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Dans Le Cirque

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Atualizado em 3 de julho de 2008 12:50

"Dream, when you're feeling blue;
dream, that's the thing to do."

(Música de Johnny Mercer,
na voz de Frank Sinatra)

Qu'est-ce que c'est que ça ? perguntou-me o diretor do circo, apontando com aquele enorme dedo enluvado, ganté, como diria ele, para o pacote enorme que eu trazia comigo. Eu, que sou mestre na arte de improvisar; eu que sem a menor dificuldade consigo conversar com um chinês, mesmo desconhecendo por completo o significado daqueles autênticos hieróglifos, os tais ideogramas que eles empregam na escrita e, ao que parece, também na fala; eu que me considero o supra-sumo dos vigaristas, fiquei repentinamente mudo. Tão mudo como a girafa que minutos atrás quase comeu o chapéu verde que eu, por imperdoável inadvertência, não havia tirado da cabeça ao passar rente ao espaço reservado aos animais, trajeto esse escolhido por mim para não ter de apresentar o bilhete que eu, lamentavelmente, não portava.

Como eu nada dissesse, o homem insistiu no gesto inquiridor, permitindo-se silenciar o anterior "que vem a ser isso ?". À falta de coisa melhor, ouvi-me dizendo "isto é um cadáver".

Fez-se um silêncio constrangedor que, não fosse eu quem sou, seria simplesmente insuportável. A cena de faquirismo que eu, nos tempos de vacas mais magras, que essas jamais me foram gordas, interpretei por anos a fio, sentado em um catre desconfortável, com as pernas cruzadas, na ante-sala dos teatros, rosto enegrecido para parecer hindu, e fingir não sentir o cheiro de batatinhas chips que crianças com cara de idiotas, acompanhadas de mães obesas saboreando aqueles horríveis sanduíches de salsichas, feitas certamente com carne de cavalo, mastigavam a menos de um metro de meu estômago vazio, agora me veio à mente. Não me pergunte a senhora qual a ligação entre uma coisa e outra, mesmo porque eu não estou aqui para preencher as notórias lacunas de sua cultura. O que conta aqui é simplesmente a sensação, aquele impulso quase incontrolável de pular no pescoço do atrevido e dar um fim naquela situação insuportável. Agora, como antes, o fato de haver tantas pessoas ali em torno não se me apresentava como empecilho. Au contraire, isso aparecia como um incentivo a que eu fosse adiante em meus propósitos.

Felizmente, para ele, o diretor do circo rompeu aquele já abjeto silêncio, prorrompendo em uma sonora gargalhada, que me pareceu durar dias, talvez meses. Enquanto ele gargalhava, eu notava que as pessoas que se dirigiam ao circo não encontravam qualquer dificuldade em passar pela cancela. Apenas eu permanecia ali retido, aguardando que ele encerrasse aquela despropositada reação antes que eu.

Repentinamente fez-se silêncio. O diretor do circo, que estivera até então à minha frente, precisamente entre mim e a porta de entrada, afastou-se de lado, fez uma mesura, dobrando o corpo magérrimo para a frente e quase arrastando a mão direita no chão, fazendo um arco tal como um porta-bandeira de escola de samba, convidando-me a entrar.

A primeira parte do meu desempenho estava vencida, foi no que pensei, tentando segurar o bilhete de ingresso que agora, num passe de mágica, apareceu em minha mão esquerda, mesmo porque o braço direito estava ocupado com o incômodo e extravagante pacote que quase me trouxera complicações na porta de entrada do circo. No verso vinha a indicação do meu lugar, enquanto que no anverso do bilhete vinha algo como "???e?t?, ???a t?? ?p??a? ?????f????? sta e??????? ap? t?? e?d?se?? t?? ?st?a?, ß?aße????e ??a t? p?µpt? t?? µ???st???µa." Uma senhora a meu lado, parecidíssima com minha falecida mãe, faz uma cara de nojo e diz: "Isso pra mim é grego."

Butaca G veinte y cuatro murmurei para mim mesmo, depois de ler o verso do bilhete, pondo-me em seguida a procurar onde ficaria esse lugar. Localizada a tal fila G, agora era procurar a poltrona 24, o que fui intentando à custa de muitos permiso ?, permiso ?, permiso ?

