COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Conversa Constitucional >
  4. Os bastidores de Albie Sachs em Brasília

Os bastidores de Albie Sachs em Brasília

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Atualizado às 08:18

Poucos minutos após as 22h da quarta-feira, dia 26 de outubro, aquela mulher risonha, de pele morena e estatura mediana, com o seu cabelo curto escuro com discretas mechas claras, apareceu no portão 10 do Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, tendo, logo atrás, dela, um homem muito branco, mais velho, alto, usando chapéu panamá e vestindo suas conhecidas camisas estampadas sul-africanas parecidas com as de Nelson Mandela.

Vanessa e Albie Sachs pisavam pela primeira vez em Brasília. Jamais tinham estado na capital. Juntos, eles passariam pouco mais de três dias cumprindo uma intensa agenda, que começaria dia seguinte, logo cedo, com uma fala na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a convite do ministro Roberto Barroso, passando por uma conferência no IX Congresso Internacional de Direito Constitucional do IDP, a convite do ministro Gilmar Mendes, seguido do lançamento do livro "Vida e Direito: Uma Estranha Alquimia" e, ao final, já à noite, um encontro com o presidente da República e seu staff, para receber a comenda Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, na qualidade de "comendador".

Foi exatamente no mais protocolar evento do qual participou que Albie mostrou a sagacidade de sua alma de revolucionário. Na presidência da República, após longas horas envolvido com rigorosos protocolos palacianos, eu lhe disse que ele não deveria se sentir obrigado a jantar conosco, afinal de contas, aquela quinta-feira havia sido exaustiva. "Você está livre, Albie". Sem titubear, ele levanta o braço esquerdo e o que restou do direito: "Livre? Sim, finalmente livre! Eu estou livre! Viva! Viva!", falou, como fazia após ser libertado das prisões, enquanto caminhava sacudindo os braços para cima, ao lado do staff do Planalto, que gargalhava com a espontaneidade daquele ilustríssimo homenageado.

Dia seguinte, sexta-feira, a jornada continuou. Logo cedo, ele falou numa sala abarrotada de estudantes no IDP e, em seguida, fez uma nova rodada de autógrafos do seu livro, cuja apresentação coube ao ministro Gilmar Mendes. Foi a terceira em menos de 24 horas. A primeira havia sido no próprio STF, na presença dos ministros Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber e Carlos Ayres Britto, além da pequena multidão que lotou o plenário da Primeira Turma ouvindo-o falar e trazendo o livro em suas mãos.

Na sala de aula, perguntado por um estudante muito jovem sobre o que achava das homenagens que recebia, mais uma vez a alma do revolucionário aflora: "Agora eu sou Comendador! Mais respeito, por favor!", disse em português, fazendo a juventude que o ouvia gargalhar e cair de amor por ele.

À tarde, no Salão Nobre do Supremo, exausto, Albie tirou um cochilo de meia hora deitado num dos sofás imperiais, enquanto jornalistas, produtores e editores preparavam o ambiente. Com a cabeça no colo de Vanessa, que acariciava seus cabelos, aquele homem de mais de 80 anos se preparava para mais uma entrevista, dessa vez para o programa Ciência Sem Fronteiras, da TV Justiça. Assim como fizera antes, iniciaria falando em português para, bem depois, passar a desenvolver suas ideias em inglês, sua língua-mãe.

No sábado, quem apareceu em sua viagem foi um dos seus heróis: Oscar Niemeyer. Albie tentou, de todas as formas, encontrar um livro em inglês que tratasse do arquiteto, sua obra e legado. Andamos em todas as livrarias da cidade. Nada à altura foi encontrado. "Frustrante", desabafou. Depois, convencido de que em Minas Gerais, Rio de Janeiro ou São Paulo, para onde seguiria, teria melhor sorte, Albie soube que há críticas a Niemeyer no sentido de que seus prédios não são funcionais. Ele, contudo, não se impressionou com os ataques. "Geoffrey Bawa, arquiteto do Sri Lanka que compôs o júri que escolheu o projeto da Corte Constitucional da África do Sul, certo dia me disse que beleza também é uma das funções de um prédio", justificou em defesa do seu herói.

