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Sobre estrelas, turmalinas e a Constituição

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Atualizado às 10:38

Todos aqueles que entregam suas vidas para a elevada tarefa de interpretar textos jurídicos deveriam ler a obra "H. Stern: a história do homem e da empresa", da jornalista Consuelo Dieguez, publicada pela Editora Record. É um material profundamente estimulante aos humanistas. Há dor, beleza, desafios e triunfo. Há muita sabedoria também.

A obra não fala exatamente sobre pedras, mas como se faz arte a partir delas. Não apresenta um empresário somente, mas um judeu alemão refugiado que se tornou um apaixonado pelo Brasil. Não descreve episódios esparsos, pois o que faz é revelar uma rica biografia. Não constrói narrativas. Apresenta os fatos e eles, de tão marcantes, cantam por si. Traz uma mensagem que toca, transforma e merece ser levada adiante.

O véu inaugural cai com o capítulo "Noite dos Cristais", em alusão à madrugada de 9 para 10 de novembro de 1938, na Alemanha nazista. O engenheiro Kurt Stern está recostado em uma das mesas do escritório da sua empresa de instalações elétricas industriais, na cidade de Essen, na Renânia do Norte-Vestfália. Seu filho, Hans, de 16 anos, está de pé, com o rosto colado numa grande janela envidraçada. São judeus alemães.

Consuelo Dieguez rememora: "O saldo daquela noite de terror por toda a Alemanha foram 815 empresas totalmente destruídas e 7.500 saqueadas; 119 sinagogas incendiadas e mais 176 completamente destruídas; 20 mil judeus presos e levados para campos de concentração; outros 36 gravemente feridos e mais dezenas deles mortos por assassinato ou chacinados quando tentavam escapar do fogo".

A escritora segue expondo as faces do mal: "O governo do Terceiro Reich não só ignorou a violência - que secretamente estimulara através de instruções aos líderes da SS - como decidiu impor uma descabia penalidade à comunidade judaica. Através de um bizarro comunicado do Ministério da Fazenda, os judeus foram avisados de que seriam responsabilizados pelas pilhagens e destruição de suas próprias propriedades, 'em virtude de seus crimes abomináveis'".1

Gustav, pai de Kurt e, portanto, avô do jovem Hans, tinha uma linda casa, em Nassau, cidadezinha de veraneio entre Frankfurt e Wiesbaden, estação de águas onde a alta sociedade alemã se divertia. Era um chalé de três andares, com floreiras sob as janelas brancas que se abriam para um jardim gramado, sombreado por árvores frondosas que, na primavera, ficavam carregadas de flor. Na parte de trás do chalé, havia um imenso pomar onde Hans, criança, colhia maçãs.

Depois da madrugada de terror da Noite dos Cristais, autoridades nazistas comunicaram a Gustav que sua casa seria confiscada. Desolado, ele suicidou-se.2

Com a escalada do terror, a solução foi deixar o país. A família Stern parte para o Rio de Janeiro, de navio. Numa carta que enviou aos amigos, na Alemanha, Hans divide as emoções da chegada: "E, ao aparecer o símbolo do Rio, o Pão de Açúcar, sabia que não demoraria muito e eu seria um homem livre, uma emoção que não pode ser compartilhada depois de tudo o que sofri".3

"Eu seria um homem livre". No primeiro registro que fez sobre o Brasil, aquele jovem imortalizou a liberdade. A mesma liberdade prevista no Preâmbulo da Constituição de 1988 e que, pelo caput do art. 5º, parecia destinada a pessoas como ele: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Hans foi, por muito tempo, um "estrangeiro residente no país". Enquanto a Alemanha nazista privava pessoas como ele de tudo, até da própria vida, pelo mero fato de serem judeus - mesmo sendo, os Stern, alemães -, a Constituição brasileira de 1988 olha para o estrangeiro que aqui reside e entrega a ele a base da existência civilizada: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Não bastasse, elege como um dos objetivos fundamentais da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV).

