A derrota de Roosevelt pela Suprema Corte
terça-feira, 15 de abril de 2025
Atualizado em 14 de abril de 2025 13:28
Até os muito grandes podem se apequenar. No apogeu do seu tempo, atados pelo poder e vendados pelos aplausos, líderes incontestes também se permitem a licença de sucumbir a estratégias mal concebidas capazes de minar sua credibilidade e prestígio.
Foi o que aconteceu com Franklin Delano Roosevelt, o FDR, a lenda americana (talvez a maior). Herói de guerra, ajudou a derrotar Adolf Hitler e assegurar um mundo livre para as futuras gerações. Passou 12 anos como presidente dos Estados Unidos, sendo o único a conseguir o feito de desfrutar de três mandatos. Vítima de poliomielite, liderou, numa cadeira de rodas, a saída do seu país da pior crise econômica de toda a sua longeva história. Seria, Roosevelt, invencível? Não. FDR foi derrotado uma vez: quando tentou enfraquecer a Suprema Corte.1 Uma derrota acachapante cujos bastidores foram narrados por Roy Jenkins de forma cativante e que ilustram inteiramente esse texto.2
Em 9/3/1937, escancarando toda a sua insatisfação com as decisões da Suprema Corte que derrubavam leis do seu plano de recuperação econômica, o New Deal, FDR diz o seguinte: "descrevi a forma americana de governo como uma parelha de três cavalos dada pela Constituição ao povo para que seu campo pudesse ser arado. Os três cavalos são, naturalmente, os três poderes do governo - o Congresso, o Executivo e os Tribunais. Dois dos cavalos estão puxando na mesma direção hoje; o terceiro, não".3
Jenkins explica que "a maior derrota política de Roosevelt foi sua desajeitada tentativa, na primeira metade de 1937, de reformar (alguns diriam subjugar) a Suprema Corte". Fez isso justificando hipocritamente que o Tribunal "não conseguia dar conta de suas tarefas e que uma administração eficiente exigia a designação de mais um juiz para cada juiz com setenta anos ou mais". Queria manipular a sua composição.
A derrota foi "rica em paradoxos". Roy Jenkins explica que, primeiramente, ela ocorreu logo após a grande vitória obtida nas urnas em novembro anterior. Depois, na batalha de cinco meses que se travou entre fevereiro e julho (que será explicada adiante), "Roosevelt, o mestre da política, cometeu erro após erro, enquanto a Corte de 'cavalo e carroça', com seus juízes idosos e obscurantistas, jogou brilhantemente suas cartas defendendo-se". Ele conclui: "numa aliança com o Senado que nada tinha de inevitável, aniquilou a mais importante das primeiras propostas (de encurralar a Suprema Corte) do mais poderoso presidente da história americana".
Um líder como Roosevelt subestimou a capacidade de resiliência de uma Suprema Corte unida e dedicada ao propósito de se autopreservar. FDR olhou, mas não viu.
Jenkins lembra que no final de 1936, os juízes da Suprema Corte tinham declarado leis do New Deal inconstitucionais em sete dos nove casos que lhes foram submetidos:
"Em 3/2/1937, (o presidente Franklin Delano Roosevelt) ofereceu o tradicional jantar na Casa Branca para os juízes da Suprema Corte, mas não deixou transparecer o que planejava. Dois dias depois anunciou sua proposta para o seu ministério, que a recebeu submissamente, e aos líderes no Congresso, que se mostraram muito menos dispostos a apoiá-la. O vice-presidente Garner também não demonstrou entusiasmo. O mesmo ocorreu com muitos outros, inclusive o presidente do Comitê de Justiça da Câmara dos Deputados e o senador Burton K. Wheeler, de Montana, talvez a mais importante figura presente, que nos últimos quatro anos tinha sido um dos mais confiáveis defensores do New Deal, mas que não gostou do projeto sobre a Corte".
Os opositores do plano de Roosevelt de manipular a composição da Suprema Corte reconheciam que havia um problema na atuação do Tribunal quanto ao New Deal, mas consideravam a forma pela qual o Presidente agiu, infeliz, e, "numa espantosa crítica ao mestre da política, julgaram que ele deixara a desejar em termos de sutileza".
Também se ressentiam da falha de FDR por não haver consultado previamente o Congresso acerca de suas intenções. Em consequência, as forças da pretendida reforma rapidamente se desarticularam. Já as da resistência foram conduzidas com habilidade. "Os juízes reduziram drasticamente o seu grau de exposição", recorda Jenkins.
Entre 29/3 e 24/5 de 1937, os juízes da Suprema Corte reputaram constitucionais uma lei de salário-mínimo do Estado de Washington, uma lei de hipoteca rural e as disposições sobre dissídios coletivos da lei trabalhista das ferrovias (railroad labor act). Em seguida, validaram a lei das relações trabalhistas nacionais (national labor relations act) e a lei da previdência social (social security act).
