tanto. Ele ainda se via chegando da maternidade, caixa de bombons na mão, presenteando cada funcionária. Feliz Natal, Feliz Natal. Para o senhor também. Um garotão e tanto. Papai Noel foi generoso com o senhor. Parabéns. Feliz Natal. Parabéns, hein ? Feliz Natal para vocês todos.

Foi dormir como quem voltasse de festa de formatura. Tateou no escuro o interruptor da luz e ainda teve lucidez para regular o despertador para as oito horas. Talvez a mulher já tivesse alta no dia seguinte. O parto não fora normal ? Tudo não correra bem ?

"O senhor tenha paciência que é para o bem do nenê. A mãe vai para casa mas o bebê fica, para uns exames. Coisa de rotina". Como rotina ? Acaso estavam supondo estarem a lidar com um débil mental ? Como uma coisa normal exige a permanência do filho na maternidade ? Que raio de rotina é essa ?

A mãe nada falava. Ele já se acostumara aos silêncios dela, como que aprendidos da sogra. Uma baiana com paciência oriental. Mais que paciência: sabedoria. Não é necessário exame algum para que uma mãe saiba o que ocorre com o filho. Há uma ligação telepática entre eles. Talvez até mesmo durante a gestação a mãe intuíra alguma rejeição inconsciente dela mesma quanto ao seu bebê.

Ela não se culpava pelo que estava ocorrendo. Era jovem e saudável, mas sabia que os cromossomos têm lá os seus caprichos. A incidência de tantos desvios em pais de idade mais avançada não significava, ela bem o sabia, que pais mais novos não corressem tal risco.

Risco ! A palavra lhe soou dura. Como se ter um filho com síndrome de Down fosse uma tragédia. Ou seria efetivamente uma tragédia ? Lera muito sobre isso. Talvez por pura intuição. Ela acreditava nessas cosas. Sabia até que alguns pais assumiram com coragem os filhos nessas condições e ela se dispunha a fazê-lo. Mas, e o marido ?

As bebedeiras constantes foram rareando com o nascimento das filhas. Quando nasceu a terceira, desistiu de vez dos planos que reservara para seu sucessor. Aceitou, com resignação, a sorte madrasta e a vasectomia. A expressão era batida mas para os amigos só encontrava essa quando comentava a terceira decepção. Era aceitar o que viera. Não estavam com saúde ? Pois isso é o que basta. "Falar é fácil, meu caro".

E assim o Ivan foi crescendo fisicamente, sempre ligado à mãe, que decifrava os sons guturais que ela dizia serem palavras. Silenciosamente, Ivan ia aprendendo coisas. E ele sabia coisas como o pai jamais imaginaria. Sabia distinguir amor de desprezo. Sabia entender o gesto entediado do pai quando o filho tentava aproximar-se dele, perguntando algo com aquele vocabulário ininteligível que irritava o próprio garoto. Sabia reconhecer a vergonha das irmãs, quando aparecia alguma colega e ele ficava ali na sala, parado, olhar vidrado, boca aberta, onde não cabia a língua enorme, sem noção de oportunidade nem de discrição.

Mas ele ia aprendendo coisas. Sem que ninguém ensinasse, deu para ligar a televisão. O pai na repartição, a mãe fazendo compras, as irmãs no colégio e ele aprendendo coisas ali na sala. Talvez os métodos mais modernos, a utilização do visual em lugar do gráfico é que tivesse despertado no garoto uma inteligência embutida. Ele agora distinguia mais do que nunca antes. Ele sentia mais do que nunca sentira antes. Ele aprendia a ser. E sabia, sabia cada vez mais.

Em sua solitária sala de aula, ele desdobrava-se de atenção nas experiências químicas. A repetição das aulas televisivas era praticamente desnecessária, no caso dele. Ele seria capaz de reproduzir gesto a gesto as experiências da aula que estava sendo reprisada pela enésima vez.

Os pais não notaram quanto ele se mostrava menos irritadiço agora. Nem mesmo a mãe, outrora tão arguta em acompanhar os seus tão poucos progressos, achava agora tempo especial para dedicar a ele. Passou a ser um dentre os filhos, mesmo não tendo, aparentemente embora, a mesma capacidade das irmãs de aprender e comunicar-se. O que a mãe não sabia é que ele aprendia mais depressa do que elas. E Ivan sabia o que queria saber. Cada vez mais.