Tudo o que os Stern queriam, naquele momento sombrio da história, era cumprir a vida dispondo dos direitos como esses assegurados pelo art. 3º, IV da Constituição de 1988, que cuida, acima de tudo, da vedação a preconceitos e discriminações.

Por isso o Brasil era para eles mais do que um esverdeado belo, exótico e um tanto selvagem. Seria o local onde ele viveria a vida em abundância. Tudo com liberdade, que hoje se desdobra no inciso XLI do mesmo art. 5º, ao dispor: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". Também no inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

Tempos depois, vieram os tesouros. "Dos duzentos pacotes cuidadosamente embalados na Alemanha, apenas vinte estavam intactos. ... a parte do carregamento que eles aguardavam com mais ansiedade - a biblioteca da família, que incluía uma coleção de livros raros e o acordeão de Hans - chegara intacta"4, anota Consuelo Dieguez.

Livros são o início, o fim e o meio. Sequer impostos podemos lhes impor. É vedado, como sabemos, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão (art. 150, VI, "d" da Constituição). A família Stern entregou suas esperanças a eles.

Em 1939, todavia, para se sustentar, tiveram de vendê-los. A livraria Kosmos, no Centro do Rio, tornou-se uma grande compradora daquelas obras sobre temas variados - de romances e ensaios filosóficos a tratados científicos.5

O livro de Consuelo Dieguez mostra que Hans Stern teve de se virar cedo. "Pela manhã e à tarde, trabalhava no armazém do tio. À noite, dedicava-se à filatelia."6 Em pouco tempo virou gerente do departamento de organização interna, criado para ele, com dois funcionários à sua disposição.7 Não era raro que se esquecesse de almoçar. "Trabalhava de oito a dez horas por dia, fora as quatro horas que perdia com o transporte de ônibus e bonde para ir e voltar do trabalho". Exercia o direito contemplado no inciso XIII do art. 5º da nossa atual Constituição: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".

Muito da obra revela a relação sublime entre Hans Stern e seu pai, Kurt. Um hiato de tristeza, todavia, se deixa conhecer quando Kurt foi convidado para dirigir uma usina hidrelétrica em Parnaíba, Piauí. "Aceitou a proposta por absoluta falta de opção. Com seu português precário, tinha dificuldades em se empregar e não podia se dar o luxo de recusar trabalho"8, explica Consuelo Dieguez. O dinheiro que mandava de Parnaíba viabilizara a mudança de Hans e da mãe da pensão onde moravam para um apartamento de quarto e sala na travessa Santa Leocádia, em Copacabana. Cobria a maior parte das despesas.9

A vida de Kurt em Parnaíba não era fácil. Contava com poucas pessoas com quem podia conversar em alemão e ganhava apenas o suficiente para viver e sustentar a mulher e o filho no Rio com o mínimo de decência. Jamais se queixou. Tinha feito alguns amigos e gostava de ajudar a comunidade onde vivia com seus conhecimentos de engenheiro. Virara, em Parnaíba, "uma simpática autoridade".10

Tempos depois, em 15 de agosto de 1942, já decidido a voltar para o Rio de Janeiro, algo impensável lhe ocorre. O Baependi, embarcação brasileira de passageiros e carga, fora torpedeada por um submarino alemão, deixando um saldo de 270 mortos. Imagens mostravam corpos queimados e desmembrados, rostos endurecidos com expressões aterrorizadas, bebês e crianças com as faces enterradas na areia. Um horror.