Enquanto as pessoas se levantavam, para permitirem que eu chegasse à minha butaca, veio-me à mente, como tantas vezes me ocorre nas situações mais inadequadas, uma excelente idéia para uma das crônicas, talvez um conto, que escrevo constantemente e que um obscuro jornalzinho de sindicato publica quando lhe falta assunto para fechar a última página. Eu precisava agora chegar o mais depressa possível a meu lugar, sacar do bolso o caderninho de anotações e ali registrar desde logo aquela idéia, antes que ela se esvanecesse, como já acontecera outras muitas vezes. Enquanto arrastava os pés, andando ridiculamente de lado, como é próprio daqueles que buscam chegar a seu assento numa sala de espetáculos, eu alimentava aquela idéia sensacional que me havia ocorrido.

Ei-la : imagine um circo em cuja platéia não há viv'alma. Só você foi ao circo naquela tarde de sol. Você olha em volta e tudo o que vê são as cadeiras vazias, voltadas solenemente para o picadeiro iluminado, naquela conhecida angustiante espera de que o homem de cartola pronuncie a frase mágica que em tais circunstâncias todos aguardam. Enquanto não se ouve o "Senhoras e senhores !", você consulta seu bilhete e em seguida procura a fila ali indicada, tal como fizera eu há poucos minutos. Embora não haja ninguém sentado naquela fileira, nem, de resto, em nenhuma outra, lá está você andando de lado, caranguejo humano, repetindo, em voz baixa, "licença ?", "licença ?", "licença ?". Você, naquela narrativa que certamente anotará em seu caderno tão logo chegue à sua butaca, inebriado por aquela dança solitária, acaba sendo envolvido pelo prazer da dança e passa sem perceber pela poltrona que lhe estava reservada, de acordo com seu bilhete. E a dança continua até a última poltrona daquela fila. Quase sem notar, você atravessa o corredor que separa um grupo de cadeiras de outro, ingressa em uma nova fila e vai arrastando sucessiva e lateralmente os pés, sempre ao som do "licença ?", "licença ?", "licença ?".

Horas depois, quando você percorreu todas as fileiras naquela dança de caranguejo, as luzes do picadeiro começam a ser apagadas. Você, que está perto da porta de saída, vê que a noite já caiu. Pas du soleil. Lá fora, pelas alamedas, só circulam fantasmas, muitos deles em duplas, conversando em voz baixa, talvez para que você não se inteire dos assuntos de que cuidam. Caminhando por ali, você descobre um providencial banco de cimento, junto a um poste curvo como um anzol, que despeja sua luz sobre o banco e seus arredores. Você encosta o pacote numa árvore, de modo que o cadáver fique de pé, senta-se no banco e tira do bolso o caderninho e a caneta. Saído do nada, aparece o diretor do circo, que se senta a seu lado e se põe a ler o que está sendo relatado. Páginas adiante, ele consulta discretamente o relógio e diz, suavemente, "Tempo esgotado". Você guarda o caderno e a caneta e sai em direção ao ponto de ônibus, deixando o pacote aos cuidados do diretor do circo, que certamente a ele dará o destino adequado. Ele fecha o livro do Freud que trazia sobre as coxas.

Aqui termina a narrativa. Tudo o que posso acrescentar é que você terá sérias dúvidas em enviá-la para publicação, pois a diretoria do sindicato não vê com bons olhos esse tipo de história, cujo simbolismo onírico os leitores do jornalzinho semanal não têm condição de apreender. Talvez até se ofendam, supondo que você os está humilhando com uma narrativa tão fantástica e tão distante da cultura deles. E tudo o que o diretor do jornal não quer é publicar cartas de leitores irados.

Também direi, antes de encerrar, que só muito adiante, quilômetros além do ponto de partida, você perceberá que tomou o ônibus errado e que o seu desejo de cair na cama e sonhar com anjos, bailarinas e palhaços, como tantas vezes lhe tem ocorrido ultimamente, ficará para mais tarde. A última imagem que me ocorre é ver você, ainda sentado no banco do ônibus errado, tentando tirar do bolso a caneta e o bloco de notas. A seu lado, o diretor do circo faz anotações em outro caderninho.