E foi exatamente pela arte de Oscar Niemeyer que Albie Sachs teve sua mais profunda experiência nessa temporada. Sábado, fazendo um passeio turístico pela cidade, parou diante da Catedral de Brasília, ou Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida. Sendo ele um homem que não abraça fortemente qualquer religião, não viu nada de mais na entrada. Então, atravessou o pequeno corredor que dá acesso ao recinto sem dar atenção às pessoas que gritavam "água, água", tentando vender algo para os visitantes. Cruzando a porta, imediatamente tirou o chapéu. Sua face mudou. Caminhando lentamente até o centro, sorria sozinho, enquanto olhava para cima e via os três anjos - Miguel, Gabriel e Rafael - pendurados por cabos de aço. Cantos de pássaros penetravam o ambiente como se estivéssemos numa floresta. A Catedral, iluminada pela luz do sol, mostrava magnificência. Albie pôs seus ouvidos sobre as paredes, passou as mãos sobre elas, tocando-as, demonstrando profundo respeito pela construção. Olhando para cima, viu os espelhos d'água refletidos nos vitrais com desenhos coloridos. A luz natural, combinada com os reflexos da água e enriquecida pelos cantos dos pássaros faziam sua face resplandecer. Ele caminhou de um lado para o outro, segurando, com o seu único braço, o chapéu. Seus olhos fitavam o recinto. Depois de cruzar de volta o corredor de entrada, driblando vendedores que tentavam negociar água ou imagens de Brasília, aquele homem que não pratica ativamente qualquer religião se sentou no ônibus do passeio. Suspirando, disse: "Eu devo confessar: eu fiz uma homenagem secular a Deus. O que eu senti dentro daquela catedral é algo transcendente". Pergunto-lhe se havia sido, então, a melhor experiência em Brasília. "Não só de Brasília. De toda a minha vida", responde.

Albie Sachs provou, repetiu e elogiou o nosso café. "É melhor do que o café americano". Também comeu coxinha de frango. Já Vanessa preferiu aventuras mais suculentas. "Waw, hum, waw...", murmurava, enquanto os garçons se revezavam exibindo os espetos de carne que os rodízios brasileiros gostam de exibir. A cada espeto, boa parte da carne ficava em seu prato. Cordeiro foi o seu favorito. Já quanto ao brigadeiro, como sobremesa, preferiu não abusar. "É muito doce, não?", perguntava, enquanto terminava de comer mais um.

Nas casas por onde passou, Albie manteve viva a regra que aplica em seu bangalô, na praia de Clifton, na Cidade do Cabo. Ficou de meias, com os sapatos deixados logo na porta de entrada.

Também manteve inquebrantável seu compromisso com a diversidade, que consta do preâmbulo da Constituição da África do Sul. Chamou a sua atenção as fotos dos presidentes que viu no Palácio do Planalto. "Homem branco, homem branco, homem branco, homem branco..., eu olho e não vejo o Brasil que o mundo conhece", disse. No sábado, dentro do elevador da Torre de TV de Brasília, espremido pelos populares que faziam seus passeios, ele cochichou: "Esse, sim, é o Brasil da diversidade".

A estada de Albie e Vanessa em Brasília contou com alguns improvisos, com agendas, compromissos e horários alterados. "Parece uma desorganização muito organizada", disse numa de suas falas a estudantes, provocando gargalhadas. "Mas, no final, tudo dá certo", emendou.

Já perto de encerrarmos o passeio do sábado, diante do Memorial Juscelino Kubitschek, enquanto Albie posava para fotos tendo o monumento em forma de foice ao fundo, Vanessa, deitada na grama do outro lado da rua, checava as fotos em seu celular. Um casal simples. Por isso mesmo, tão elegante.

À noite, em sua quarta rodada de autógrafos, dessa vez para um grupo de intelectuais e juristas, Albie disse que estar em Brasília provocou nele emoções muito intensas, e que muito do que ele acredita vem de idealistas da América do Sul, como Gabriel García Márquez, Jorge Amado e Oscar Niemeyer.

Domingo, dia 30 de outubro, às 8h, o casal caminhava apressado rumo ao portão de embarque no Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek. Dali seguiriam para Belo Horizonte, depois Rio de Janeiro e, então, São Paulo, destino final antes do retorno à África do Sul. Conversavam entre eles, com Vanessa rindo e Albie enamorando-a. Ela, uma arquiteta apaixonada por liberdade. Ele, um guerreiro da liberdade apaixonado por arquitetura.

Quando os companheiros do ANC enviaram um bilhete prometendo vingar o atentado que Albie sofrera e lhe custou um braço e a visão de um olho, ouviram uma imediata resposta: "Vingar-me? Vocês vão matar pessoas? Vão arrancar os seus olhos? Vão cortar os seus braços? Não! Se vivermos juntos numa África do Sul democrática, eu terei a minha vingança suave e rosas e tulipas florescerão no meu braço decepado". Ele estava certo.

A mensagem poderosa deixada por esta grande figura pública tocou as mentes e os corações daqueles que, em Brasília, puderam ouvir um pouco da compreensão de mundo profundamente transformadora que Albie Sachs acredita e pratica. E, dessa mensagem, florescerão as rosas e tulipas que um dia ele anteviu nascer da sua própria dor e sofrimento. Assim ele muda o mundo por onde passa. E esse é o seu grande legado. Um legado que, agora, é nosso também.