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"Diversidade é ouvir": a legitimidade no controle abstrato de constitucionalidade

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Atualizado às 08:42

"Diversidade é ouvir. A Constituição assegura que nós ouçamos. É nossa escolha fazê-lo graciosamente"1.

A exortação acima é do juiz da Corte Constitucional da África do Sul, Edwin Cameron, alguém cuja fascinante história de vida, feita de quedas e triunfos, inclui ser pobre, gay, soropositivo, cotista e filho de um presidiário.

Cameron foi um advogado combativo que ajudou a desmantelar o apartheid, um regime que privilegiava pessoas como ele, brancas. Tendo estudado por cotas ofertadas a jovens empobrecidos num apartheid em colapso, Cameron fala sobre diversidade a partir das vivências que experimentou. Seu brilhantismo fez com que Nelson Mandela o indicasse para o Tribunal Superior de Recursos. Depois, foi apontado para a Corte Constitucional sul-africana, onde segue como um ativo juiz até hoje.

Cameron lembra as palavras do seu Chief Justice, Mogoeng Mogoeng: "A nossa é uma democracia constitucional designada para garantir que os que não têm voz sejam ouvidos, e que mesmo aqueles que têm, caso não admitam os pontos de vista das minorias marginalizadas ou impotentes, pelo menos escutem"2.

As passagens de juristas sul-africanos encontram reverberação dogmática entre nós. A democracia constitucional plural do Brasil (Preâmbulo e art. 1o, V da Constituição) requer que as minorias sejam pelo menos ouvidas. Uma Suprema Corte que fecha as suas portas para grupos marginalizados da comunidade fica com muito pouco, ou quase nada, para fazer com a missão que a Constituição lhe deu.

É nesse contexto que apresento a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527, ajuizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos - ABGLT, de relatoria do min. Roberto Barroso, no Supremo Tribunal Federal, indicando, como preceitos constitucionais fundamentais descumpridos, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a proibição ao tratamento degradante e/ou desumano (art. 5º, III) e o direito à saúde (art. 196).

O fundamento da controvérsia é a aplicação dos arts. 3º, § §1º e 2º e 4º, parágrafo único, da Resolução Conjunta do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação nº 1/20143 (Resolução Conjunta 1/2014)4, que diz o seguinte:

"Art. 3º - Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.

§ 1º - Os espaços para essa população não devem se destinar à aplicação de medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo.

§ 2º - A transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico ficará condicionada à sua expressa manifestação de vontade.

Art. 4º - As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.

Parágrafo único - Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade."

A resolução tem sido aplicada divergentemente5.

O pedido da ADPF 527 é: "interpretação conforme a Constituição dos referidos dispositivos para assentar que: 'I - As custodiadas transexuais do gênero feminino somente poderão cumprir pena em estabelecimento prisional compatível com o gênero feminino; e II - As custodiadas travestis, identificadas socialmente com o gênero feminino, poderão optar por cumprir pena em estabelecimento prisional do gênero feminino ou masculino'"6 (peça 11).

Para a Advocacia-Geral da União, todavia, "a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais não se destina à representação de uma classe ou categoria profissional ou econômica determinada" (p. 5 da manifestação, peça 33)7.

O min. Roberto Barroso preferiu ouvir a ABGLT. Reconhecendo a legitimidade da associação8, Sua Excelência superou a jurisprudência do STF "para assentar como entidade de classe de âmbito nacional, aquelas que, tendo comprovado seu caráter nacional, reúnam membros unidos por vínculo de natureza econômica, profissional ou pela defesa de direitos de grupos minoritários e vulneráveis de que façam parte".

Antes, na Questão de Ordem na ADI nº 1037 (min. Moreira Alves, julg. 3/6/98), o min. Marco Aurélio defendeu a legitimidade da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil e, para tal, sustentou: "houve, quando dos trabalhos da Assembléia Constituinte, uma opção visando-se justamente a elastecer os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. O objetivo foi abrir a possibilidade, abandonando-se o nefasto monopólio do Ministério Público, da Procuradoria Geral da República, de ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade". Ficou vencido, mas não convencido. Optou por ouvir.