Posteriormente, mais quatro navios seriam atacados na costa nordestina pelo mesmo submarino, provocando a morte de mais de mil pessoas. Getúlio Vargas declarou guerra às potências do Eixo, na manhã do dia 22 de agosto. Cidadãos alemães, italianos e japoneses começaram a ser presos no Brasil, assim como fechadas as empresas desses países, e todos os seus bens confiscados pela polícia do Estado.11

Kurt estava em sua sala, na sede da usina elétrica, esvaziando as gavetas, quando um grupo de policiais armados o levou para a cadeia, em Teresina. Lá, foi trancado em uma cela com outros dois alemães. Os inimigos do Estado, além de Kurt, eram: um padre católico e o cônsul da Alemanha no Piauí. Kurt, de judeu fugido da Alemanha, se viu, no Piauí, na condição de preso como suspeito de "atividades antibrasileiras".12

Indignado, Hans enviou um telegrama ao governador do Piauí, explicando a diferença entre um alemão e um judeu refugiado alemão. O pai foi solto dias depois.

Kurt sempre se lembraria, às gargalhadas, daquele episódio. Consuelo Dieguez anota: "a prisão fora amena. Ele e seus compatriotas passaram o tempo jogando skat, um jogo alemão de baralho, semelhante ao bridge, e tomando cerveja".13

Em 1944, Hans se naturaliza brasileiro14. Gozou de seus direitos numa plenitude, como hoje determina o art. 12, § 2º da Constituição: "A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição". É como se a Constituição dissesse: no Brasil, seja brasileira nato, seja naturalizado, todos têm o direito à felicidade. São, ambos, irmãos no seio da nação.

Hans não era apenas um empresário. Era um homem que pensava o país. "O Brasil poderia prover o mundo inteiro com tesouros minerais, poderia alimentar com suas regiões de terras férteis toda a humanidade. Poderia..., se quisesse. Mas não quer", registrou. "Outra barreira era a precariedade da educação tanto básica quanto superior"15, disse mais adiante, deixando descoberta a sua fome por uma grandeza nacional.

A Constituição brasileira prevê, no art. 6º, que a educação é um dos direitos sociais. O art. 23, V constitui como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios "proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação". Tudo isso numa Constituição que trouxe o Capítulo III, Seção I: "Da Educação", cujo art. 205 diz: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". É, de certa forma, o sonho sonhado por Hans.

A desigualdade social igualmente o preocupava. "Mesmo no carnaval, a festa mais popular da cidade maravilhosa do mundo, ficava clara a marcante desigualdade entre classes"16, anotou. Interessante notar que a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais de regionais (art. 3º, III) não é apenas um dos objetivos fundamentais da República. A redução das desigualdades regionais e sociais constitui um dos princípios da ordem econômica (art. 170, VII) na Constituição do Brasil.

A obra segue. O encontro entre Hans e as pedras se deu na Cristab S.A., uma empresa de exportação de cristais de rocha e de pedras de cor na qual começou a trabalhar. Ele "tinha inglês e alemão fluentes, além de um francês bastante razoável - conhecimentos fundamentais para uma forma exportadora - e uma datilografia irretocável". Logo foi promovido a gerente.17

Por ter um temperamento sério e responsável, além de enorme curiosidade, Hans foi encarregado de comprar pedras e cristais para a empresa. Maravilhou-se com a variedade e o colorido daqueles minerais que ele nunca imaginara que pudessem existir.18 Turmalinas, topázios, águas-marinhas e ametistas..., ele passou a selecionar, analisar e comprar as pedras, aprendendo a distinguir as mais bonitas, as mais perfeitas e as mais valiosas. Isso o entusiasmou bastante.19 Era, talvez sem saber, um hermeneuta, um intérprete, alguém cuja missão e vocação são, a partir de uma matéria-prima, às vezes bruta, interpretar a realidade morta e estática dando-lhe vida e movimento.

