COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito e Bioética >
  4. Reflexões de Bioética: entre a Filosofia e a Pandemia

Reflexões de Bioética: entre a Filosofia e a Pandemia

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Atualizado às 10:51

Texto de autoria de Cynthia Pereira de Araújo

Muitas pessoas acreditam que não sendo o propósito da Filosofia oferecer respostas imediatas, seu papel é secundário.

A Filosofia, na verdade - como outras áreas da Ciência também equivocadamente vistas como periféricas - é o que dá sentido à sobreposição de nossos conhecimentos. É o que preenche espaços de quebra-cabeças cujas peças são quase sempre imperfeitas.

Isso tem especial impacto sobre a Bioética, que, em grande medida, busca na Filosofia Moral sua base principiológica da eticidade de condutas. E isso está muito mais próximo de nós do que os complexos ensinamentos filosóficos podem fazer parecer.


Ilustração: Felipe Tognoli

1. Têm sido comuns, por exemplo, durante a pandemia decorrente do novo coronavírus, afirmações de que nós não devemos ir à praia, mesmo quando ela está vazia; nem sair para correr na praça, mesmo quando não há ninguém lá; ou fazer uma reunião pequena com pessoas que também estão em isolamento social e, teoricamente, não representariam riscos umas às outras. Essas afirmações pressupõem, naturalmente, que apenas algumas pessoas poderiam fazer isso; e, assim, de que seria preciso eleger quem merece sair do isolamento, mais do que os demais.

Essa ideia, com a qual muitos concordam e que, na verdade, está na base do distanciamento social representado pelo "fique em casa se puder", pode ser depreendida da primeira fórmula do imperativo categórico de Kant1, mais comumente enunciada como: "age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais".

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, uma das mais importantes obras da Filosofia, Kant questiona: "Podes tu querer também que a tua máxima se converta em lei universal? Se não podes, então deves rejeitá-la, e não por causa de qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas porque ela não pode caber como princípio numa possível legislação universal"2.

Trata-se de reconhecer que algo que parece legítimo a princípio deixa de sê-lo no momento em que se opõe o questionamento quase infantil: "mas e se todo mundo pensar assim?". E todo mundo pensa mesmo. Aliás, se há algo que parece poder ser universalizado, ao menos no Brasil, é que as pessoas sairão de casa, mesmo sem necessidade, mesmo contra instruções sanitárias, apenas pela possibilidade de frequentar um lugar que até outro dia estava fechado.

2. A dignidade humana, princípio que norteia todas as discussões bioéticas, também encontra sua origem na filosofia kantiana. A fórmula da humanidade de Kant, segunda expressão do imperativo categórico, diz: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio".

Trata-se, segundo Recaséns Siches3, da característica do indivíduo de ter não apenas fins, mas fins próprios a cumprir, intransferíveis e exclusivos, que fazem com que ele deva ser tratado, sempre, como pessoa digna, e, jamais, somente como mero meio para fins estranhos ou alheios aos seus. Essa afirmação tem diversos impactos, inclusive sobre a impossibilidade de se priorizarem os fins da sociedade ou do Estado sobre os fins do indivíduo, o que afasta, em diversos contextos, visões utilitaristas - embora algum utilitarismo sempre acabe sendo necessário, para que diversas dignidades convivam.

É a dignidade que sustenta o próprio princípio da autonomia dos pacientes. É também ela que, ao invocar a determinação dos fins próprios a serem cumpridos pelo indivíduo por meio de uma escolha racional4 - autodeterminação -, impõe o consentimento livre e esclarecido como requisito para a submissão a tratamentos de saúde, assunto que também ganhou notoriedade durante a pandemia, especialmente no Brasil, em razão do debate acerca da cloroquina.

A obtenção desse consentimento exige que sejam prestadas informações honestas - que não sejam alteradas em razão de eventuais benefícios externos aos pacientes, tais como ao plano de saúde ou ao hospital - e compreensíveis. Diversos elementos precisam ser abordados: o prognóstico do paciente, com e sem tratamento; os riscos inerentes ao tratamento; as opções alternativas; os efeitos colaterais adversos; as respostas às questões levantadas pelos pacientes; e a recomendação médica não vinculativa5.

Embora se possa falar em riscos ao estado psíquico do paciente quando as informações prestadas, notadamente sobre o prognóstico, são especialmente graves6, o adequado acesso às verdadeiras chances do tratamento é a única possibilidade de efetiva autodeterminação - e dignidade - do indivíduo.

3. Outro gargalo bioético levantado pela pandemia e que também pode encontrar auxilio na Filosofia Moral - mas cuja investigação deve priorizar bases sociológicas e antropológicas - diz respeito às desigualdades escancaradas por momentos de crise. Os dados referentes ao atual epicentro da Covid-19 demonstram o impacto das desigualdades sociais, amplamente racializadas, sobre os índices de contaminação e, especialmente, óbitos7.

