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Conciliações no STF ressignificam justiça constitucional

terça-feira, 28 de maio de 2019

Atualizado às 08:35

Símbolos têm poder. E, com o poder que têm, se impõem sobre as pessoas, dirigindo seus comportamentos, ainda que contra suas vontades. Não é diferente no Supremo Tribunal. Na capital Federal, Brasília, desde 21 de abril de 1960, o edifício-sede fica na Praça dos Três Poderes, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto original de Lúcio Costa. É um prédio público repleto de símbolos. Como não poderia deixar de ser, trata-se de uma edificação que dá conforto a autoridades igualmente repletas de poder.

Na entrada, a estátua que personifica a Justiça, do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, em granito de Petrópolis e pedra monolítica. A Deusa, vendada e sentada - talvez no seu trono -, empunha, com a mão direita, uma espada. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ela confere o quão afiada está a lâmina. Esse é o símbolo escolhido para, diante dos olhos de todos os que entram e saem do Tribunal, representar a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio site da Corte explica:

"Em primeiro lugar, a espada é o símbolo do estado militar e de sua virtude, a barreira, bem como de sua função, o poderio. O poderio tem um duplo aspecto: o destruidor (embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maleficência e a ignorância, e por causa disso, tornar-se positiva); e o construtor, pois estabelece e mantém a paz e a justiça (CHEVALIER, 2002, p. 392). É aplicada contra a injustiça, maleficência e ignorância. Tornando-se positiva, ela estabelece e mantém a paz e a justiça. De acordo com Udo Becker (1999, p. 101), quando associada com o símbolo da Justiça, simboliza a decisão, a separação entre o bem e mal, sendo misericordiosa com o primeiro e golpeando e punindo o segundo. É a força máxima para punir o culpado e perdoar o inocente. (BECKER, 1999, p. 101)"1.

Segundo a descrição oficial, a espada mostra uma Justiça constitucional misericordiosa com uns e cruel com outros, punindo e golpeando, se preciso for. Esse elemento termina por habitar as moradas sem trancas do nosso inconsciente.

Na Coreia do Sul, no fundo do prédio da Corte Constitucional, em Seul, também há uma grande estátua. De bronze, ela traz um homem em busca da ordem constitucional, da verdade e da justiça. É o guardião da Constituição. Na mão direita, não há espadas afiadas, mas um código jurídico cravado sobre uma balança. Com a mão esquerda, ao contrário de acariciar uma lâmina, o Guardião arrebenta uma corrente que restringe as liberdades. Ele está em pé, não sentado num trono.

Tem mais. No continente africano, também se optou por símbolos que convidem ao engajamento consciente de cidadãos e cidadãs. Na Corte Constitucional da África do Sul, a porta de acesso ao edifício é imensa e pesada, de madeira, e traz, talhados, os dispositivos asseguradores dos direitos fundamentais, acompanhados de desenhos que iluminem o seu significado. A interpretação da Constituição há de começar e terminar por esses comandos, assim como as pessoas, para entrar e sair do prédio, precisam cruzar aquelas grandiosas portas de madeira.

Albie Sachs, que já integrou a Corte, diz o seguinte sobre o prédio: "Existe algo na arquitetura padrão dos tribunais que exala autoridade, que diz: 'Cuidado, o Estado está acima de você'. Contudo, nossa Corte não expressa poder, ela modera o poder"2.

Falou tudo. A jurisdição constitucional exercida por uma Suprema Corte não deve expressar o poder, mas moderá-lo, pacificamente, zelando pela sua autoridade.

O Preâmbulo da Constituição brasileira nos reconhece como uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". Somos da paz, não da guerra. Na ordem interna, e na internacional, primamos por soluções pacíficas.

Exemplo é o inciso VII do art. 4º, que diz que a República Federativa rege-se, nas suas relações internacionais, pelo princípio da "solução pacífica dos conflitos".

Trecho do art. 98, I, dispõe que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais, "competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo (...)". Mais expresso, impossível: conciliação.

Longe de impor cegamente o seu poder, sentada num trono, de posse de uma espada amolada, selecionando pessoas para misericórdia ou punição, o que se reclama de uma jurisdição constitucional humanista é a capacidade de, por meio da sua autoridade, inspirar em nós o que Lincoln chamava de "os anjos bons da nossa natureza".