Tempos depois, decidiu seguir o seu próprio destino. Por amor às pedras, vendeu por 200 dólares o seu acordeão. Com o dinheiro e mais um pequeno empréstimo bancário, abriu sua firma.20

Hans Stern trazia as pedras em consignação de lapidários e garimpeiros de Minas Gerais e as revendia no Eixo São Paulo, Porto Alegre e Salvador, além de exportá-las para os Estados Unidos. Passava muito tempo viajando, "em busca de novos clientes"21. Aos 27 anos, estava convencido de que as turmalinas verdes, rosas e azuis, os topázios dourados e as brilhantes águas-marinhas atrairiam os turistas americanos tanto quando o atraíram. Se para os nativos pareciam banais, para ele eram magníficas.22

Segundo o art. 20, IX, são bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo. O art. 22, XII da Constituição dispõe competir privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia. O § 3º assevera: "O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros".

Numa época em que não havia Código de Defesa do Consumidor, ele criou um "certificado mundial de garantia para suas pedras". Consuelo Dieguez anota: "O certificado era um instrumento absolutamente inovador no mercado brasileiro, que não deixava ao consumidor praticamente nenhum espaço para reclamação".23 Com a ideia, realizava, por antecipação, o inciso V do art. 170 da Constituição atual, que aponta como um dos princípios da ordem econômica "a defesa do consumidor".

O livro mostra momentos em que a empresa precisou demitir pessoas. Ricardo, filho de Hans, ao fazer as demissões, tinha o cuidado de "procurar saber se a pessoa era a única empregada da família, se tinha filhos, problemas de saúde ou outro agravante".24 Faz lembrar o art. 7º, I da Constituição: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos".

Há mais elementos fascinantes nessa história. A H. Stern era - e segue sendo - uma empresa bem feminina. Para Kurt, pai de Hans, "as mulheres eram mais dedicadas, mais sérias e mais fáceis de lidar do que os homens". Conforme a empresa crescia, as mulheres foram ocupando cargos executivos.25 Vivia-se o que hoje está no inciso I do art. 5º da Constituição: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Também, do inciso XX do art. 7º, que dispõe serem direitos dos trabalhadores, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei".

Mas não se tratava apenas de proporcionar empregos às mulheres. Hans vivia a verdade e percorria o caminho em tudo o que fazia. Consuelo Dieguez mostra que ele "se impressionava como os jornais noticiavam diariamente agressões contra as mulheres perpetradas pelos seus maridos, amantes e namorados. E não se conformava com o fato de esses casos violentos serem chamados de 'crimes de amor'".26 Trazia, dentro de si, como se fosse uma pedra preciosa abrigada no peito, o art. 5º, III da Constituição, segundo o qual "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".

No fundo, o Brasil de Hans Stern é o descrito pelo preâmbulo da Constituição de 1988, formado por uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos".

O livro também mostra que a H. Stern sempre oferecia algo novo ao mercado.27 Hans jamais opunha resistência às ideias dos mais novos.28 Uma vez mais abraçava um ideal constitucional atual. Como consta do Capítulo IV da Constituição, dedicado à Ciência, Tecnologia e Inovação, "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação" (art. 218). Mais do que isso, há a liberdade de inovar, assegurada no inciso IX do art. 5º, que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

Se os brasileiros desprezavam suas pedras por considerá-las de menor valor, os estrangeiros se encarregavam de comprar grandes quantidades delas. E, ao transformar as pedras em joias, com ouro da melhor qualidade e acabamento de primeira, Hans conseguiu "provar para o mundo que chamar de semipreciosas as intensas águas-marinhas, os citrinos cintilantes, os topázios com paleta de cor infinita e as deslumbrantes turmalinas era uma heresia". Ele tratou de "abolir o termo e ao dizer que, da mesma forma que não existe uma pessoa semi-honesta ou semigrávida, não existe pedra semipreciosa".29 Amava verdadeiramente o Brasil.