Pessoas negras no Brasil e nos Estados Unidos são as pessoas mais atingidas pela doença, o que impõe reflexões, dentre outras várias questões, sobre a forma como os sistemas de saúde assistem pessoas de etnias diferentes.

Por sua vez, os estudos bioéticos - eventos e obras inteiras - são em geral eurocêntricos ou, melhor dizendo, brancorreferenciados8, e tendem a desconsiderar características sociais que limitam as dignidades daqueles que têm seus fins, de antemão, relativizados ou negados.

Sistemas de saúde de sociedades dominadas pelo chamado racismo estrutural são igualmente racistas. E a ausência de recorte racial sobre todos os estudos, em diferentes assuntos e sob diferentes perspectivas, necessariamente deixará de considerar elementos essenciais.

Dou como exemplo uma pesquisa que eu mesma realizei. Em 2018, conversei com pacientes com câncer avançado no Brasil e na Alemanha9. Tendo entrevistado apenas pacientes do SUS no Brasil, conversei com diversas pessoas negras. Mas deixei de perguntar a essas pessoas se suas escolhas por tratamentos de saúde poderiam ter a ver, por exemplo, com a desconfiança razoável que têm no sistema, majoritariamente branco. Se sentir-se-iam mais confortáveis - e possivelmente compreenderiam melhor seu prognóstico e suas opções - se fossem atendidas por profissionais negros. Se suas humanidades e seus objetivos de vida estavam sendo respeitados em um ambiente que com frequência as marginaliza.

Em uma hipótese que apenas tardiamente me ocorreu, questiono se pessoas negras acabam optando por tecnologias de evidente obstinação terapêutica por suspeitarem que os médicos não reconheçam a sua humanidade da forma como reconheceriam a da pessoa branca. Por temerem que alguém acredite que sua vida não vale tanto.

Pela filosofia kantiana, "para honrar plenamente as exigências da moralidade, devemos conceber a nós mesmos, e a nossos companheiros agentes racionais, como legisladores de uma possível comunidade, cada membro da qual é um fim objetivo (um fim em si mesmo) dotado de fins pessoais particulares ou subjetivos"10.

Conforme Holtman, "precisamos ver cada membro da comunidade como dotado de fins particulares, fins que adquirem significado pelo simples fato de que são valorizados por agentes racionais, e isto, em um sentido importante, faz suas vidas valerem a pena"11. Naturalmente, isso é impossível se as estruturas que ditam os rumos da sociedade desconsideram os fins de mais da metade da população, como é o caso do Brasil12.

Essa é, sem dúvida, uma das importantes lições que devem nortear a Bioética - e para a qual a Filosofia pode contribuir. É sua missão cuidar para que não se perpetue como (mais) um campo de conhecimento restrito aos interesses e dignidades de apenas uma parte das pessoas.

*Cynthia Pereira de Araújo é doutora e mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Advogada da União na Procuradoria da União em Minas Gerais. Membro do Comitê Executivo Estadual da Saúde de Minas Gerais de 2014 a 2018.

___________

1 O imperativo categórico pode ser compreendido, de forma sintética, como o princípio, categórico, que rege os deveres morais e é exprimido por fórmulas que exaltam a humanidade, a universalidade e a autonomia.

2 KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2009. P. 36/37.

3 RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho. 4. ed. México: Porrua, 1970. P. 548.

4 KORSGAARD apud GOMES, Alexandre Travessoni. O Rigorismo da Época de Kant e a Situação Ideal do Discurso de Habermas - Um Ensaio Comparativo. In: GOMES, Alexandre Travessoni; MERLE, Jean-Christophe. A Moral e o Direito em Kant: Ensaios Analíticos. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. P. 61.

5 NELSON, Erin; OGBOGU, Ubaka, Law for healthcare providers. Toronto: LexisNexis, 2018. P. 88; 92.

6 ARAÚJO, Cynthia Pereira de. Existe direito à esperança?: saúde no contexto do câncer e fim de vida (tese). Belo Horizonte, 2018. 251 f.

7 clique aqui. Acesso em 25 jun 2020.

8 O termo não existe.

9 ARAÚJO, Cynthia Pereira de. MURAD Jr., Munir. O que os pacientes com câncer avançado esperam da quimioterapia paliativa? Uma pesquisa qualitativa Brasil-Alemanha. In: ARAÚJO, Cynthia Pereira de. Existe direito à esperança?: saúde no contexto do câncer e fim de vida (tese). Belo Horizonte, 2018. Anexo I.

10 HOLTMAN, S. Autonomia e o Reino dos Fins. Tradução de Rafael Rodrigues Pereira. Stud. Kantiana 19 (dez. 2015): 105-126.

11 HOLTMAN, S. Autonomia e o Reino dos Fins. Tradução de Rafael Rodrigues Pereira. Stud. Kantiana 19 (dez. 2015): 105-126.

12 IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua trimestral: Tabela 6403 - População, por cor ou raça. 2019.