A missão do STF nesse século é nos convidar a sentarmos juntos, numa mesa redonda - sem cabeceiras -, para olharmos reflexivamente para os nossos conflitos e, de boa-fé, e com esforço sincero, renunciarmos reciprocamente a questões individuais na busca de uma solução coletiva. Como diz o min. Ayres Britto, "uma saída para chamar de nossa"3.

É uma missão que dimana diretamente da Constituição, ao dispor, logo a partir do preâmbulo, sobre as soluções pacíficas das controvérsias - incluindo as judiciais -, a despeito de também haver, no Código de Processo Civil, vários comandos abrindo caminho para as conciliações (arts. 139, V, 487, III, 'b' e 932, I).

Mas a verdade é que a ideia de ter tribunais elevados buscando, no exercício do poder, a conciliação entre as partes, não é novidade. Ao pregar a paz pelo direito, Hans Kelsen anotou que "a jurisdição compulsória de um tribunal internacional não exclui um procedimento de conciliação". Ponderou ele que "O tribunal se torna competente apenas no caso de eventual malogro da conciliação"4.

Kelsen foi um juiz constitucional. Ele viveu a verdade, não a conheceu apenas nos livros que leu e escreveu. Ao fundar e compor uma Corte Constitucional - a da Áustria -, Kelsen percorreu o caminho, afastando-se da posição cômoda de apenas saber onde esse caminho ficava. Sabia sobre o que falava. E falou.

A ideia da conciliação, como elemento de paz no Direito, não está presente apenas na monumental obra teórica de Hans Kelsen. A prática constitucional na África do Sul, por exemplo, mostra que os juristas daquele país, fugindo da acomodação acrítica e automática de institutos jurídicos estrangeiros, optaram por desenhar de maneira criativa e original os seus próprios remédios processuais. A conciliação não foi deixada de fora. Pelo contrário. A ela se disse: bem-vinda!

Pierre De Vos anota que alguns instrumentos adotados pela Corte Constitucional "visam a direcionar os atores a agirem de uma maneira mais consonante com a noção de democracia participativa. Os tribunais podem usar esses remédios para ajudar a aprofundar a democracia e capacitar os cidadãos que podem facilmente se sentir alienados num estado burocrático"5. Foi assim que nasceu o "engajamento significativo".

Engajamento significativo é a forma que a jurisdição constitucional sul-africana encontrou para, fiel à sua história, persistir com a experiência adquirida com as práticas tradicionais do país, especialmente o hábito de aldeões se sentarem debaixo de árvores com membros da comunidade que estão em conflito para, arbitrando uma solução, apontar um caminho que inspire o sentimento de justiça, não de vingança. Também, uma forma de reparar laços sociais esgarçados por vendetas cotidianas. Não é à toa que o símbolo oficial da Corte Constitucional é uma árvore frondosa, com pessoas embaixo.

O engajamento significativo não raramente resulta na expedição, pela Corte, de uma ordem - ou interdito estrutural -, pela qual o Tribunal mantém a supervisão da implementação de sua decisão, das seguintes formas: (i) uma ordem obrigando o governo a tomar certas medidas para remediar uma situação ilegal; (ii) a exigência de que o governo apresente um relatório sobre as medidas que tomou ou pretende tomar para dar efeito à ordem; (iii) uma oportunidade para a outra parte ou partes comentarem o relatório; e (iv) a possibilidade de novas ordens judiciais, confirmando o cumprimento da ordem original ou concedendo mais tempo para o cumprimento integral da medida6.

No caso Joe Slovo Community, a Corte Constitucional da África do Sul concedeu um amplo interdito obrigatório, juntamente com uma ordem de supervisão relativa à provisão de habitação para pessoas que seriam despejadas de um acampamento ilegal. No caso Pheko, ordenou que o Município de Ekurhuleni apresentasse um relatório sobre as medidas que havia tomado para identificar terras para a transferência dos requerentes cujas casas haviam sido ilegalmente demolidas pelo Município7.