Não bastasse - e o que vimos até aqui já é extasiante -, a H. Stern nasceu cosmopolita. Houve um dia em que recebeu mais de mil turistas em um mesmo dia. Foi no carnaval de 1951.30

Num mundo de líderes e liderados que têm ojeriza ao estrangeiro, Hans, que soube o que era a xenofobia, recebeu-os de braços abertos. Tudo em sintonia com a Constituição atual, a exemplo do que diz o art. 207, § 1º: "É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei". Também, o art. 218, § 7º: "O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput".

Orientado por Kurt, Hans acreditava que a cultura da empresa tinha que ser a do comprometimento e da cooperação31. Acontece que hoje em dia, um dos princípios pelos quais se rege a República nas suas relações internacionais é o da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX). Nenhum funcionário jamais o viu levantar a voz ou destratar quem quer que fosse.32 A "única coisa que ele jamais perdoava era a desonestidade"33, anota Consuelo Dieguez.

A obra mostra que a H. Stern montou uma área de recurso humanos, instituiu benefícios e criou uma fundação para os funcionários.34 Realizava, numa antevisão, o art. 6º da Constituição: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

Mas, se há pedras, há pedreiras e o senhor Hans teve de enfrentar as suas. Em 1963, com dificuldades de caixa, o governo de João Goulart precisava aumentar a arrecadação federal. Colocou no comando do Serviço Federal de Prevenção e Repressão de Infrações contra a Fazenda Nacional (SFPR) da Guanabara, o general Francisco Saraiva Martins, o "general Saraiva".35

A H. Stern, de grande visibilidade, virou um dos alvos favoritos do militar. Logo a turma encarregada da fiscalização "formou uma gangue e transformou expropriações em um negócio rentável para o grupo".36

Certo dia, ao receber a decisão judicial que dava ganho de causa à H. Stern e determinava a devolução de mercadorias irregularmente apreendidas, o general voltou cedo com os fiscais para apreendê-las novamente. Um dos diretores da H. Stern, Stefan Barczinski, proibiu a entrada. Os funcionários, ao saberem da chegada dos fiscais, cercaram o prédio, impedindo que subissem. O general chamou uma tropa do Exército para invadir a H. Stern, em vários andares do prédio da avenida Rio Branco. Com a empresa ocupada, ligou para Leonel Brizola, seu amigo e então apresentador de um programa popular na rádio Mayrink Veiga, o Grupo dos Onze. Brizola, aos brados, chamava os donos da empresa de "espoliadores da nação".37

A obra de Consuelo Dieguez se desenvolve bem, chegando a informar que os quatro meninos de Hans casaram-se, tiveram filhos, separaram-se e casaram-se novamente. Roberto é pai de uma menina; Ronaldo, de dois rapazes e uma moça; Ricardo, de um rapaz e duas meninas; e Rafael, de duas meninas. Como dizem, a exigência para trabalhar na empresa é a seguinte: "dar duro e trabalhar de verdade".38

Hans Stern, apesar de tudo o que sofreu com o nazismo, jamais deixou de amar a Alemanha. Tanto que, após Israel, foi o segundo país a ter lojas da H. Stern quando elas se expandiram para além das Américas.39 Soube distinguir e perdoar.

A obra começa e termina com a imaculada relação entre Hans e seu pai, Kurt. Fora o pai quem lhe transmitira valores "como respeito ao próximo, lealdade e capacidade de resistir". Com Kurt, Hans aprendera a apreciar "a vida, a música, a poesia e a literatura e a jogar xadrez".40 Uma carta prova isso. Nela, Kurt abre a correspondência tratando o filho assim: "Meu querido Hans, meu filho, meu amigo, meu fiel camarada das horas difíceis". A partir daí, oferece um punhado de pedras filosóficas preciosas repletas de sabedoria:

"Um ditado de Goeth: 'A vida, seja como for, é bela'".41

"Não podemos esquecer a ambição de subir e melhor a situação."

"Aja espontaneamente somente quando as coisas forem boas e, fora disso, com reflexão e retardo."

"A honestidade e as atitudes decentes sempre devem vir em primeiro lugar, mesmo que, ao primeiro momento, pareçam desvantajosas."

