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O custo da violência contra a mulher no Brasil - Consequências que só as vítimas suportam

terça-feira, 11 de abril de 2023

Atualizado às 07:53

Entre os anos de 2020 e 2021, houve uma queda de 1,7% nos casos de feminicídios1, mas não podemos nos esquecer que, mesmo assim, foram 2.695 mulheres mortas pela condição de ser mulher (1.354 em 2020 e 1.341 em 2021), é um número bastante elevado. Além disso, no mesmo período, houve um acréscimo de 23 mil novos chamados de emergência para o número 190 solicitando atendimento para casos de violência doméstica, com variação de 4% de um ano para o outro2. Ou seja, ao menos uma pessoa ligou para o 190, por minuto, em 2021, denunciando agressões como essas.

No mesmo sentido, os indicadores relativos a outras formas de violência contra mulheres apresentaram crescimento no ano de 2021. Os crimes de assédio sexual e importunação sexual, por exemplo, aumentaram em 6,6% e 17,8%3, respectivamente, ao passo que houve um aumento de 3,3% na taxa de registros de ameaça, e crescimento de 0,6% na taxa de lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica entre 2020 e 2021.

Resumindo, o número de feminicídios pode até ter sofrido uma queda, mas outras formas de violência contra mulheres cresceram em 2021. Apesar de a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, entre tantas outras legislações que foram instituídas e adotadas para combater a violência contra a mulher representarem avanços importantes, não há indícios de que as consequências advindas das regulamentações e o "maior rigor penal" tenham efetivamente contribuído para a diminuição da violência contra as mulheres no Brasil.

Pensando nisso, propomos uma reflexão sobre a efetividade das punições que sofrem os agressores de mulheres no Brasil. Será que o caminho que adotamos é o mais adequado para alcançarmos alguma mudança significativa no combate à violência?

Por exemplo, nos crimes de ameaça ou de perseguição, dois tipos penais comuns em contexto de violência doméstica ou familiar, as penas podem variar de um a seis meses de detenção ou multa4 no primeiro, e de seis meses a dois anos e multa no segundo, podendo ser aumentada de metade se o crime for cometido contra mulher por razões da condição de sexo feminino. Já a violência psicológica contra a mulher, conduta tipificada só em 2021, pode ser punida com reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. 

Esses são apenas alguns exemplos, mas são suficientes para demostrar que as consequências para os agressores, no âmbito criminal, beiram a insignificância. Muitas vezes sequer há alguma condenação, é comum que os autores de atos violentos sejam absolvidos por insuficiência de provas, até porque muitos dos crimes são difíceis de provar, especialmente aqueles que envolvem violência sexual e, quando são condenados, não raro as penas são fixadas no mínimo penal.

Outra possibilidade que a Justiça apresenta para que as violências não fiquem impunes é a indenização pelos danos causados. Soa bastante óbvio que uma vítima de qualquer tipo de violência mereça ser indenizada, mas esse caminho não costuma ser uma escolha tão simples quanto parece no primeiro momento. O recente caso do jogador de futebol Daniel Alves não nos deixa mentir, já que a vítima de violência sexual, no caso que aconteceu na Espanha, recusou veementemente a possibilidade de receber qualquer valor em dinheiro.

Não nos surpreende a decisão e podemos dizer com certa propriedade decorrente da nossa prática na advocacia, justamente no atendimento de vítimas de violência, que, quando essas mulheres desejam buscar a reparação financeira por tudo que lhe foi causado, enfrentam algumas barreiras.

O dano moral, no caso de uma vítima de violência doméstica no Brasil, é presumido. Ou seja, comprovando-se que aconteceu o ato violento, não é necessário demonstrar que houve o dano, presume-se que ele ocorreu e, portanto, a vítima teria direito à indenização. Mas embora presumido, o dano não é automático, a ofendida precisa solicitar à Justiça que seja aplicada uma indenização.

Nos outros casos de violência contra a mulher, que não estão em contexto de violência doméstica, o dano sequer é presumido, a vítima precisa pedir expressamente seu reconhecimento e pode receber uma negativa da Justiça.

Na prática, como no caso do jogador de futebol que mencionamos, muitas vítimas renunciam à indenização, a um direito seu de reparação, como uma forma de reforçar as suas alegações. Existe um receio, aliás bastante legítimo, do julgamento da sociedade que, na primeira oportunidade, acusa as mulheres de buscar, com esses processos, fama e dinheiro. Então, com a esperança de não serem desacreditadas, declaram que não querem valor algum e lançam mão de receber algo que poderia de alguma forma compensar, ainda que minimamente, o mal e o prejuízo que tiveram que suportar.