O Natal daquele ano seria especial. Os familiares do interior do Estado, depois de tantos anos, viriam à Capital desfrutar do convívio dos parentes distantes. Mais distantes ainda após a decepção que o filho lhes dera. O nome da família se extinguiria. E foram anos e anos de mágoa. Chegara a hora de tentar reunir a família, dando-se por inevitável o que inevitável fora. Os velhos, desta vez, aceitaram o convite.

Os preparativos começaram alguns meses antes. Os pais e as meninas se reuniam à noite, uma vez por semana, para programar, nos mínimos detalhes, a grande festa de reconciliação. Ivan tudo via e tudo entendia. E também compreendia que naquela festa não haveria lugar para ele. Falava-se nos presentes dos avós, nos pedidos das meninas, nas surpresas que cada um faria. Ninguém pensou em Ivan como amigo secreto de alguém. Nem se Ivan desejaria ter um amigo secreto. Mas ele tinha.

Jamais se soube como ele reuniu o material no sótão da garagem. Mas ali, silenciosamente, ele se pôs a preparar o presente que destinaria a alguém, na noite de Natal.

Ninguém percebera ele apropriar-se de uns fios de cobre e de um interruptor de luz sem uso. Experimentou seu disparador automático, utilizando-se da porta da garagem. O funcionamento deu-lhe um ar de vitória e um sorriso que ninguém diria ser angelical. Palmas para si. Mas faltava a pólvora. Ele sabia que tudo viria a seu tempo. E sabia certo.

Mês de dezembro, chegaram os fogos de artifício, com os quais se comemoraria, como nos velhos tempos, a passagem de ano. Tudo programado e providenciado com toda antecedência.

Com o aumento das preocupações com os últimos preparativos da família para a festa não foi difícil para o garoto surrupiar pó dos artefatos. Não cometeria a imprudência de subtraí-los, como fariam pessoas menos inteligentes do que ele. Isso despertaria a atenção do pai. Preferiu retirar de cada peça uma pequena porção de material explosivo, drenando-o para uma lata de bolacha. Tinha todo o tempo do mundo para a delicada operação. Após dias e dias de paciente garimpagem, lá estava a lata com a munição suficiente para a conclusão do presente natalício.

E veio o grande dia.

Na sala, em clima de festa e animação, a excitação pelo momento das revelações. Os nomes iam sendo retirados do vaso, lendo-se cada papelzinho, com indicações das pistas para que o presenteado lograsse alcançar a surpresa que seu secreto amigo havia preparado. Tudo após alguns risos, procuras e descobertas, com beijos e abraços de confraternização, a que o garoto permanecia alheio. Até que surge o papelote tão aguardado por ele. "Papai quarto" dizia o bilhete, com aqueles garranchos que tornavam impossível adivinhar quem seria o amigo secreto. Ou que revelariam quem era o amigo secreto, dependendo dos olhos de quem lesse o bilhete. Mas a mensagem era óbvia: o amigo secreto era o pai, o chefe da casa. E o local onde ele deveria procurá-lo era o quarto do casal.

Procurando dramatizar sua fingida satisfação, o escolhido acendeu a luz das escadas e subiu apressadamente, pulando os degraus, dois a dois. Intimamente não lhe agradava a idéia de pôr-se a procurar por todo o quarto um presentinho qualquer. Aquelas brincadeiras intermináveis iam minando-lhe a paciência, logo dele que se prometera comportar-se na noite de hoje. Chegou ao patamar e girou com disposição o trinco da porta, vamos logo acabar com isso.

Quando os pingentes do lustre da sala tilintaram, as pessoas não se deram conta de que a explosão fora no andar de cima. O avô, já meio surdo, chegou a falar em chuva próxima.

Na cadeira de balanço, até então de uso exclusivo do chefe da casa, o sorriso do Ivan, permanentemente pendurado no rosto, tornou-se agora um pouco maior. Ele aumentou os movimentos do seu brinquedo, sem tirar os olhos do alto da escada, de onde um rolo enorme de fumaça começava a querer descer os degraus.

As pessoas corriam de um lado para outro, quais formigas na chuva. E o garoto balançando-se na cadeira que agora seria só sua. Ele sabia e sentia coisas. Mais, cada vez mais.