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O método do ex-capitão e as suas consequências

terça-feira, 2 de junho de 2020

Atualizado às 09:24

A recessão no Brasil deve ser longa,
duradoura e mais profunda que a média mundial

O Brasil passa por um momento que revela alterações estruturais na política, na dinâmica social e na economia. Do ponto de vista estritamente analítico, o trato dos fatos e atos como alterações da conjuntura é erro primário. O que estamos a vivenciar é de ordem fundamental, estrutural, essencial. A eleição do ex-capitão, nesse contexto, depois de seus vinte e oito anos de pobre e conturbada atuação no parlamento, não foi propriamente um "fato novo e inusitado". Na realidade foi evidência cristalina da falência da política brasileira. Destaco duas dimensões desse processo: (i) em relação à legitimação formal e efetiva viu-se, na eleição de 2017, um anticandidato (e.g. "votei contra o PT"), desprovido de consolidadas ideias e proposições programáticas, mas com capacidade imagética suficiente para praticar a mentira (e.g. "o risco comunista", "armar o povo para evitar a ditadura") como arte de sua "verdade política" e, (ii) em relação à ação política, verificou-se que o novo presidente soube transformar a operação de governar em movimento da "minoria ativa" e não como a liderança da maioria passiva que acredita nas regras democráticas. As duas dimensões são novidades na política do Brasil e ambas foram catapultadas do campo eleitoral para a realidade da ação governamental. Caiu por terra a ideia de que uma coisa é a eleição e outra é o governo. Bolsonaro criou o que antes não havia, pelo menos há décadas na história brasileira.

No sentido do parágrafo acima, mais que acerta o decano do Supremo Tribunal Federal (STF) ministro Celso de Mello, quando prega que "os bolsonaristas pretendem instalar no Brasil uma ditadura militar e que o país vive cenário semelhante ao da Alemanha pouco antes do nazismo ser implantado". Aqui, resta claro que não há identidade plena entre Adolf Hitler e o ex-capitão. Todavia, a essência é a mesma: a ideologia messiânica do governo se soma ao uso do ódio e da violência como meios de alcançar e exercer o poder. Caminhamos, sem dúvida, para um ambiente político perigosíssimo, digno das piores menções da história. É imprudente, ao menos, senão omissão grave ou comprometimento com ideias antidemocráticas, não reconhecer isso.

Diante dessa realidade essencial o que podemos vislumbrar desse perigoso governo? Vale ressaltar que tratamos de macroprocessos que marcam essa mutação estrutural do Brasil. Vejamos.

Do ponto de vista político não há possibilidade concreta, factível e realista de que essa administração possa conviver com os "contrários". De fato, o confronto não é nem de ideias e nem de ações. É existencial. Esse governo não tolera aquilo que não é semelhante a ele. Ser contra o governo significa ser inaceitável. Sergio Moro é bom exemplo: ao aderir ao governo, esperava que fosse granjeado apoio dele às representações mais profundas da administração capitaneada pelo supremo líder, incluída a possibilidade de desrespeitar a institucionalidade do Estado. O ex-juiz foi ingênuo, para se dizer o mínimo. Tornou-se inimigo das milícias do capitão.

Do ponto de vista econômico não se pode separar a relação umbilical e altamente interdependente entre a ação política e a econômica. É erro banal que se possa acreditar que Guedes e seus Chicago caps sejam capazes de agir isoladamente em relação ao todo do governo. A própria adesão de Paulo Guedes aos valores e às falas mais radicais na reunião-comício do dia 22 de abril de 2020, demonstra que o "Posto Ipiranga" é agente do capitão e não o contrário, como alguns imaginavam. Nem mesmo pode-se inferir que Guedes é a "banda boa" desse governo, como se batizou em várias administrações (e.g. Marcílio Marques Moreira em relação a Fernando Collor de Mello, ou Henrique Meirelles e Eduardo Guardia em relação a Michel Temer). Mas, há mais em matéria econômica.

A substância ideológica que norteia as ações da equipe econômica, conspira contra a possibilidade de que a atual administração tenha a necessária flexibilidade requerida pela pandemia que castiga a saúde das pessoas e a economia. Por ora, ser "liberal" e acreditar, como no século XIX, que o "mercado" resolve tudo significa não entender que a pandemia ajustou a demanda muito para baixo e, possivelmente, a oferta também para baixo. Logo, a política econômica terá de ser heterodoxa, ou seja, valer-se de fortes intervenções no mercado para evitar que a recessão seja profunda e duradoura. O Estado terá de atuar cautelarmente na formação da oferta e da demanda. Angela Merkel que não pode ser acusada de "comunista" pelo capitão ou Paulo Guedes, é um excelente exemplo disso: a chanceler alemã abandonou os preceitos liberais que constam de históricos livros-textos e sacou 600 bilhões de euros para salvar a economia alemã do penhasco recessivo. Aprovou o plano no governo numa quarta e no parlamento até o final da semana.

Não se espera que no Brasil a rapidez e flexibilidade possam ser as da chanceler germânica. Todavia, com Guedes, um verdadeiro bolsonarista cheio de ideologia econômica na cabeça, a conclusão é óbvia: a recessão no Brasil deve ser longa, duradoura e mais profunda que a média mundial. Não à toa, os investidores do mercado financeiro e de capital já sacaram mais de US$ 10 bilhões em ativos brasileiros no último mês de abril. Nesse sentido, o mercado realmente é eficiente e liberal, como gosta o ministro liberal-bolsonarista.

Do ponto de vista institucional, este governo ambiciona a unidade essencial do Poder Estatal em suas mãos, estas eventualmente armadas. É devaneio romântico que esse presidente e o seu governo aceitem a premissa básica de que a divisão funcional do Poder é parte do "sistema" que equilibra as funções do Executivo, Legislativo e Judiciário. Governos que acreditam carregar a "verdade", política e ideologicamente não estão habilitados a aceitar limites (checks and balances constitucionais), pois "quem tem a verdade que liberta" não crê que possam existir "outras verdades". A intolerância aos limites que o pacto político constitucional impõe, somada à impossibilidade do diálogo, leva à ambição para o totalitarismo que apenas pode ser limitado pelo momento histórico. A serpente já espalhou os seus ovos. A oportunidade faz o ditador.

Não cabe ilusão nessa hora. Como já dito, há mudanças e processos estruturais que podem arrastar o país para cenários jamais vistos em setenta anos. Infelizmente, a maioria do eleitorado viu no ex-capitão a oportunidade da esperada "mudança forte" frente aos anos recentes anteriores, marcados pela incompetência, pela corrupção e pela estagnação social e econômica. Tratava-se do ex-capitão, cujo método incluía, dentre tantas manifestações, elogios à tortura, xingamentos aos deputados e deputadas (especialmente) que dele discordavam, além dos elogios à ditadura militar. Mesmo sendo um político, praguejava contra a política. Um truque que funcionou.

Pois bem: ele chegou ao poder e mostrou, vejam só, que ele é ele mesmo.