"Seja econômico, mas não mesquinho!"

"Domínio de si próprio em todas as coisas."

"Não deixe que nada se torne fanatismo!"

"Nós, os humanos com certa instrução intelectual, necessitamos, para a verdadeira alegria da vida, de outra ferramenta, ou seja, da cultura e do aperfeiçoamento intelectual."

"Esta esperança e a confiança firme nunca nos devem deixar, nem mesmo nas piores horas."

"Estamos entrelaçados uns com os outros."

"Se você se tornar um bom conhecedor dos homens, evitará desilusões, não ficará mais aborrecido com aqueles que lhe fazem maldades."

"Amigos e amigas também fazem parte da vida daquele que não quer passá-la como um eremita, mas sim como um homem saudável, natural, que se alegra com a vida."

"Não se esqueça de pensar sobre como poderá alegrar outra pessoa, seja pela personalidade, sociabilidade, camaradagem ou solicitude."

"O conhecimento de que a vida é maravilhosa e a vontade de torná-la bela ajudarão você a ultrapassar as muitas horas desagradáveis que não são poupadas a ninguém."42

A carta foi escrita em Parnaíba, no Piauí, em 26 de agosto de 1940, por ocasião do aniversário de 18 anos de Hans. Foi o presente possível naquele momento da vida. Um presente de extraordinário valor. Kurt morreria em janeiro de 1964. Viveu para "o bom e o belo". Para ele, "o equilíbrio entre o hedonismo e a contemplação ornava com a arte de viver."43

A obra "H. Stern: a história do homem e da empresa", da jornalista Consuelo Dieguez, convida todos nós a entendermos por que o mundo é tão fascinado pelas estrelas. Estas existem para dar beleza àquilo que, sem sua presença, seria apenas enfado, vazio e escuridão. Estão, como podemos ver, sempre no topo, acima, no alto. Iluminam e fascinam. Vivemos a contá-las e a fazer desejos encantados pelo seu brilho.

Não à toa, em alemão, a palavra estrela é traduzida para "Stern".

Na manhã do dia 27 de outubro de 2007, foi a vez de Hans Stern partir, aos 85 anos de idade. Eis a declaração que abre a sua Carta-testamento: "Eu tive uma vida feliz".

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1 Dieguez, Consuelo. H. Stern: a história do homem e da empresa. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 12.

2 Ibidem, p. 19.

3 Ibidem, p. 34.

4 Ibidem, p. 57.

5 Ibidem, p. 74.

6 Ibidem, p. 61.

7 Ibidem, p. 62.

8 Ibidem, p. 74.

9 Ibidem, p. 89.

10 Ibidem, p. 95.

11 Ibidem, p. 106.

12 Ibidem, p. 106.

13 Ibidem, p. 106.

14 Ibidem, p. 110.

15 Ibidem, p. 79.

16 Ibidem, p. 84.

17 Ibidem, p. 89.

18 Ibidem, p. 89.

19 Ibidem, p. 91.

20 Ibidem, p. 111.

21 Ibidem, p. 112.

22 Ibidem, p. 113.

23 Ibidem, p. 114/115.

24 Ibidem, p. 196.

25 Ibidem, p. 116.

26 Ibidem, p. 66.

27 Ibidem, p. 123.

28 Ibidem, p. 194.

29 Ibidem, p. 123.

30 Ibidem, p. 127.

31 Ibidem, p. 131.

32 Ibidem, p. 131.

33 Ibidem, p. 132.

34 Ibidem, p. 141.

35 Ibidem, p. 149.

36 Ibidem, p. 150.

37 Ibidem, p. 151.

38 Ibidem, p. 255.

39 Ibidem, p. 153.

40 Ibidem, p. 74.

41 Ibidem, p. 97

42 Ibidem, p. 99.

43 Ibidem, p. 48.