A Corte concedeu este remédio pela primeira vez no caso Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township and 197 Main Street Johannesburg v City of Johannesburg and Others8, ao declarar inconstitucional o ato administrativo de um município expulsar ocupantes ilegais sem primeiro se envolver com eles, individual e coletivamente, de forma significativa9. O engajamento foi um processo bilateral, no qual a Prefeitura e aqueles que estão prestes a se tornarem sem-teto conversam entre si de maneira significativa, a fim de alcançar certos objetivos, tais como: (a) saber quais as consequências do despejo; (b) se a cidade pode ajudar a aliviar essas terríveis consequências; c) se foi possível tornar o edifício em causa relativamente seguro e propício à saúde durante um período; (d) se a cidade tinha alguma obrigação com os ocupantes nas circunstâncias prevalecentes; e (e) quando e como a cidade poderia ou iria cumprir essas obrigações10.

Se a África do Sul tem o engajamento significativo, o Brasil tem a máxima consolidada em cada um de nós: "é conversando que a gente se entende". Nada mais natural do que o nosso jeito de ser compor a nossa forma de, à luz da Constituição, resolver conflitos judicializados ou pelo menos tentar conciliar posições divergentes.

O STF tem, na altiva sabedoria da sua prática, feito florescer uma expertise valiosa para o constitucionalismo global: a arte de conciliar partes que, pelas mais variadas razões, se veem em disputas cuja solução passa pela interpretação da Constituição.

Confira a coluna na íntegra.

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1 Disponível em: clique aqui.

2 Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95.

3 Disponível: Clique aqui.

4 Kelsen, Hans. A paz pelo direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 32.

5 South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 413.

6 No original: "A supervisory order - also referred to as a structural interdict - is an order in which the court retains supervision over the implementation of its order. Although a supervisory order may take many forms, it tipicaly consists of four elements: (i) an order compelling the government to take certain action to remedy an unlawful situation; (ii) a requirement that the government must submit a report on the steps that it has taken or intends to take to give effect to the order; (iii) an opportunity to the other party or parties to comment on the report; and (iv) the possibility of further court orders either confirming compliance with the original order or granting further relief", Constitutional litigation, Brickhill, J; Du Plessis, M; Penfold, Gp. Juta. Johannesburg, 2013, p. 124.

7 No original: "Nevertheless, the Constitutional Court has, more recently, granted supervisory orders in several cases. For example, the court in Joe Slovo Community granted an extensive mandatory interdict coupled with a supervisory order relating to the provision of housing to persons who were to be evicted from an informal settlement. More recently, the court in Pheko ordered the Ekurhuleni Municipality to file a report (confirmed on affidavit) regarding steps that it had taken to identify land for the relocation of the applicants whose homes had been unlawfully demolished by the Municipality. The order gave the applicants 5 days to respond the report", Constitutional litigation, Brickhill, J; Du Plessis, M; Penfold, Gp. Juta. Johannesburg, 2013, p. 124.

8 No original: "Some remedies are aimed at directing role players to act in a manner more in accordance with the notion of participatory democracy. Courts can use these remedies to help deepen democracy and empower citizens who can easily feel alienated from the bureaucratic state. One such a remedy is the remedy of meaningful engagement. This remedy is similar in effect to the structural interdict. The Constitutional Court granted this remedy for the first time in its judgement in Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township and 197 Main Street Johannesburg v City of Johannesburg and Others", South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 413.

9 No original: "In this case the Constitutional Court held that it would be unconstitutional for a municipality to evict unlawful occupiers without first engaging with them, individually and collectively, in a meaningful manner", South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 414.

10 No original: "In the same judgement, the Constitutional Court also stated that engagement is a two-way process in which the City and those about to become homeless would talk to each other meaningfully in order to achieve certain objectives. While there is no closed list of objectives, the Court explained further, the sorts of objectives that ought to be achieved when a city wishes to evict people who may be rendered homeless as a result of the eviction are as follows: (a) what the consequences of the eviction might be; (b) whether the city could help in alleviating those dire consequences; (c) whether it was possible to render the building concerned relatively safe and conducive to health for an interim period; (d) whether the city had any obligations to the occupiers in the prevailing circumstances; and (e) when and how the city could or would fulfil these obligations". South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 414.