A Justiça em disputa: O que revela o PDL 89/23 contra a perspectiva de gênero nos julgamentos
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Atualizado às 07:17
"O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos"
Simone de Beauvoir1
Nesta semana foi pautado na CCJ da Câmara dos Deputados o texto do PDL89/20232 que tem como objetivo sustar os atos executivos do Conselho Nacional de Justiça em relação à Resolução 492, editada em 17 de março de 20233, que instituiu diretrizes para adoção da Perspectiva de Gênero nos julgamentos - incluindo capacitação de magistrados e criação de comitês específicos. O Protocolo é uma importante ferramenta jurídica, legítima e necessária, para corrigir assimetrias estruturais e epistêmicas no Sistema de Justiça.
A publicação, pelo Conselho Nacional de Justiça, de um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, em fevereiro de 20214, recolocou sob os holofotes do Sistema de Justiça brasileiro a necessidade de inserção de categorias interseccionais de gênero na atuação do judiciário brasileiro. Mais do que identificar obstáculos ao acesso das mulheres à Justiça ou às decisões judiciais que não lhes garantem efetividade de seus direitos humanos, a reflexão atingiu o Direito como um todo (legislações que privilegiam modelos de humanidade que são tidos como padrões normativos e de atuação do judiciário e critérios de atuação judicial baseados em supostas neutralidades).
O principal objetivo da Resolução 492 é dar efetividade e cumprimento ao Protocolo de 2021. Dentre as etapas fundamentais para isso está o de informar o judiciário brasileiro acerca dos Direitos Humanos, sobretudo, das pessoas que tem dificuldades de acessar direitos e a prestação jurisdicional. Aqui estão os chamados grupos estrutural e sistematicamente discriminados, tais como, mulheres, pessoas negras e pessoas indígenas.
E isso é fundamental quando pensamos em efetividade e concretude no Direito. No campo jurídico, desprezar as assimetrias de gênero, raça e etnia, compromete a justiça material, o acesso efetivo a direitos e a possibilidade de reparação de violências sistemáticas.
Sem compreender o gênero e raça como estruturas que sistematizam desigualdades o Estado não elabora políticas de enfrentamento das violências, não garante equidade no acesso à Justiça e nos processos judiciais e ignora a realidade e as dificuldades vivenciadas por mulheres e dissidentes (mulheres negras, pessoas trans, pessoas indígenas).
O gênero é atravessado por raça, classe, sexualidade, território e deficiência. Quando se ignora esta transversalidade as respostas dadas pelas instituições a casos de violência doméstica, feminicídios, estupro, assédio moral, assédio sexual, discriminação laboral, transfobia e racismo institucional são ausentes ou, no mínimo inadequadas.
Portanto, a ignorância sobre o que é gênero - entendendo-o como uma construção histórica, social e relacional, que organiza desigualdades entre corpos - não é neutra nem inofensiva. Pelo contrário, ela tem implicações graves para a vida social, política e jurídica, pois sustenta violências, distorções e apagamentos que perpetuam opressões estruturais.
As críticas contra o Protocolo e à Resolução do CNJ, revelam a retórica da "ideologia de gênero". A tentativa de sustar seus efeitos, através do PDL 89/23, está inserida no projeto político de um discurso extremista conservador que vê na expressão "gênero" uma ameaça, tanto às suas crenças (sejam religiosas, sejam sociais ou culturais), quanto ao seu poder. As críticas que constam do relatório apresentado na CCJ (Comissão de Constituição de Justiça) refletem claramente uma disputa política e antidemocrática, uma vez que rechaça a ideia de um judiciário plural e acessível.
O que o PL pretende é permitir que o discurso dominante siga nomeando o mundo a partir de uma única posição: masculina, branca, cisgênero e heterossexual.
É fundamental para a democracia que o Judiciário Brasileiro entenda que o Direito é generificado e racializado, e que reconheça as hierarquias que moldam a sociedade abrindo caminho para uma justiça mais plural, inclusiva e reparadora.
O Judiciário é uma estrutura marcada por corpos, saberes e culturas predominantemente masculinas e brancas. A requerida neutralidade do PDL 89/2023, é uma ficção que sustenta a exclusão histórica de mulheres e dissidências. Nas decisões estão as subjetividades de julgadores(as) quando se defrontam com o desempenho de papéis de gênero, como o trânsito de homens e mulheres no espaço público, das práticas sexuais permitidas e proibidas para homens e mulheres, do familismo , enfim, de todos os estereótipos presentes.
Atuar com perspectiva de gênero, seja postulando, seja julgando, significa utilizar instrumentos metodológicos que estão vinculados, não só à desconstrução de estereótipos relacionados às mulheres, mas também a eliminação das causas das desigualdades por razões de sexo e de gênero. Importante inserir categorias interseccionais para apurar as transversalidades que produzem violências e disparidades no acesso à Justiça e na efetividade dos direitos, tais como, raça, etnia, classe social e econômica, idade, origem territorial, etc
Julgar com perspectiva de gênero significa adotar uma postura ativa de reconhecimento das desigualdades históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais a que as mulheres estão e estiveram sujeitas desde a estruturação do Estado, e, a partir disso, perfilhar um caminho que combata as discriminações e as violências por elas sofridas, contribuindo para dar fim ao ciclo de reprodução dos estereótipos de gênero e da dominação das mulheres.
Em que pese Judiciário ser apenas um componente de uma estrutura estatal obrigada a coordenar os esforços de todos os seus setores para respeitar e garantir os direitos das mulheres, a operacionalidade de um sistema que esteja próximo das vítimas, o acesso a recursos judiciais adequados e eficazes, constitui uma importante linha de defesa dos direitos humanos das mulheres. A obrigação de respeitar, proteger e cumprir se estende à garantia da disponibilidade de recursos judiciais acessíveis e oportunos para mulheres e dissidências.
Quando o Parlamento legisla contra o reconhecimento da desigualdade, perpetua dominação e exclusão. Rejeitar o PDL 89/2023 é uma atitude democrática. Não há democracia possível onde o gênero continua sendo tratado como uma ameaça.
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1 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967, Volume II.
2 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo. Ementa - Susta os efeitos da Resolução n. 492, de 17 de março de 2023, do Conselho Nacional de Justiça, que "estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário" Disponível aqui. Acessado em 03.07.2025.
3 CONSELHO NACIONALDE JUSTIÇA. Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Disponível aqui. Acessado em 03.07.2025.
4 CONSELHO NACIONALDE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021. Grupo de Trabalho instituído pela Portaria CNJ n. 27, de 2 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acessado em: 20.02.2022.