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Bolsonaro: fatos verdadeiros, realidade profunda

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Atualizado às 08:01

A democracia por aqui não se exerce de fato pela via eleitoral,
mas pela possibilidade concreta de exercer o poder obtido nas urnas
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Ensina o lendário fotógrafo Henri Cartier-Bresson que "em si mesmos os fatos não oferecem interesse. O importante é escolher entre eles; captar o fato verdadeiro em relação à realidade profunda". Pois é: o fato verdadeiro é que o deputado Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da República. Já a "realidade profunda" dessa eleição de 2018 dependerá da sedimentação dos fatos doravante e daquilo que constitui a sociedade, seus valores e formas de representação.

A eleição deste ano decorreu com elevado grau de polarização entre o petismo e o antipetismo, renovação elevada da elite política no Congresso Nacional, tendências conservadoras nos costumes e o uso direto do apelo religioso para cabalar votos. No segundo turno o confronto de ideias entre o vencedor da eleição e seu contendor Fernando Haddad foi limitadíssimo dada a ausência de debates entre eles. Perdeu o país, por certo.

Também há de se destacar o fato de que nesse pleito "adversários" se tornaram "inimigos". Não precisa ser doutor em linguística para interpretar o sentido violento e chulo das palavras emitidas, notadamente pelo presidente eleito. Seu discurso de quando eleito nada sinaliza no sentido da conciliação nacional.

A vitória do ex-capitão será teste relevante para o país. O novo presidente terá de lidar politicamente com as mesmas forças sociais que apoiaram o PT, seja na sua feição lulista ou que vivenciaram o fracasso econômico de Dilma Rousseff e que estão a demandar larga mudança no ordenamento estatal para que a democracia formal (do ponto de vista jurídico) se torne uma democracia fundada em preceitos econômicos mais igualitários. Do ponto de vista factual, a multidão elegeu o 8º presidente pós-regime militar, mas a demanda mudancista permanece intacta. Ressalte-se que, nesse estágio da democracia brasileira, não são poucos os riscos e dificuldades no que tange às "regras do jogo", à sustentação fiscal do Estado frente as demandas feitas pela sociedade, à incompetência do Estado e seus agentes e à marginalização dos partícipes da democracia devido à ignorância funcional generalizada pelo país. Ademais, o ex-capitão nasce como fruto daquilo que foi o PT no governo e o PSDB na oposição. O centro político foi perdido.

De saída, antes mesmo de sua posse, Jair Bolsonaro terá de confirmar sua vertente democrática em vista das severas dúvidas que estão dispostas na cena política sobre o tema. As perguntas são amplas e abertas: como lidará o novo presidente com a participação ativa das forças sociais? Suas escolhas quanto a organização do governo será capaz de descentralizar o poder, seja do ponto de vista federalista, seja do ponto de vista do próprio executivo? Como harmonizará o novo mandatário com a multiplicidade de instituições estatais, sobretudo com o Judiciário e Legislativo? Como será integrado o ambiente interno e externo do Brasil, sobretudo quando a credibilidade do candidato Bolsonaro é questionada mundo afora? Como será o relacionamento do presidente com a mídia?

Diante dessas acentuadas dúvidas, a vigilância, da oposição formal no Congresso até as organizações sociais, será provavelmente muito presente e ativa. A redução dessas tensões é missão imediata e necessária para confirmar o caráter democrático das pretensões do novo presidente ao longo dos próximos quatro anos.

Os temas relacionados à afirmação democrática do presidente dependem essencialmente dele próprio no campo da retórica e dos comandos que emitirá para aqueles que com ele seguem para exercer o governo. Já do ponto de vista do exercício do poder, Bolsonaro deverá se ater às considerações concretas e instrumentais.

Na atual e atribulada democracia brasileira, o processo decisório, interno e externo ao executivo é policêntrico, dependente de várias camadas de decisão e, no que tange ao Legislativo, sem consistente maioria, conforme verificamos nas últimas administrações. De fato, as "regras do jogo" no relacionamento externo do Executivo e com o Legislativo, tem por marca fundamental a formação de uma maioria desorganizada em termos de objetivos e organizada em termos de forma de agir. Os partidos políticos brasileiros são desprovidos de programas e de quadros intelectuais que sejam capazes de fazer uma crítica consistente e consequente no que se refere às políticas públicas desde a sua fase de concepção. Não à toa, a qualidade das normas emanadas das casas legislativas é de baixa qualidade porquanto mitigadas pelos interesses que cercam os debates sobre elas e também sem a crítica do ponto de vista do interesse geral e comum. Reina a desorganização no debate. De outro lado, os representantes do povo e dos estados são extremamente organizados em torno de interesse próprios, patrimoniais e clientelistas. Dos cargos que negociam para si e para outros até os pedidos nada republicanos há longa cadeia organizada para negociar com o presidente o cumprimento dos fins do governo por meio do atendimento a certos interesses. Essa é a natureza da nossa democracia representativa.

