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O vírus do mercado

quarta-feira, 4 de março de 2020

Atualizado às 09:44

É hora de darmos uma olhada no horizonte

Desde a inauguração da temporada de especulações sobre o espalhamento do coronavírus ao redor do mundo, o mercado de capitais abandonou os patamares de preços dos ativos mais elevados de toda a história. Nos EUA, residência oficial do capitalismo financeiro mundial, os índices S&P 500 e Nasdaq caíram ao redor de 10%, desde que o "corona" deixou de ser vírus e tornou-se pandemia para os investidores. Interessante que bem trajados analistas e economistas aparecem na TV com ares médicos para especular sobre as consequências do COVID-19. Diz-se que o tal do vírus é transmitido pela saliva, espirro, tosse ou pela gentileza dos apertos de mãos. De fato, parece transmissível por meio das cotações do mercado de capital e financeiro.

Aqui abdico do papel de lidar com temas virais de saúde para adentrar naqueles que viralizam nos mercados. Pois bem.

O jogo de curto prazo dos mercados parece estar mais relacionado com a percepção sobre quanto nervosismo e pânico esse vírus vai causar. Isso é reflexo direto daquela percepção ordinária que as pessoas tem de que o surto vai atingi-las. Com efeito, os hábitos de consumo e investimento se alteram no sentido do pânico e se cria um "movimento de manada" tão irracional que acaba por ser impossível analisá-lo. Não é pouco caso: viagens estão sendo canceladas, eventos transferidos para datas tardias e assim vai. Até apertos de mãos se tornaram suspeitos. Todavia, não subestimemos: relevantes eventos econômicos podem decorrer dessa irracionalidade.

Há que se recordar que previsões de pandemias não faltaram na história econômica, da gripe espanhola (1918) até a síndrome respiratória do Oriente Médio e a Síndrome Respiratória Grave Aguda, estas duas bem mais recentes. Os efeitos de cada um dessas doenças sobre a economia foram bem diversos e, mais, as previsões iniciais sobre cada uma delas falharam por demais. Para o bem e para o mal.

Como se vê estamos em terrenos pantanosos, mas, mesmo assim, o Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, resolveu meter o estetoscópio nos ouvidos para ouvir os pulmões do mercado (americano e mundial). Nessa terça-feira (4/3/2020), aplicou um remédio poderoso e baixou a taxa de juros básica em 0,5% para o intervalo de 1,00%-1,25%. Aí o jogo começou a mostrar sinais ainda mais preocupantes. Afinal, se o tão bem informado Federal Reserve mandou sinais de que há pânico perigoso no mercado, logo os investidores ampliaram o terrenos de especulações: será que a coisa é mais grave ou o Fed está "enxergando" algo a mais no cenário?

Bom, estamos no meio desse debate inquietante, mas creio que é hora de darmos uma olhada no horizonte. Sem preconceitos, diga-se.

Os preços dos ativos estão ainda nas alturas, na crença de que viveremos sob taxas de crescimento econômico (cada vez) mais baixas. Os sinais, anteriores a "pandemia" eram de queda da produtividade nos EUA, o que significa perda de vitalidade do crescimento, bem como, menor consumo e investimento na China. Sobre o resto do mundo o comentário chega a ser repetitivo: está atolado em baixo crescimento (Europa, Japão) há duas décadas (pelo menos) ou com crescimento oscilante e inconsistente (América Latina). Os países da Bacia Asiática seguem a China. Neste contexto, a análise sobre os mercados era paradoxalmente otimista: com taxas de crescimento baixas, as taxas de juros permanecerão negativas ou neutras e, aí, é confortável especular com ativos mais arriscados. Ademais, o fornecimento de crédito nas economias centrais não serve à expansão da base econômica, mas ao fetiche das fusões e aquisições, às recompras de ações pelas empresas e ao refinanciamento (alongamento de prazos, sobretudo) dos outros títulos de crédito. Até Warren Buffet andou tratando do tema.

É verdade que o paradigma tecnológico está mudando rápida e vigorosamente, mas os sinais desse processo sobre a produtividade (crescimento) não são claros: as taxas de investimento nos EUA estão caindo desde a década de 1980, só para citar um exemplo sempre relembrado pelo economista Paul Krugman.

Tem mais: os riscos para as empresas estão cada vez menos associados aos seus fundamentos intrínsecos e próprios dos setores econômicos e mais ligados aos riscos sistêmicos. Como enfatizou (mais uma vez) Klaus Schwab, fundador e líder do World Economic Forum, os maiores riscos para as empresas estão associados às tensões políticas (internas e externas), aos riscos ambientais, à desigualdade social e aos riscos cibernéticos.

Com patamares de preços tão altos dos ativos financeiros, também ganha contorno preocupante o desenrolar da política ao redor do mundo. Sabe-se que líderes reacionários e/ou populistas acabaram por se associar às políticas econômicas tidas como pró-mercado. Todavia, as tensões (desorganizadas) proporcionadas por esse cenário começa a evidenciar que a ausência de harmonia social e política mina as condições essenciais para que exista confiança para se consumir e investir. (Veja o caso do Reino Unido: é mais fácil as traquinagens eleitorais sobre o Brexit do que lidar com a sua realidade). Logo, pouco a pouco, está a se instalar no ambiente econômico um certo mal estar entre os partícipes do mercado e os donos do poder político. Obviamente, não está claro se isso evoluirá para mudanças no curto e médio prazo, mas não deixa de ser sintomático que um político da velha esquerda norte-americana como Bernie Sanders tenha conseguido ter alguma voz - nos EUA a desigualdade tem aumentado e a classe média começa a perceber que o jogo econômico e político não a favorece tanto quanto Wall Street prega.

Assim sendo, parece-me que manter a calma diante de um amigo gripado seja importante para que não sejamos arreados no comportamento eventualmente esquizofrênico dos investidores. De outro lado, talvez seja a hora de dar uma parada e verificar os fundamentos profundos e desajustados do atual capitalismo financeiro mundial. O vírus do mercado pode ser outro que não o "corona".