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Litteratura

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Atualizado em 5 de junho de 2008 10:20

 

"Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar".

Carlos Drummond de Andrade, três dias após a morte de Guimarães Rosa

O Joãozito nasceu em Cordisburgo, cidade cujo nome tinha tudo para mexer com a cabeça do mineirim, vê se não. Num é que ele, falo do nome da cidade, sô !, é um híbrido de puro latim com alemão ? Puisintão. Era tudo o de que o João percisava móde aprender umas mais de dez línguas, como dizem seus biógrafos. Arguns falam em vinte, que eu nem sei se enziste tantas neste mundo de meu Deus. E o hómi se pois a filosofar, indagano : Donqueuvim? Oncotô ? Prondeuvô ?

Quando arresorveu de publicar um livro, foi aquele tedeo, pois mexeu com a cabeça das gentes já no título. Intão, ondocê viu dois pontos separando coisa que não sinonimeia ? O Grande Sertões : buliu co juízo dos críticos, tadinhos, tão acostumados com a previsibilidade do Joaquim Maria e sua Capitu traiu/não traiu, que caíram de vara de sucupira no lombo do moço. Falo dos críticos, claro. Que se contentasse em ser médico naqueles interiores mineiros, abra a boca e diga aaaaaaaa, ao invés de pretender brincar de ser um ..., de ser um ... como é mermo o nome daquele irlandês que escreveu Ulisses e não encontrou na Irlanda editor disposto a aplicar seu dinheiro na publicação daquilo ? Pois é dele que eu falo.

Diz a lenda que ao prestar concurso para ingressar na carreira diplomática, já em prova oral, pergunta-lhe um da banca o que ele conhecia da literatura francesa. E ele, franco da Silva : "Tudo !"

O que os críticos não haviam percebido era que o ex-médico e agora embaixador criava palavras não apenas usando as que nossa monoglossia, licença, senhora !, estaria em condições de perceber, como a deliciosa funebrilhos, para designar os enfeites de caixão de defunto, ou este incrível verbo, referindo-se ao seu burrinho : "no mato, vozinha mansa, aeiouava". Aeiouar ? Só o João. Quando botara o nome de Sagarana em outro livro, dado ao mundo em-antes do romance dos dois jagunços que se amavam e que o Tarcísio mais a Bruna eternizaram na TV - cadê o DVD disso, gente ? - quem na sala soubesse alemão que levantasse o dedo ! E foi um Deus nos acuda. Diz que o nome do livro é casamento do alemão "saga", vale dizer "canto heróico", mais "rana", palavra indígena a significar "à maneira de". Então é.

Sagarana pretendeu ser, e foi, uma "narrativa à moda das fábulas". Apenasmente o mais deslavado atrevimento levaria alguém a arrolar os dez mais belos contos da literatura mundial, pois quem haverá tantas vidas para ler tanto ? Mas se dessa lista não constar o Hora e Vez de Augusto Matraga, que encerra em ouro o livro, saiba o senhor que ela estará manca. Das duas pernas, como eu lhe agaranto, por essa luz que me alumeia.

Só mesmo o Rónai para desfiar o novelo. Não é que o Paulo tinha nascido em Budapeste, muito em-antes de a cidade ser nome de romance do Chico, aprendeu línguas e mais línguas, veio fugido para o Brasil causo da guerra, criou dicionários, traduziu alguns livrinhos como a Divina Comédia, do Dante, e a Comédia Humana, do Balzac, coisica pouca, e, deixando as comédias de lado, sacou qual era a do Joãozito : "a invenção de onomatopéias sem conta, a livre permutação de prefixos verbais, a atribuição de novos regimes, a ousada inversão das categorias gramaticais, a multiplicação das terminações afetivas são algumas dessas fecundas arbitrariedades que se abonam mais de uma vez na prática de outras línguas, cujas reminiscências o poliglota nem sempre soube ou quis reprimir". Falou !

Pois se o João houvera nascido num país sério, caríssimo Charles, onde houvesse um Ministério da Cultura sendo ocupado por alguém que entende do assunto e não alguém que está lá (está ?) apenas para preencher cotas raciais, o centenário do nascimento de nosso escritor maior, a ocorrer este mês, seria comemorado com fogos e tambores de Minas, já que poucos países do mundo tiveram entre seus filhos alguém de sua elevação moral e intelectual. Não viu que ele mais a secretária e futura esposa driblavam o ditador, debaixo do bigodinho do homem, ali em Hamburgo, dando passe livre a quem por lei não deveriam ?

E quem, amante dos livros, não curtiu na juventude aqueles quebra-cabeças roseanos ? Quem o diz não sou eu, que mal conheço tal assunto. É seu colega Francisco Buarque de Hollanda, que, jovem menestrel, inventou o roseano verso "Pedro pedreiro penseiro esperando o trem", confessadamente inspirado no modo de escrever do João. O moçambicano António Emílio Leite Couto, Mia Couto para os que gostam de ler, não confessa ser aquele o inspirador de suas licenças literárias ? Um autor que bota num livro o nome de Estórias Abensonhadas, ou Mar Me Quer, ou Pensatempos precisa confessar alguma coisa ?

Ouçamos o pai do Chico : "Tenho medo de tentar comparações. Não direi, por isso, que a obra de Guimarães Rosa é a maior da literatura brasileira de todos os tempos. Direi porém que nenhuma outra, de nenhum escritor, me deu até hoje, entre brasileiros, a mesma idéia de tratar-se de criação absolutamente genial".

O fato é que todos nós que escrevemos sonhamos, algum dia, ser o João, ainda que em uma única e atrevida linha. Mire veja. Se a cuidadosa Ariane, nome de princesa medieval encerrada em torre pétrea altíssima, no aguardo do seu louro príncipe, que se aprochegue amontado em seu corcel imaculadamente branco, mas que, falo dela, nas horas vagas revê meus textos, expungindo deles as bobagens datilográficas que nele encontre, fruto quiçá de minha parestesia manual, não corrigiu o título desta crônica, lá estará uma roseanice. Litter, como aprendemos nos desenhos do Woody Woodpecker, quer dizer lixo lá no estrangeiro, donde o roseano litteratura. Nada mau para título do conjunto das coisas que escrevo. Segundo meus detratores, é claro, pois eu jamais faria a meu respeito um julgamento tão injusto, admirador que sou da falta de modéstia de todos os que rezam pela cartilha do Romário. "Dentro da área, eu sou mais eu" pontificou o ex-técnico certa ocasião. Tamos aí.

Na verdade, para aplicar anabolizante em fios de cabelo só mesmo se chamando Romário, nome que iria bem numa galeria de personagens roseanos, não houvesse o Joãozito morrido antes de tornar-se sexagenário, logo em seguida à sua posse na Academia Brasileira de Letras, evento, aliás, que ele postergou quanto pôde, pois estava convencido de que esse seria o derradeiro ato de sua carreira de escritor, como, de fato, foi. Autêntica precognição. Jung explica ?

De efeito, eleito em 6 de agosto de 1963 membro da Academia, só em 16 de novembro de 1967, mais de quatro anos depois, aos 59 anos de idade, foi que João Guimarães Rosa se dispôs a vestir o fardão fatídico, assim como quem se oferecesse consciente e voluntariamente em holocausto, repristinando Nhô Augusto Esteves. No dia 19 de novembro partiu de vez. "Encantou-se em beleza" como diz sua filha e colega de nós ambos, se me permites.