Romper com esse "método político" requererá, da parte de Bolsonaro, o abandono das reformas econômicas essenciais para colecionar lutas tipicamente políticas, tais como, sobre a organização partidária, a formação da base política do governo, novas regras sobre o processo eleitoral e assim por diante. Como se vê, uma agenda importante, mas bem distante das demandas mais urgentes das classes econômicas e sociais.

Ora, se é improvável que Bolsonaro se volte às reformas estruturais que gerem inflexão da atual classe política na direção de uma democracia mais eficiente do ponto de vista de seu funcionamento, temos de verificar como o novo governo agirá em relação a formação dessa maioria desorganizada em termos de objetivos e organizada do ponto de vista de seus próprios interesses. O poder real de qualquer presidente no contexto político do Brasil depende da solução (ou não) dessa equação. A democracia por aqui não se exerce de fato pela via eleitoral (fato), mas pela possibilidade concreta de exercer o poder obtido nas urnas (realidade profunda).

Os fatores positivos em favor do novo presidente para a estabilização político-partidária de seu governo são: (i) o fato de que poderá compor no Legislativo, a partir de seu partido mais engrandecido (segunda maior bancada com 52 deputados, 4 senadores), com partidos com grandes bancadas (PP, MDB, DEM, dentre os principais) normalmente aderentes ao governo e (ii) o fato de ter havido enorme renovação na "elite" política o que pode criar ambiente mais amigável para a negociação. Negativamente, pesa contra o novo presidente (i) a desorganização ideológica dos partidos no sentido das reformas pretendidas pelo governo e (ii) a continuidade de representantes "corporativistas" contra as reformas, caso dos servidores públicos, para citar um exemplo. Aqui, vale registrar a presença na cena dos militares enquanto agentes políticos sobre os quais pouco se pode prever ou analisar por enquanto. Fato novo e sensível.

Também, temos de notar, que o novo presidente terá de lidar com a sua própria minoria, aquela que exercerá o poder no Executivo. Já se verifica dentro da própria estrutura de poder que cerca o presidente a luta de grupos igualmente minoritários cujas concepções devem se chocar. A título de ilustração, há aqueles que creem em "setores e empresas estratégicas" necessárias ao Brasil e, de outro lado, há os ultraliberais privatistas para quem o estratégico se resume a "Estado mínimo". Formar a maioria dessa minoria que dirigirá o Executivo é tarefa mais complexa que nos ilustra a mídia face às lutas intestinas ao poder.

Do ponto de vista econômico também há importante mudança no cenário. Os agentes econômicos nas principais economias do mundo começam a registrar expectativas mais deterioradas em relação ao crescimento econômico. Isso deriva do fato de que a elevação dos juros primários dos EUA começa a produzir os primeiros efeitos sobre a concessão de crédito bancário e nos custos das emissões de dívida e, assim, espera-se uma queda da atividade econômica. Não se trata, contudo, da expectativa de recessão ou da configuração de um cenário de colapso financeiro e econômico como foi o caso de 2008. Todavia, 2019 apresenta expectativas mais deterioradas para as economias centrais. Basta ler os informes mais recentes do FMI.

Do ponto de vista das economias emergentes, o impacto da desaceleração das economias desenvolvidas deve ser mais relevante. Nesse ponto, o destaque é a China sobre a qual já se espera crescimento mais moderado do seu PIB. Também é o caso da Índia e dos demais países emergentes.

O efeito desse cenário mais pessimista já é sentido no mercado financeiro e de capital. As principais bolsas de valores estão extremamente voláteis nas últimas semanas e a queda do preço dos ativos é notada em quase todos os segmentos. O Brasil é exceção nesse contexto porque a eleição do novo presidente foi vista como boa para os investidores e capitalistas. Aqui, o otimismo está acima dos fundamentos, conforme a revista The Economist escreveu sobre Bolsonaro na última edição: "a perversão do liberalismo".

O Brasil tem uma sociedade complexa na qual o jogo da democracia deve enfrentar dois testes relevantes. O primeiro é o atendimento das expectativas quanto ao desenvolvimento econômico e das demandas sociais. O segundo é sobre a funcionalidade da democracia: há desconforto social e crescente e perigosos apelos por um "governo forte".

Tudo isso em torno de um ambiente econômico com riscos crescentes, aqui e lá fora.