Precisamos compreender que desejar receber algum valor em dinheiro para compensar um sofrimento não é falta de caráter, tampouco oportunismo, é simplesmente reparação. Curiosamente, quando não se trata de violência contra a mulher, ações de indenização não são socialmente interpretadas de forma negativa, pelo contrário, consumidores ficam indignados com as baixas indenizações aplicadas pela Justiça aos seus casos e aos dos outros, mas, quando se trata de uma mulher, a sociedade só legitima aquela que renuncia aos seus interesses pessoais e direitos indenizatórios oriundos da violência. 

Isso sem contar que, na busca por alguma reparação, a vítima precisa pagar uma boa advogada para cuidar de seus interesses, além de, na maior parte dos casos, ter gastos com médicos, psicólogos e medicamentos para tratar os sintomas dos traumas. A violência tem um custo muito alto para as vítimas.

Parece injusto, e é. E mais injusto ainda é o valor das indenizações que são aplicadas, quando, mesmo diante de muito sofrimento, a vítima reúne esforços para enfrentar um processo lento, emocionalmente desgastante e, muitas vezes, recheado de violência institucional, depara-se com um valor de indenização absolutamente irrisório.

As indenizações em casos de violência doméstica nos maiores Tribunais de Justiça do Brasil são fixadas em patamares muito baixos, variando entre R$500,00 até R$20.000,00. Valores mais altos são exceções, raridades com aplicação apenas em casos extremos. Ou seja, quase sempre, o valor que a vítima tem direito a receber é inferior ao sugerido como parâmetro mínimo pela tabela da OAB para que uma advogada atue no caso em defesa da vítima. Apenas como exemplo, a tabela de honorários da OAB/SP sugere como mínimos os valores de R$1.823,25 para acompanhamento em delegacia, R$9.188,23 para acompanhamento de um inquérito policial e R$5.511,73 para ingressar com uma ação cível de indenização. E estamos mencionando aqui um escopo de trabalho reduzido, com o valor mais baixo recomendado e incluindo apenas alguns dos principais serviços necessários em um caso de violência, não todos.  Como a vítima vai custear tratamento médico, psicológico, serviços advocatícios para um atendimento eficiente e cuidadoso e ainda ser compensada pelo dano sofrido? O que ela ganha no final é um grande prejuízo financeiro e emocional.

A conta da violência contra a mulher é muito alta, mas é a vítima quem paga. Quem rotula as mulheres que buscam a Justiça como "oportunistas" ou "interesseiras", com destaque para os tribunais da internet que costumam ser bem cruéis, precisa urgentemente enxergar que não há qualquer recompensa em acionar o Poder Judiciário, apenas ônus: custos infindáveis, desgaste emocional durante o processo, danos à saúde e ansiedade por uma resposta da Justiça que, com frequência, tarda e falha. 

Os agressores, quando condenados, suportam penas brandas, insuficientes para a prevenção, conscientização e consequente redução da violência contra a mulher e são, nos casos em que as mulheres não abrem mão desse direito, condenados a pagar uma indenização sem impacto financeiro significativo e insuficiente para que aquele comportamento não se repita.

Educação é a uma das chaves da questão, mas, com certeza, não a única. Claro que não temos a pretensão aqui de encerrar esse debate, até porque, esse é apenas o começo de uma conversa que precisa amadurecer muito. Mas nosso forte palpite é de que uma mudança verdadeira nesse cenário de impunidade passa por enxergar as mulheres. Todas elas.

Quando falamos em enxergar, não se trata simplesmente de considerar a existência das mulheres e suas vulnerabilidades, mas de ter um olhar cuidadoso, profundo e sobretudo, interseccional. Algo que só pode partir de quem já percebeu que tudo na nossa história foi desenhado por eles, que sempre ocuparam os espaços de poder, inclusive as leis em prol das mulheres. Sem esquecer de alguns dos avanços importantes, acreditamos que, se as punições não vierem acompanhadas da efetiva implementação de políticas públicas preventivas direcionadas à conscientização para ceifar a cultura machista e desigual do país, evidentemente, as penalidades pelos atos de violências contra as mulheres (sejam elas criminais ou indenizações em dinheiro) assumem um viés simbólico. A sensação que isso nos causa é parecida com aquela da música Falso Amor Sincero, de Nelson Sargento, que diz assim; "O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama/E eu finjo que acredito". Pedimos licença poética ao leitor para encerrar a conversa de hoje com uma paródia: "Na teoria é tão bonito, o Estado finge que funciona, e eu finjo que acredito." 

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1 Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022, P. 09)

2 Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022, P. 06)

3 Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022, P. 07)

4 Há projeto de lei (PL 901/23) que busca aumentar a pena de crime de ameaça cometido contra a mulher, pelo texto, o crime passa a ser punido com reclusão de seis meses a dois anos e multa. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2023.