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Última Flor no Laço

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Atualizado às 07:06

 

"O que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras."

Clarice Lispector

O Loyola Brandão diz que escreve para si próprio. Se alguém quiser ler o que ele escreve, isso é lá com o leitor. Grande mentira. Imagine um compositor, Bach ou Tom, por exemplo, compondo apenas para ele assobiar enquanto toma banho de chuveiro. Ou um Rodin dizendo que aquilo tudo que ele esculpiu era somente para pôr no seu jardim lá dele. "Quem teve essa infeliz idéia de abrir um museu com meu nome sem minha autorização?" talvez dissesse ele se vivo fosse. Diria?

Eu que não sou digno de amarrar o avental do meu colega Rodin e tenho em comum com o colega Ignácio, meses mais velho que eu, apenas a circunstância de havermos morado ambos em Araraquara, ele por nascimento e eu laboris causa, confesso que me envaideço das cartas que recebo todas as semanas, embora nem sempre elogiosas, até porque quem consegue agradar a todos? Algumas pessoas aproveitam para pedir conselho, fiados nos meus cabelos brancos, como se isso fosse o suficiente para inspirar confiança. Santa ingenuidade, Batman!

Tenho sempre procurado utilizar uma linguagem sem afetação, mesmo quando trate de tema, como direi? menos vulgar. E tomo sustos e ganho gratificações. Alguém me diz que, mesmo não tendo curso universitário, lê o que escrevo com proveito, "embora não dispense o dicionário", como se isso fosse demérito do leitor. Até eu, na minha idade, não o dispenso, se é que idade significa alguma coisa, minha cara. Uma leitora confessa que somente entendeu certos conceitos jurídicos quando eu resolvi expressá-los numa linguagem macarrônica. O que me traz séria dúvida: o problema estará na incapacidade do professor em transmitir ou na dificuldade do aluno em compreender?

Alguém, impressionado com meu nome de família, me envia mensagem quase criptográfica, em celularês: "owww vc tem o msm sobre nome ki o meu. hsuashuahsa ki massa hehe. Abraçaum." Minha resposta: "A diferença é que eu escrevo em português." E ele, talvez franzindo o nariz: "ke???" Sem direito a tréplica.

No livro Cristo Hoje, que saiu em 1982 e está fora de catálogo há muitos anos, tentei parodiar a célebre Torre de Babel, de que fala o Velho Testamento: "Eis que o povo é um e todos têm uma mesma língua. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro." Qualquer semelhança entre esse texto do Gênesis e os torpedos internéticos será mera coincidência, mas acho que me antecipei à linguagem que se vê nos diálogos (sorry: chats) da Internet. Leia e diga se não foi:

"Um corbunzel aproximou-se do esgarto, assim como quem não quer nada. Tens aí uns milhardos? perguntou entre-dentes, olhando de soslaio pra lá e pra cá.

- Quantos queres? respondeu o outro, com naturalidade. Espantado e ainda olhando com desconfiança, tornou o corbunzel: traga-me aí uns três ou quatro, mas de bom tamanho.

O esgarto, cantarolando uma passama recente, dirigiu-se ao fundo do javélio, levantou a panta do panacro cor de jumas e dali retirou quatro milhardos grandes, que trouxe ao recém-chegado. Os olhos arregalados do corbunzel não saíam dos milhardos.

- Quanto é? Quanto é? Perguntou, algo impaciente, sempre olhando para um lado e para o outro, como se estivesse sendo observado. Trinta divacos, sentenciou o esgarto, sempre impassível. Trinta divacos? Caramba que estás exagerando, reclamou o corbunzel.

- Pagar ou largar. Vais querer ou não? indagou o outro, muito senhor de si.

- Não fazes ai um arremenho? gemeu aquele, sempre olhando muito assustado para um lado e outro. Nem arremenho, nem meio arremenho. Trinta divacos, fulminou o outro, preparando-se para levar de volta os milhardos para o fundo do javélio.

O assustado corbunzel meteu as lábrigas nos sutores da calácia e contou os trinta divacos, sempre a tremer. Aí estão os trinta divacos, rosnou. Aí estão os teus milhardos, respondeu o esgarto.

O corbunzel meteu rapidamente os milhardos nos sutores, saiu da trâmina e pôs-se a caminhar com pedicos rápidos. Mal dera trezentos pedicos e dois enormes malacheiros o interceptaram asperamente.

- Que trazes ai nos sutores?

O pobre corbunzel pôs-se a tremer mais ainda. Tentou falar mas a vácacha não lhe saiu da balga. Os malacheiros, então, metendo-lhe as lábrigas nos sutores, tiraram dali os milhardos.

- Então era isso que transportavas, salámaco. Onde os conseguiste?

- Foi na trâmina daquele esgarto que fica ali na ráviga. E apontou com o desmo da lábriga direita, pois a esquerda estava num dos sutores.

- Pois vamos lá ver isso.

E lá foram.

O esgarto recebeu-os com incrível naturalidade. Serviu-lhes alguma bagruaca, que sorveram gostosamente. Depois, um dos malacheiros, que parecia ser o págnato, questionou: foi aqui que este salámaco conseguiu isto?

- É evidente que não, afiançou o esgarto.

- Foi sim, protestou o corbunzel, algo contrariado. E os retirou daquele panacro cor de jumas que está ali no fundo do javélio.

Os malacheios dirigiram-se ao fundo do javélio e levantaram a panta do panacro. Somente encontraram ali facemas e junacas.

- Além de salámaco és um trâmico, rugiu o que parecia ser o págnato, ao mesmo tempo que dava solene tracão na maçola do pobre corbunzel.

- Queira desculpa-nos pelo desafato. Jamais duvidaríamos de um esgarto, não fosse este trâmico. E novo tracão na maçola do corbunzel.

Dali saíram, ao que parece para a traquiventa mais próxima, onde o corbunzel já sabia o que o esperava.

Quanto ao esgarto, continuou a cantarolar uma passama recente, feliz da sua condição de esgarto."

Sacou, cara?