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Palavrão (O)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Atualizado às 07:06

 

Sou freqüentador de banco. Minhas filhas não se conformam com isso, pois lançam suas contas na Internet e dormem o sono dos justos. Eu, um homem tão moderno, ainda fazendo esses périplos desnecessários. O que elas não sabem é que o gosto está justamente nesses passeios pelas ruas do bairro, vendo o que se passa nas cercanias. Ver aquela senhora levando, ou sendo levada, por seu cão, que deposita, sem cerimônia, seu cocô no lugar que lhe dê na telha e eu ficar observando se a previdente senhora traz ou não na mão direita o saquinho de plástico, no qual recolherá aquela preciosidade mérdica, é algo que me dá um prazer cívico.

Ou então ralhar com a mocinha que, em lugar de usar vassoura, varre a calçada desperdiçando rios de água potável. "E que diabos é isso ?" responde ela ao ser questionada. Outra continua a desperdiçar água, com uma explicação que me leva ao silêncio : "Só obedeço a meu patrão." Também me divirto descobrindo os mais recentes buracos aparecidos na calçada. Fico pensando o que será daquele ceguinho que, dia sim dia não, passa por mim, todo serelepe, com sua bengalinha fazendo toc, toc, toc na calçada. Vá confiando nos nossos prefeitos, vá, meu caro. Eu queria ver o Francimar testando as ruas de São Paulo, já que ele escreveu em seu precioso livro que os cegos devem, por princípio, andar sem guia outro que não seja a bengala. Só se for em Carazinho ou em Porto Alegre.

E há o prazer de estar no banco. O primeiro deles é desfrutar da fila dos privilegiados. Quem não gosta, no íntimo, no íntimo, de sentir-se alguém diferenciado ? Alguém que foi especificamente lembrado pelos nossos tão esquecidos legisladores ? Especialmente quando isso incomoda os não privilegiados. Como desabafou certo office-boy, na deliciosa irreverência dos jovens : "Eles que são aposentados e têm todo o tempo do mundo são atendidos antes de nós, que estamos trabalhando ? Acho essa lei injusta." Ponto para ele. Que, entretanto, não contou com nenhum aplauso de sua grei. Ao reverso, os manos continuaram a rodar sua pasta de contas a pagar na ponta do dedo maior da mão direita, para me matarem de inveja, pois já tentei, várias vezes, na solidão de meu quarto, reproduzir aquele malabarismo, sem êxito algum. E eles continuando a falar de futebol na longa fila.

E houve o caso daquela velhinha que foi chegando, foi chegando e, quando vimos, colocou-se na ponta da fila, passando a perna em nós todos, tão gentis para com ela. Voltou-se para nós e sentenciou, apontando com a sombrinha a tabuleta pendurada sobre a cabeça da atônita caixa : "O privilégio é a idade, não é ? Logo, quem tem mais idade tem mais privilégio. Eu indago se alguém aí tem mais de 83 anos de idade. Ninguém ? Pois então eu sou a próxima." Mesmo diante do silêncio de todos nós, ela tirou do bolso uma cédula de identidade, desafiando-nos : "Se alguém estiver em dúvida quanto a isso, venha consultar meus documentos." Colocou de volta a tal cédula na bolsa e entregou à moça do caixa os documentos relativos às contas que desejava pagar. Feitos os pagamentos, passou por nós com o nariz empinado, como se fosse a rainha da Inglaterra. Esse, ao menos, foi o comentário de outra senhora, que parecia tão velha quanto, mas se recusara a participar daquele concurso de vetustez.

Na tarde de ontem, o personagem foi um senhor de nossa idade, falo pela média dos privilegiados então presentes, elegantíssimo, com chapéu na cabeça e um bigode grosso sob o nariz, com as pontas voltadas para os céus. Não havíamos dado por sua presença até que ele, voz alterada, sapecou um solene "e quer saber de uma coisa ? Esse presidente da República não passa de um monoglota !"

Dezenas de olhos despejaram-se sobre o elegante senhor, que seria injusto apodar de macróbio nas circunstâncias. Um homem tão elegante dizendo algo assim em público. E em voz alta ! Uma senhora perto de mim fez um ar de espanto, como se tivesse visto o próprio demo. Arreceei que ela tivesse um ataque de apoplexia, o que nos daria muito trabalho, pois, quantas daquelas pessoas ali presentes haveriam de saber o que é isso ? "Monoglota ?" sussurrou alguém, temendo certamente ser identificado.

Lembrei-me, como não poderia deixar de lembrar, daquela delicioso conto do nosso Guimarães Rosa, no qual um chefe de cangaço vai com toda a jagunçada à casa do professor primário local, para fazer-lhe uma só pergunta. O professor vem até a varanda da casinha e o cangaceiro, sem desapear, indaga-lhe o que quer dizer famigerado. É coisa de se ofender ? Será elogio ? O professor, como quem acaba de levantar-se da cama, não está entendendo nada. O jagunço então explica : constou-lhe que certa pessoa teria dito ser o justiceiro chefe de tropa ali presente um "homem famigerado", veja o senhor. Antes de ofender-se ou de orgulhar-se com o adjetivo, ele, justo como é, precisa de saber qual o significado disso. O professor dá-lhe a explicação que qualquer dicionário lhe daria, se o ignorante, falo com todo respeito, resolvesse e pudesse consultar um desses livros que meu pai chamava de "pai dos burros". Diante da explicação dada pelo professor, o cangaceiro consulta seus homens, indagando se todos ouviram a explicação dada pelo professor. Ante o assentimento cabeçal de todos, ele agradece a gentileza e parte para os providenciamentos que aquele sujeito merece.

Pois ali está, na fila dos privilegiados do meu banco, um senhor, com pinta de senador aposentado, deflagrando um monoglota sem que ninguém tome nenhuma providência. Onde está o gerente ? Tudo que temos é um silêncio respeitoso, coisa assim de um Leonardo Boff.

Agora, mais contido, o tal senador continua a conversa com seu colega de fila, em voz mais baixa, que nós, com nossos precários dotes auditivos, não conseguimos ouvir, por mais que tentássemos.

Agora é a vez de ele ser atendido. Gentilmente ele entrega as contas e o cheque respectivo à caixa. A moçoila desmancha-se em sorrisos e conclui com um "pronto, até o próximo mês". Ele recolhe seus recibos, leva três dedos da mão direita até a aba do chapéu, que imaginávamos fosse tirar. Nada disso. Ele apenas coloca o polegar na parte de baixo da aba e o indicador e o dedo maior na parte de cima. Faz uma leve reverência com seu corpo esbelto e se despede com um gratuito conselho à moça : "entrementes, não descure da cultura".

Reverenciosamente todos nós nos afastamos, para dar lugar àquele elegante companheiro de fila de banco, que acabara de dar ao presidente da República o tratamento de que ele é merecedor, esse insigne monoglota. O homem marcha até a porta giratória, que o engole num átimo de segundo.

E voltamos todos ao silêncio de nossa insignificância.