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Equívocos

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Atualizado em 28 de fevereiro de 2008 14:11

- Teu pai morreu.

Eu ali de pé, com o telefone junto ao ouvido direito, mão esquerda no bolso da calça, pois, ao levantar-me para atender ao chamado, havia pensado em retirar dali alguma coisa que, agora, nem mais sabia o que seria, ouvia aquela notícia dada assim de chofre, como uma martelada em tua testa. Em outras condições eu teria dito que aquilo não era modo de transmitir a alguém uma notícia tão extrema como essa, pois é de presumir que há entre pai e filho uma ligação afetiva que certamente exigiria um tratamento respeitoso, diferente daquele que me estava sendo dado, muito embora saibamos todos que. Nem se fosse um animal ! Veio-me à mente, vinda de longe, uma lembrança de infância, quando minha mãe, sentada em sua cadeira de balanço, me chamou até ela, colocou-me sobre os seus joelhos e pôs-se a contar uma história longa, cujo término jamais chegava, produzindo uma angústia enorme naquele menino que segurava nas mãos a bola de borracha com a qual.

- Alô. Está lá ? Está lá ?

Claro que estou aqui. Ou acaso pensas que desmaiei por força da maneira grosseira como me deste a notícia, estúpido ? Era o que eu diria, se não estivesse ocupado em lembrar-me da morte de meu cachorrinho, que minha mãe, rodeando muito, acabou por contar-me ao fim da longuíssima história, que tinha, mais tarde percebi, o efeito de um anestésico. Não me lembro qual foi minha reação naquele dia distante, mas certamente não foi o mutismo que o modo como este cretino acaba de.

- Está lá ? Repito : teu pai morreu.

Tive impulso de perguntar ao imbecil do outro lado da linha com quem ele imaginava que estava conversando. Acaso alguém liga e diz "teu pai morreu" e quem recebe a notícia põe-se a chorar, descabelado, agradecendo ao informante pelo trabalho que teve, talvez com interrupção de suas habituais atividades, ao vir dar-lhe tão desagradável notícia ? Se nem sei quem fala do outro lado da linha, como é que eu.

- Aqui quem fala é Manoel de Arruda Botelho Ramos, proprietário de uma quinta em Santa Bão d'Aldeia, freguesia de Visconde d'Oiro, onde produzo vinhos de óptima qualidade.

Pelo jeito o homem lê pensamentos, foi o que me veio à mente, por menos que o desejasse.

- Vosso pai é meu funcionário há catorze anos. Desculpa : foi meu funcionário por catorze anos e hoje veio a falecer, após receber uma marrada de uma vaca prenha, que lhe custou a ele uma fratura na bacia e ela praticamente nada, pois saiu ilesa do embate. Não tínhamos como transportá-lo à sede da freguesia, visto que os dous veículos que normalmente nos servem, duas charretinhas traçadas a burro, a transportar pessoas e bens, tal como consta de sua licença, encontrava-se de lá da sede, levando víveres alhures. Deu-se que ocorreu nele, falo de teu falecido pai, uma hemorragia e lentamente vosso pai foi-se passando desta para a melhor, como aqui dizemos.

A idéia de ter o pai morto, sem que algo nos prevenisse de que isso estava prestes a ocorrer, é uma experiência que eu, evidentemente, jamais havia experimentado, até porque aquele era o único pai que eu havia tido na vida. Mas tenho um amigo que passou por algo semelhante, quando seu pai.

- Alô ? Está lá ? Preciso que me diga que recebeu o meu recado para que eu possa orientar-me sobre as providências a tomar. Repito meu nome é Manoel Ramos e estou a informar-vos que o vosso pai acaba de falecer e há que cuidar-se do féretro.

Eu continuava ali parado, de pé, mão esquerda esquecida no bolso da calça, mas meu olhar foi lentamente atravessando o vidro da janela daquele segundo andar, onde fica meu escritório. O mar silenciosamente vinha e voltava, produzindo aquelas linhas brancas volumosas, paralelas à linha da praia. Alguns banhistas, poucos, ainda brincavam na água, talvez crianças ou jovens. Mais à esquerda o morro Dois Irmãos, que me evocou a música do Chico. A calçada exibia o desenho que eu estava acostumado a ver todos os dias, desde criança, quando meu pai me levava para o colégio, antes de começar o expediente em seu quiosque ali na praia. Eu pulava amarelinha na calçada de Copacabana, evitando tocar com os pés as faixas onduladas de cor escura. "Escuro é morte", expliquei a meu pai certa ocasião, quando ele quis saber que bobagem era aquela. Ele riu e eu, sem saber o que dizer nem o que fazer, pus-me a rir também. Ri naquela distante ocasião como estou rindo agora. Quer dizer que meu pai foi até hoje funcionário de uma adega, ou seja lá o que for, situada do outro lado daquele mar imenso? E foi ferido porque uma vaca maluca lhe deu uma chifrada nas ancas ? Conta outra, pá.

- Alô. Está lá ? Repito : pela última vez aviso que teu pai.

Tive ímpetos de dizer ao cretino lusitano tudo o que me vinha à cabeça, em retribuição ao susto que me havia produzido. Teria ele se equivocado ao acessar o código internacional ? Se a tal quinta tinha telefone para ligar para o Brasil, não teria telefone para ligar para um hospital que certamente haveria na sede da tal freguesia ? Ou ainda haverá em Portugal, em pleno século XXI, municípios que não possuem atendimento médico de urgência, mesmo depois dos rios de euros que a União Européia despejou no país, para enriquecimento de uns tantos de nossos ancestrais ?

Preferi simplesmente colocar o telefone no gancho, até porque eu ria tanto que não conseguiria dar à minha voz o tom dramático de que eu necessitaria. Estiquei os braços, espreguiçando, e saí do escritório, em direção à praia. Atravessei a avenida, como fazia várias vezes por dia, e fui até a barraca de frutas, logo ali adiante, onde trabalhava meu pai.

- E aí garoto ? Tudo em riba ? Vai um coco ?

O Zelão era quase um irmão, pois começara a trabalhar na barraca de meu pai há muitos anos, até porque era bem mais velho do que eu. Tomei um gole da água de coco e perguntei por meu pai.

- Ele não está. Passou por aqui um português que o convidou para ir ver umas garrafas de vinho que ele mandou vir de Portugal. Isso já faz umas três horas. Estou começando a ficar preocupado.