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O Emendismo Constitucional brasileiro

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Atualizado às 08:22

Estamos na Emenda à Constituição de número 96. Não tardará para que cheguemos na primeira centena delas. Esse recorde, do qual muitos não se orgulham, precisa despertar alguma reflexão, pelo menos quanto à primeira de suas consequências: a constante necessidade de aferição da constitucionalidade de emendas à Constituição pelo Supremo Tribunal Federal.

As emendas correspondem à primeira das espécies normativas dos incisos (I a VII) do art. 59. Seu rito começa mediante proposta: I - de 1/3, no mínimo, dos membros da Câmara ou do Senado; II - do presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60, I, II e III).

Os limites procedimentais são: 1) as regras referentes à iniciativa da reforma (art. 60, caput, I, II e III); 2) o procedimento de discussão e votação (art. 60, § 2o); 3) a forma de promulgação (art. 60, § 3o); 4) a impossibilidade de reapresentação na mesma sessão legislativa de propostas de reforma rejeitadas ou prejudicadas (art. 60, § 5o).

Indo além, não poderá, a Constituição, ser emendada na vigência de intervenção Federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1º). São as limitações circunstanciais que se somam ao requisito da iniciativa.

Por fim, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir, dentre outros bens, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, III e IV). São limitações materiais que, no caso, abrem espaço para a configuração de violação, pela EC 96/2017, à Constituição.

São muitos os "ismos" na tumultuada trajetória brasileira. Colonialismo, coronelismo, caudilhismo e caciquismo. Agora, o emendismo.

Para Wellington Márcio Kublisckas, "(...) o fenômeno do emendismo constitucional teve um outro efeito bastante claro: o aumento vertiginoso da incidência de casos de controle de constitucionalidade sobre as normas constitucionais e, por conseguinte, da declaração da inconstitucionalidade - formal e material - de normas constitucionais1.

Emendas que, ao contrário de incrementarem a cultura de direitos ou aperfeiçoarem as instituições nacionais, meramente lidam com questões de pouca importância, contribuem para a negação da força normativa da Constituição à qual faz menção Konrad Hesse. O jurista alerta que a frequência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa. Isso porque é, a estabilidade, condição fundamental da eficácia da Constituição2.

Otto Bachof, em seu Normas Constitucionais Inconstitucionais?, autorizava as Supremas Cortes a aferirem a constitucionalidade das normas constitucionais.

No Brasil, a proposta de Bachof teve o amparo da Suprema Corte quanto às emendas à Constituição. Em 1994, a Corte julgou a ADI 830 (Min. Moreira Alves, DJ 16.9.1994), que questionava a EC 2/1992 (Plebiscito). O STF se definiu competente para, em controle difuso ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de emenda constitucional. Também que a emenda pode ser impugnada por violar tanto cláusulas pétreas explícitas como implícitas.

A partir daí, inúmeras emendas tiveram sua constitucionalidade analisada pelo Supremo: 1) EC 3/1993 (IPMF): ADI 939 (Min. Sydney Sanches, DJ 18.3.1994); 2) EC 16/1997 (reeleição dos Chefes do Poder Executivo): ADI 1805 MC (Min. Néri da Silveira, DJ 14.11.2003); 3) EC 20/98 (Reforma da Previdência): ADI 2024 (Min. Sepúlveda Pertence, DJe 21.6.2007); 4) EC 19/1998 (Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos): ADI 2135 MC (Rel. p/acórdão Ellen Gracie, DJe 6.3.2008); 5) EC 73/2013 (cria os TRF's da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões): ADI 5017 MC (Min. Luiz Fux, DJe 31.7.2013).

A possibilidade de o STF apreciar a constitucionalidade de emendas à Constituição, em potencial ofensa a cláusulas pétreas, é aceita por estudiosos como Oscar Vilhena, que anota: "Esse caminho - que tem a vantagem de justificar o controle judicial de emendas à Constituição em face das teorias procedimentais da democracia - deixa aberta certas frestas, por onde poderiam passar reformas inadmissíveis da perspectiva dos direitos humanos, do Estado de Direito e da própria democracia, se vista de uma perspectiva mais substantiva"3.

Mas a quem cabe a palavra final acerca da interpretação da Constituição? A qual dos Poderes do Estado - Legislativo, Executivo e Judiciário - cabe dizer, como palavra derradeira, qual o conteúdo das cláusulas pétreas? A resposta vem da lição clássica - memoravelmente imortal - de Rui Barbosa: "Pois, se da política é que nos queremos precaver, buscando a Justiça, como é que à política deixaríamos a última palavra contra a Justiça? Pois, se nos Tribunais é que andamos à cata de guarida para os nossos direitos, contra os ataques sucessivos do Parlamento ou do Executivo, como é que volveríamos a fazer de um destes dois poderes a palmatória dos Tribunais?"4.

Rui sabia o que dizia. Há mesmo virtudes em se dar à Suprema Corte a palavra final sobre a interpretação constitucional. Para Dieter Grimm, juiz aposentado da Corte Constitucional da Alemanha: "(...) uma instituição especializada na imposição da Constituição, já devido ao seu próprio interesse institucional, estará mais disposta a propiciar a validade à Constituição e também a poder transmitir ao público a importância da Constituição do que uma jurisdição constitucional integrada"5.

Também não pode se perder de vista a rigidez imposta pela Constituição quando do exercício de sua competência de guarda precípua da Constituição. O devido processo legal (art. 5o, LIV, da CF) é rigoroso quanto à declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por parte dos tribunais.

Segundo o art. 97 da Constituição, somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público. Trata-se de um dispositivo que impõe cautela para se derrubar o produto da atuação do Legislativo. O dispositivo também se aplica à Suprema Corte.

Além desse rigor procedimental, há, ainda, as virtudes da própria formação da Suprema Corte. Segundo o art. 101, o STF compõe-se de onze Ministros (colegialidade), escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade (experiência), de notável saber jurídico (sabedoria) e reputação ilibada (virtude). Os ministros serão nomeados pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado, numa robusta demonstração de harmonia entre os poderes. Suas decisões hão de ser fundamentadas com base na Constituição Federal.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei não é tarefa simples. Além do art. 97 (cláusula de reserva de plenário) à qual a Suprema Corte também está submetida, o art. 103, § 1º, da Constituição, diz que o procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido. O § 3º, por sua vez, determina que o STF cite, previamente, o advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. Participa, ainda, o Poder Legislativo e o Executivo que participaram da promulgação da lei ou ato normativo (art. 103, II e III da CF). Tudo para conferir vitalidade a ideia de check and balances e, além disso, enaltecer a relevância da legislação.

Portanto, o fato de ser a política a força bastante a alçar os representantes do povo ao apogeu da representação democrática e também ser o capital que alimenta a vivência de casas como o Congresso Nacional, não a torna forte o bastante para que os congressistas imunizem as emendas à Constituição quanto à possibilidade de questionamento de sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Isso, como se viu, tem sido frequente e se mostra como a primeira consequência inevitável da figura do emendismo constitucional brasileiro.

__________

1 Wellington Márcio Kublisckas. Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009, p. 214.

2 Apud, Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009, p. 214.

3 A Constituição e sua reserva de justiça: Um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 234.

4 Na clássica Oração perante o Supremo Tribunal Federal. Pensamentos e ação de Rui Barbosa, p. 169.

5 Grimm, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Coordenação e supervisão Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 195.