Em 2012, veio na ementa da ADI nº 4029 (min. Luiz Fux, DJe 27/6/2012):

"1. A democracia participativa delineada pela Carta de 1988 se baseia na generalização e profusão das vias de participação dos cidadãos nos provimentos estatais, por isso que é de se conjurar uma exegese demasiadamente restritiva do conceito de 'entidade de classe de âmbito nacional' previsto no art. 103, IX, da CRFB.

2. A participação da sociedade civil organizada nos processos de controle abstrato de constitucionalidade deve ser estimulada, como consectário de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, na percepção doutrinária de Peter Häberle, mercê de o incremento do rol dos legitimados à fiscalização abstrata das leis indicar esse novel sentimento constitucional."

No caso, o min. Luiz Fux registrou: "a manifestação da sociedade civil organizada ganha papel de destaque na jurisdição constitucional. Como o Judiciário não é composto de membros eleitos pelo sufrágio popular, sua legitimidade tem supedâneo na possibilidade de influência de que são dotados todos aqueles diretamente interessados nas suas decisões. Essa a faceta da nova democracia no Estado brasileiro, a democracia participativa, que se baseia na generalização e profusão das vias de participação dos cidadãos nos provimentos estatais".

Em 6/5/2015, na ADI nº 5291 (DJe 11/5/2015), o min. Marco Aurélio voltou à ribalta: "Acreditando que restringir o conceito de entidade de classe implica, ao reduzir a potencialidade de interação entre o Supremo e a sociedade civil, amesquinhar o caráter democrático da jurisdição constitucional, em desfavor da própria Carta de 1988, reconheço a legitimidade ativa do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor - IDECON".

De fato, a interpretação do inciso IX do art. 103 da Constituição Federal quanto ao conceito de "classe", reduz o acesso de grupos vulneráveis à justiça constitucional. Isso ficou claro na ADPF nº 54, que discutia a possibilidade de interrupção de gravidez. A ação não partiu de qualquer entidade ligada à causa da mulher, mas da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS.

Outro efeito colateral grave se viu na ADPF nº 172, quando a voz que se elevou na discussão do garoto Sean Goldman não foi a de nenhum dos muitos grupos ligados a um ou outro lado da discussão, mas a do Partido Progressista9. Um partido político inteiramente dissociado da temática familiar teve de intervir.

O reconhecimento da legitimidade da ABGLT para o ajuizamento da ADPF nº 527 se insere no excepcional quadro de hipervulnerabilidade das transexuais do gênero feminino e das travestis identificadas socialmente com o gênero feminino, encarceradas, no contexto de um país cuja Suprema Corte reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" no sistema carcerário (ADPF nº 347 MC).

Recentemente, o min. Ricardo Lewandowski liderou o posicionamento em defesa de mulheres presas com filhos a amamentar e admitiu a figura do habeas corpus coletivo: "o Supremo Tribunal Federal tem admitido, com crescente generosidade, os mais diversos institutos que logram lidar mais adequadamente com situações em que os direitos e interesses de determinadas coletividades estão sob risco de sofrer lesões graves. A título de exemplo, vem permitindo a ampla utilização da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)(...)"10.

Prosseguiu Sua Excelência: "É que, na sociedade contemporânea, burocratizada e massificada, as lesões a direitos, cada vez mais, assumem um caráter coletivo, sendo conveniente, inclusive por razões de política judiciária, disponibilizar-se um remédio expedito e efetivo para a proteção dos segmentos por elas atingidos, usualmente desprovidos de mecanismos de defesa céleres e adequados"11. Preferiu ouvir.

