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Coisa de Criança

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Atualizado às 08:38

Ele chegou, sem dizer oi, passou por mim, qual vento, subiu as escadas, pulando os degraus, dois a dois. Chamei seu nome. Mesmo que nada. Pensei em ir atrás, pegar no braço, ralhar, pensa que é gente?, talvez puxar pela orelha, levar de volta até a porta da frente, fazer bater nela, esperar abrir, cumprimentar, pois entre, respeitoso, vagaroso nos passos, educado na voz, como se deve. Só porque já usa calça comprida pensa que é gente!

Cheguei a ensaiar o início do corretivo, dois degraus subidos, velocidade reprimida, avaliando prós e contras, vale a pena?, não valia. Tornado ao chão, girei nos calcanhares e, mão no queixo, dou de cara com a mulher. Espanto-me, ela ri, balança a cabeça, coisa de criança, diz, como se a idade tudo perdoasse, deixa pra lá que há muito tempo para a seriedade. Fosse a mãe dela e seria coisa de gente velha, a cachola já não funciona. A velha repetia insistentemente as mesmas perguntas, cuja resposta esquecia em seguida, para voltar a perguntar. Que dia é hoje, Nicanor? E o marido, prestativo, repetindo pela enésima vez, sem voz alteada. É compreender e perdoar.

O pai dela, enquanto vivo, era a bonomia personificada, pagava boi pra não entrar na briga e até boiada pra continuar a não entrar, como ele mesmo dizia, com confirmação pelos fatos que todos conhecíamos. Agora vinha o neto deles com esses silêncios, esses modos ásperos de tratar os pais, coisa que nunca ensinamos, mesmo porque já viu alguém dar má educação aos filhos, homem?, como dizia minha mulher, compreensão em pessoa, sempre pronta a dar a última palavra, conciliadora, incapaz de asperezas no falar, sempre desmontando quem venha com fala grossa e gesto altivo.

Bambu verga mas não quebra. Já o carvalho ... Era uma provocação, por força do meu nome de família, os tradicionais Carvalhos, de Monte Santo, gerações e gerações de plantadores de café, desse de se exportar sim, senhor, que era o que todos faziam, pai, avô, bisavô. Mas veio a perda de preço, o craque da bolsa, a queima do café, queima de dinheiro, os atrasos nos pagamentos, as falências dos devedores e, por conseqüência, a bancarrota dos credores. E eis meu pai tornado funcionário público, carimbador de guias de exportação, pouco lhe valendo os títulos universitários, desgostoso que se tornou de tudo. Calado ia, calado vinha, cumprindo uma rotina que ninguém invejaria. Sábados e domingos o radinho de pilha sobre o muro divisório, ouvindo o futebol enquanto podava as roseiras ou adubava os canteiros de plantas diversas. Ou enquanto trocava o pedaço de jornal que servia de tapete na gaiola de seus canários. A mulher seguia para a missa, levada por uma fé serena, que lhe valera tanto nas épocas de mais dificuldade. E o irmão, de quem ele avalizara os títulos no banco, safo da falência. "Ele faria por mim o que eu fiz por ele, se pudesse". E o filho do filho dele tão rebelde, tão incapaz de um beijo no meu rosto. No da mãe ele pespegava um, vez em quando, meio na carreira, que ela recebia como se fosse um buquê de rosas. "Ele dá o que pode, homem".

E tinha a questão das drogas, que sempre me grilou a cuca. "Condor que não arrisca o salto não aprende a voar". Ela e seus aforismos, que eu não sei de onde ela tira. "Além do mais, meu velho, grilo na cuca é algo do teu tempo, não do dele".

Ainda por cima tenho de ouvir que estou velho. Logo eu, que as mocinhas chamam de tio. Fosse velho e me chamariam de coroa.

E suas reflexões continuariam se não bradasse a campainha da porta, que a mulher foi atender. Abriu a porta, falou com alguém, encostou a porta com ar sério, esticou o beiço pra baixo e apontou a porta balançando ritmadamente o polegar por cima do ombro, como quem diz "aí tem coisa".

O homem que se desabafava comigo diz que foi abrir a porta e o outro, um negro mal ajambrado, mostrou-lhe uma carteira com o escudo da República, polícia!, que, antes mesmo que meu interlocutor pudesse examinar, foi guardada com estardalhaço no bolso do paletó, afastado o suficiente para mostrar o revólver dentro da calça. Já se preparava para entrar na sala, o que não logrou fazer porque no caminho havia o outro homem, dono da casa.

"Vim pra levar teu filho pro distrito. Ele está devendo umas explicações aí. E não é porque é de menor que vai sair dessa".

O homem olhou o outro nos olhos, mediu-o dos pés à cabeça, lentamente, como se se preparasse para briga, logo ele que nem em moleque sujou roupa por rolar no chão. "Diga ao doutor Noronha que amanhã o pai do garoto vai falar com ele. Diz que foi o doutor Carvalho quem deu o recado, o mesmo advogado que ele costuma consultar quando... Não diga nada não. Diga apenas que vou conversar com meu filho e, se for o caso, darei a ele o corretivo merecido".

As narinas do policial se abriram, como as de um animal preparando o bote. Os olhos do advogado, porém, não só detiveram o visitante junto à soleira da porta como foram levando-o de costas até o portão. Despediram-se cordialmente e o homem, entrando em casa, foi subindo lentamente a escada, preparando o sermão que faria ao guri.

Enquanto isso, no quarto, o jovem hacker acabava de formatar o novo disco rígido em seu computador, onde a perícia jamais encontraria sinais da transferência dos milhões de dólares que havia feito para a conta de seu pai e dali para a agência bancária do Panamá. Aplicação offshore, como diria seu pai. Quanto ao HD anterior, estava, a esta altura, divertindo algum jacaré no fundo do Tamanduateí.

Agora era só retornar aos Estados Unidos e terminar o curso de informática. E acessar o banco do país vizinho vez em quando, para ver como andavam as gramíneas, the grass, como dizem lá seus colegas de malandragem. As verdinhas, mano.

Não lhe causava qualquer preocupação a situação futura de seu pai, pois sabia ser ele um dos mais espertos advogados do país e certamente teria como explicar à polícia a passagem relâmpago daquela pequena fortuna por sua conta-corrente. Afinal de contas, advogado é pra isso mesmo. Diz se não é!