COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Decifra$ >
  4. Crise: superação sob a névoa do governo Bolsonaro

Crise: superação sob a névoa do governo Bolsonaro

quarta-feira, 25 de março de 2020

Atualizado às 09:54

O papel do Estado e dos governantes é fundamental e
não pode ser afastado por discussões ideológicas
 

As condições econômicas para a superação da atual crise do covid-19 estão dadas. Essa crise alienou momentaneamente o trabalho enquanto fator de produção, com consequências relevantes para o consumo de bens e serviços vez que há impactos substantivos em termos de renda e de expectativas (ruins, no caso). Todavia, é preciso que fique claro que, ao contrário do que ocorre com as guerras e certas catástrofes naturais, a pandemia não necessariamente deve provocar a extinção das condições básicas para que as economias voltem a funcionar.

O que está a ocorrer é a paralisia momentânea do corpo econômico, mas isso não causará inexoravelmente a morte de "partes" desse corpo. Superada a crise o corpo voltará a funcionar de forma articulada. Há riscos, contudo. Somente esses riscos, mais "criados" do que "inerentes" é que podem desarticular o bom funcionamento da economia.

Dentre esses riscos o principal é a questão do suprimento de recursos financeiros que permitam a que os agentes econômicos (pessoas, empresas, instituições, etc.) possam manter o seu "capital de giro" para funcionar. No caso das pessoas, estamos a falar de coisas ainda mais importantes -  o dinheiro necessário à subsistência básica, por exemplo. Com efeito, há de se garantir as condições para pagar as contas e manter o funcionamento dos lares e da vida ordinária das pessoas. No caso das empresas, é fundamental que estas possam financiar a suas operações, comprar matéria-prima, conceder crédito aos clientes, bancar as operações (industriais ou de serviços) e assim por diante.

A manutenção desse "capital de giro", como se pode verificar, dependerá essencialmente da capacidade dos Estados em prover apoio "fiscal" para que não se crie um gap, um hiato temporal e material, de natureza financeira. O uso da "política fiscal" difere da "política monetária" na medida em que a primeira diz respeito a forma pela qual se utiliza o orçamento, no que se refere às despesas e receitas dos Estados e/ou suas instâncias e divisões administrativas (e.g. estados e municípios). A disponibilização de recursos para suprir o "capital de giro" de pessoas e empresas, seria um "gasto fiscal" oriundo do orçamento. De outro lado, a política monetária tem por objetivo garantir as condições de liquidez da economia, notadamente a do sistema financeiro e de capital. Por meio da manipulação da taxa de juros e das reservas bancárias, os bancos centrais garantem que as transações legítimas dos agentes econômicos sejam realizadas.

Não é difícil perceber que é da combinação das duas políticas (monetária e fiscal) que sairá a solução da atual crise pandêmica. Porém, é ainda mais evidente que a política fiscal preponderará nesse processo na medida em que os gastos orçamentários podem garantir a manutenção e criação de bens. Por exemplo, o Erário pode bancar um déficit fiscal momentâneo para que seja desenvolvido um programa de desenvolvimento da infraestrutura com o objetivo de criar empregos.

Obviamente, há limites para a estratégia de gastar recursos orçamentários. O principal desses limites é a inflação: se os gastos do governo não proporcionarem a revitalização da economia (leia-se "crescimento do PIB"), os recursos financeiros alimentarão a demanda pelos mesmos bens existentes, logo, os preços começarão a subir sistematicamente, o que tecnicamente é chamado de "inflação", que ocorre quando o nível da capacidade instalada de produção é ocupado. Se os gastos alimentarem o sistema e novos bens forem criados, não deve haver inflação.

A política fiscal sempre é utilizada, inclusive pelos governos de cepa liberal, para situações nas quais as condições de expansão da demanda e da oferta estão contingenciadas por certos fatos. A pandemia se enquadra perfeitamente nesse contexto factual.

Não quero desprezar os riscos e nem minimizar o sofrimento das pessoas diante da perspectiva de ter a saúde e, eventualmente, a própria vida, afetadas pelo covid-19. De outro lado, é preciso que seja instalada na sociedade a discussão sincera e verdadeira de que essa crise pode ser superada, senão com "facilidade", pelo menos com "racionalidade" suficiente para que não ocorra um enorme colapso econômico e social.

Dito isso, está claro que o papel do Estado e dos governantes é fundamental e não pode ser, de modo algum, afastado por discussões ideológicas. Caso contrário, se retirará a condição básica para o sucesso das estratégias fiscais e monetárias que é a confiança. Líderes débeis e políticas frouxas levam as pessoas para a desesperança e para ações que conspiram contra a recuperação econômica.

De fato, temos duas mazelas inter-relacionadas: um vírus "virulento demais" e sinais preocupantes em relação à economia. Ambos merecem atenção e ambos merecem ações políticas equivalentes à própria gravidade. Há que se notar que a receita que de forma singela descrevo aqui está sendo adotada ao redor do Globo. Hoje mesmo (25/3/2020) será votado um pacote de US$ 2 trilhões nos EUA para satisfazer as condições para o combate da pandemia e, de outro lado, para cuidar das variáveis econômicas necessárias à recuperação de empregos e produção de bens e serviços.

O discurso do presidente Jair Messias Bolsonaro, na noite de ontem, dando conta de uma "gripezinha" para qualificar o vírus convid-19 e chamando a atenção para a recessão que virá por conta das ações de governos estaduais, cientistas, mídia, etc. não é apenas uma irresponsabilidade. É a demonstração cabal de sua própria incapacidade para entender as variáveis do processo econômico e de como um governante tem de agir em relação a esta dinâmica. Impressiona também o sumiço de seu ideólogo econômico que parece intimidado para usar a política fiscal e monetária de forma "keynesiana" (menção a Lord Keynes quem revolucionou a teoria econômica). Parecem ambos, Bolsonaro e Guedes, empenhados em guiar o barco da Nação na direção do abismo. Um pela incontinência verbal. Outro pela incapacidade de engendrar políticas necessárias ao momento.

Por fim, essa crise talvez tenha desmoralizado a tese de que a "voz do povo" é a "voz de Deus" no que se refere à legitimidade que as urnas trazem para o governante. Vê-se que a benção das urnas pode recair sobre pessoas e partidos absolutamente despreparados para a gestão da coisa pública. Sinal inequívoco de que o nosso sistema político é desastrado e ineficiente para os objetivos do desenvolvimento social e econômico do país. A democracia é um bem demasiado importante para ser manipulada pelos falsários que a rodeiam.

A hora é de repensar com profundidade o que estamos a viver. Isso para evitar que o Brasil possa sucumbir a essa crise por conta de seu líder mais importante.