Então, arrematou: "Como o processo de formação das demandas é complexo, já que composto por diversas fases - nomear, culpar e pleitear, na ilustrativa lição da doutrina norte-americana (Cf. FELSTINER, W. L. F.; ABEL, R. L.; SARAT, A. The Emergence and Transformation of Disputes: Naming, Blaming, Claiming. Law & Society Review, v. 15, n. 3/4, 1980), é razoável supor que muitos direitos deixarão de ser pleiteados porque os grupos mais vulneráveis - dentre os quais estão os das pessoas presas - não saberão reconhecê-las nem tampouco vocalizá-los12".

No caso tratado pela coluna hoje, a ADPF é mais eficaz do que o habeas corpus coletivo, pois culmina com a fixação de uma tese dotada de efeitos erga omnes cujo desrespeito resultará em notícia direta ao STF, que zelará pelo seu cumprimento.

Logo, considerando as posições dos ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, a Constituição reclama que a Suprema Corte ouça a voz das minorias marginalizadas da comunidade. Por isso, a ABGLT e outras entidades de iguais matrizes devem gozar do reconhecimento da sua legitimidade para ajuizar ações do controle abstrato de constitucionalidade no STF.

O Preâmbulo da Constituição funda um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício da Justiça como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Essa exortação eleva iniciativas como essa ao patamar de forças necessárias a uma prestação jurisdicional que seja, nas palavras do jurista sul-africano Albie Sachs, "acessível, amigável e calorosa"13.

O inciso II do art. 1º da Constituição aponta como um dos fundamentos da República a cidadania; cidadania esta que, exercida à luz do art. 2º14, é vivida não apenas no Legislativo e no Executivo, mas, notadamente, no Judiciário.

A posição do min. Roberto Barroso na ADPF nº 527 nada mais é do que a viabilização do exercício de cidadania judicial, expressão do direito de petição e da inafastabilidade da jurisdição. Segundo a alínea 'a' do inciso XXXIV do art. 5º, "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder". O inciso XXXV, por sua vez, diz: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Trata-se de uma iniciativa de quem enxerga o Judiciário - e especialmente o STF - como um espaço público que realiza suas missões de modo inclusivo e participativo, potencializando o comando constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal").

O STF tem por missão assegurar, em tempos de incertezas, e quando as circunstâncias são hostis, os direitos dos grupos marginalizados. É desse exercício de cura das feridas da nossa sociedade, à luz da Constituição, que se alimenta a legitimidade da Corte. O inciso IX do art. 103 da Constituição não pode ser compreendido isoladamente. A Constituição é inclusiva. O STF é acolhedor. A sociedade é aberta. São raciocínios que abrangem a própria viabilidade processual da ADPF que, na hipótese, é o único veículo do controle objetivo de constitucionalidade capaz de, a partir da interpretação judicial dissonante da Resolução Conjunta nº 1/2014, proceder a uma orientação para todo o sistema penitenciário nacional e a todas as varas de execuções penais, para que não haja tratamentos anti-isonômicos na matéria.

Para acabar, vale honrar uma lembrança. Do lado de fora do plenário da Corte Constitucional da África do Sul, na cidade de Johanesburgo, há um painel com luzes de neon vermelhas e uma mensagem escrita em língua portuguesa: "A luta continua".

A expressão mostra para as pessoas que entram e saem da Corte, local destinado a ouvir súplicas por justiça constitucional, que não há descanso na jornada dos direitos fundamentais. Não pode haver retrocesso. Encerrando-se um ciclo, outro se inicia. Foi assim com as mulheres. Também com o povo negro. Não seria diferente com a comunidade LGBTI. Na concretização dos direitos da diversidade, combinados com os inúmeros elementos do controle de constitucionalidade brasileiro, a luta continua.

Como disse Nelson Mandela: "É longa a caminhada para a liberdade". Mesmo longa, ela começa com o primeiro passo. E esse passo já foi dado. A caminhada está em curso e não deve parar. Essa jornada, a partir do STF, há de ser inclusiva. Para isso, é fundamental ter em mente que, antes e acima de tudo, diversidade é ouvir.