A repentina onda "progressista" se deveu mais a uma estratégia política do que aos rigores da hermenêutica jurídica, pois uma série delas contrariava decisões anteriores. Acontece que, estrategicamente, a Corte minava as forças de Roosevelt em seus ataques.
Esse episódio, no qual a Suprema Corte reviu sua posição e passou a manter o New Deal por estreitas margens, contornando politicamente a crise, ficou conhecido como "the switch in time that saved nine" (a mudança em tempo de salvar nove).4
O presidente dos Estados Unidos justificou enganosamente o seu desejo de aparelhar a Corte. Roy Jenkins lembra ainda que ele havia dito que a lista dos casos pendentes de julgamento tinha de ser reduzida e, na exposição de motivos, insinuara que os juízes mais velhos eram lentos (além de incompetentes). A justificativa não caiu bem ao presidente da Corte (que tinha 75 anos), nem para Louis Brandeis, com 88.
Quem disse que pessoas idosas não dão conta? Ruth Bader Ginsburg exerceu a alta judicatura nos Estados Unidos até perto dos 90; Albie Sachs, hoje com 90 anos, e tendo servido a Corte Constitucional da África do Sul, segue proferindo suas palestras extasiantes em todo o mundo; e Aharon Barak, perto dos 90, se colocou perante um Tribunal Internacional para defender Israel da acusação de genocídio.
Os ataques à Suprema Corte ficaram ainda pior quando o chief justice Charles Hughes, apoiado por Louis Brandeis e por outro juiz, Willis Van Devanter, declarou à Comissão de Justiça do Senado que a Corte estava absolutamente em dia com suas obrigações e que mais juízes provocariam atraso nos trabalhos do Tribunal.
Em 18 de maio, aquela Comissão, a despeito da ampla maioria democrata, rejeitou o projeto de lei por 10 a 8. No mesmo dia, Van Devanter renunciou, abrindo a primeira oportunidade para Roosevelt indicar um membro à Corte, pois ao longo do primeiro mandato todos os nove juízes tinham gozado de plena saúde e se negavam a renunciar.
Roy Jenkins recorda que não apenas Van Devanter, mas também George Sutherland, juiz igualmente conservador, teria renunciado mais cedo ao cargo, se uma lei proposta por Roosevelt, em 1933, não tivesse reduzido a remuneração vitalícia dos juízes aposentados de 20 mil para 10 mil dólares anuais.
FDR prometera a primeira vaga na Corte a Joseph T. Robinson, do Arkansas, líder da maioria no Senado. Mas em 14/7 Robinson foi encontrado morto no chão de seu banheiro em Washington. Com a morte, morreu também o projeto que encurralava a Suprema Corte, "embora Roosevelt tenha levado quatro semanas para reconhecer o fato".
Para a vaga de Van Deventer, o presidente indicou o jovem senador Hugo Black. A partir daí, nos anos que se seguiram, as vagas na Suprema Corte se sucederam "como a queda das folhas no outono", explica Jenkins.
O presidente pôde indicar seu próprio procurador-geral Stanley Reed; Félix Frankfurter, de Harvard; William O. Douglas, de Yale; o secretário de Justiça Frank Murphy; o senador James Byrnes, da Carolina do Sul; e Robert Jackson. Em 1941, só restavam dois juízes não indicados por Roosevelt: Harlan F. Stone e Owen Roberts.
Roy Jenkins encerra sua feliz análise assim: "o paradoxal desfecho da malfadada aventura de Roosevelt sobre a Suprema Corte é que terminou com um grupo de juízes que não mais contestariam suas iniciativas, mas com um Congresso muito mais relutante em aprová-las, nunca respondendo automaticamente ao que a Casa Branca ditava".
Para alguém da dimensão de FDR, o que se deu foi uma baita derrota seguida de um péssimo efeito colateral. Ao mirar a Suprema Corte, perdeu o Congresso Nacional. Tudo isso por achar que confrontos abertos e diretos contra o órgão de cúpula do Poder Judiciário seriam facilmente exitosos. Supremas Cortes são casas pequenas, cujas dissensões são rapidamente suplantadas quando o coletivo se imagina em risco. Seu poder de articulação, em regra contido, pode ser expandido agilmente, a partir de ingressos repentinos de juízes e juízas no tabuleiro da política em busca de proteção mútua.
Quanto mais estável for a democracia do país, mais difícil é ser bem-sucedido em aventuras como essa. Mesmo o inigualável FDR, no cume da sua história, caiu da ribanceira, tendo sucumbido à astúcia de uma Suprema Corte resiliente.
1 Schwartz, Bernard. A history of the Supreme Court. New York: Oxford University Press, 1993, p. 233.
2 Jenkins, Roy. Roosevelt. Completado com a colaboração de Richard E. Neusdadt. Tradução Gleuber Vieira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 110-115.
3 Disponível aqui.
4 Baum, Lawrence. A Suprema Corte Americana. Tradução de Élcio Cerqueira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 42.