__________

1 "Diversity is about listening. The Constitution ensures that we hear. It is our choice to do so joyfully", Edwin Cameron. Justice: A personal account. Cape Town: Tafelberg. 2014. p. 227.

2 "Ours is a constitutional democracy that is designated to ensure that the voiceless are heard, and that even those of us who would, given a choice, have preferred not to entertain the views of the marginalized or the powerless minorities, listen". Ibidem.

3 Publicada no DOU de 17/4/2014 (nº 74, Seção 1, pag. 1).

4 O Conselho Nacional de Combate à Discriminação - CNCD foi criado pelo Decreto nº 3.952/2001, pelo Ministério da Justiça, para a formulação e proposição de diretrizes de atuação governamental voltadas para o combate à discriminação e para a promoção e defesa dos direitos. Ao conselho compete participar na elaboração de critérios e parâmetros de ação governamental, assim como compete a revisão e monitoramento de ações, prioridades, prazos e metas do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - PNLGBT. Compõe-se paritariamente por 30 membros do poder público e da sociedade civil.

5 O art. 64, I, da Lei de Execuções Penais (lei 7.210/84) dispõe que "ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, no exercício de suas atividades, em âmbito federal ou estadual, incumbe propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito". O art. 1º do Decreto nº 7.388/2010, diz que o CNCD, tem por finalidade, respeitadas as demais instâncias decisórias e as normas de organização da administração federal, "formular e propor diretrizes de ação governamental, em âmbito nacional, voltadas para o combate à discriminação e para a promoção e defesa dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT".

6 Na peça 25 dos autos da ADPF 527, o GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero Aliança Nacional LGBTI, requerente a Amicus Curiae, defende "alas exclusivas para si nos presídios, como forma de preservação de sua dignidade e autonomia corporal e sexual".

7 Um ponto trazido pela AGU foi o de que essa discussão não deveria ocorrer no âmbito do STF, pois "a arguente deixou de especificar os atos do Poder Público impugnados no instrumento de procuração que acompanha a petição inicial, o qual se limita a conceder, genericamente, poderes para o ajuizamento de arguição de descumprimento de preceito fundamental perante essa Suprema Corte" (p. 17).

8 A esse respeito, anotou o min. Celso de Mello: "no desempenho dos poderes processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-relator, competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar". ADPF 45, monocrática em 29/4/2004, DJ 4/5/2000.

9 ADPF 172 (min. Marco Aurélio, julg. 2/6/2009, DJe 10/6/2009): "1. O Partido Progressista - PP formalizou esta arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada sentença proferida pelo Juízo da 16ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro no Processo nº 2009.51.01.018422-0, que tem, como autora, a União e, como réu, João Paulo Bagueira Leal Lins e Silva. Fê-lo ante a conclusão sobre o retorno do menor Sean Richard Goldman aos Estados Unidos, implicando a sentença a ordem de busca e apreensão caso, presente a tutela antecipada, o menor não venha a ser apresentado ao Consulado Americano na cidade do Rio de Janeiro, no dia de amanhã, até às 14h".

10 Página 155 do voto do min. Ricardo Lewandowski no HC 143.641.

11 Página 16 do voto do min. Ricardo Lewandowski no HC 143.641.

12 Anotou o min. Lewandowski: "Considero fundamental, ademais, que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsabilidade que tem com relação aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, passando a adotar e fortalecer remédios de natureza abrangente, sempre que os direitos em perigo disserem respeito às coletividades socialmente mais vulneráveis. Assim, contribuirá não apenas para atribuir maior isonomia às partes envolvidas nos litígios, mas também para permitir que lesões a direitos potenciais ou atuais sejam sanadas mais celeremente. Ademais, contribuirá decisivamente para descongestionar o enorme acervo de processos sob responsabilidade dos juízes brasileiros". Página 16 do voto no HC 143.641.

13 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95.

14 "Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".