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Os Juizados Especiais são competentes para demandas de titulares de dados pessoais?

sexta-feira, 26 de março de 2021

Atualizado às 07:55

Em funcionamento desde 1995, após a experiência dos então chamados Juizados de Pequenas Causas, os Juizados Especiais Cíveis (JEC) - criação da lei 9.099/1995 - rapidamente alcançaram destacado sucesso na Justiça brasileira, especialmente devido a fatores como a pouca burocracia, o uso da oralidade e o fato de poder litigar sem advogado ou custas processuais1. Com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), já se identificam as primeiras ações movidas nos JEC por titulares de dados pessoais, levando certa inquietação às empresas controladoras e operadoras de dados.

Embora tenham competência ampla - desde que para as causas cíveis de menor complexidade -, os juizados passaram a ser cada vez mais utilizados para o trâmite e julgamento de causas envolvendo o direito do consumidor, sendo notória a ligação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), promulgado cinco anos antes, com o sistema então criado. Além das vantagens já mencionadas, os JEC caíram como uma luva para conferir efetividade a um direito do consumidor em especial, a facilitação de sua defesa, "inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor"2.

Surge então um problema processual, na medida em que a opção do uso dos juizados - em contraposição à Justiça Comum - para o processamento da ação é feita, no momento inicial, tão somente pelo autor da demanda. Ao réu, até é possível alegar a incompetência do JEC, mas, caso não acolhida, o feito prosseguirá em seu trâmite normal no próprio juizado e, como regra, a questão da incompetência só poderá ser revista na Turma Recursal, em sede de recurso inominado.

E onde está o problema? Ele decorre da interpretação sistemática dos dois diplomas legais - CDC e Lei nº 9.099/1995 - e da eventual dificuldade para que o réu possa comprovar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor. É que, competindo a escolha pela sistemática mais simples e rápida apenas ao autor, caso seja deferida a inversão do ônus probatório, o réu poderá enfrentar sérias restrições para demonstrar não ser o responsável pela situação de violação dos direitos dos titulares de dados.

A situação se agrava na medida em que, muitas vezes, quem estará em juízo na posição de titular de um dado pessoal poderá ocupar também o posto de consumidor. A corroborar esta afirmação, estão as referências à defesa do consumidor na lei 13.709/2018, a LGPD3. Figurando como titular de dados e também como consumidor, poderá o autor da demanda valer-se da inversão do ônus da prova prevista no CDC (art. 6º, VIII) e/ou na própria LGPD (art. 52, § 2º), ambas com redações semelhantes.

Com efeito, em não raras oportunidades o titular dos dados pessoais não terá acesso a elementos probatórios suficientes para demonstrar seu direito, enquadrando-se nas situações legais de hipossuficiência técnica ou de onerosidade excessiva para produção de tal prova. Assim, o caminho para a inversão estará aberto.

Por outro lado, para demonstrar a inocorrência de danos ao titular ou a ausência de quaisquer outros elementos da responsabilidade civil, pode ser necessário que o agente de tratamento de dados necessite produzir alguma prova de natureza complexa, como uma perícia, o que não é permitido perante os Juizados Especiais. Ora, contando com a inversão do ônus probatório em seu desfavor e com a impossibilidade de se desincumbir desse ônus por conta da não autorização da realização de uma perícia ou outra prova técnica mais complexa perante o JEC, o controlador/operador dos dados terá, fatalmente, seu contraditório e ampla defesa prejudicados.

Deste modo, faz-se necessário que haja efetivo controle jurisdicional sobre a opção do autor pela via dos juizados. Diferente do que se vê no cotidiano forense das ações consumeristas, simples por sua própria natureza, nos casos que versem sobre direitos dos titulares de dados pessoais - principalmente nos que envolvem questões complexas, como a suspeita de eventual vazamento de dados - a necessidade de que o réu possa comprovar sua não ocorrência ou, ao menos, sua não responsabilidade pelos fatos, faz com que seja recomendável que o processo tramite perante a Justiça Comum e não nos Juizados Especiais Cíveis.

Embora não tão célere e mais formal que o JEC, é na Justiça Cível Comum que estarão presentes as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

ANPD e Senacon atuarão de forma coordenada

Na segunda-feira 22/03/2021, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) firmaram acordo de cooperação técnica para que os dois órgãos possam "alinhar esforços e reforçar as fiscalizações" e, assim, proteger dados dos consumidores brasileiros. A atuação conjunta é salutar e contribui para que os órgãos federais e agências reguladoras estabeleçam critérios uniformes com relação à proteção dos dados pessoais, mitigando ou até mesmo afastando por completo o risco de bis in idem na aplicação de sanções administrativas4.

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1 Quando o valor da causa não ultrapassa 20 salários mínimos, pode-se litigar sem advogado e só incidem custas a partir da interposição de recurso inominado.

2 Art. 6º, VIII, do CDC - São direitos básicos do consumidor: a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência".

3 A defesa do consumidor é um dos fundamentos da proteção de dados pessoais (art.2º, VI); e o titular dos dados pessoais pode optar por peticionar contra o controlador perante a Autoridade Nacional (ANPD) ou perante os diversos órgãos de defesa do consumidor (art. 18, §§ 1º e 8º). Vale destacar também que, embora a redação conferida ao art. 55-K da LGPD, que previa a articulação entre o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça e a ANPD, não tenha sido mantida quando da promulgação da lei, recentemente a ANPD e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) firmaram acordo de cooperação técnica justamente para proteger os dados dos consumidores - (acesso em 25/03/2021).

4 Sobre o tema, confira nossa coluna de novembro de 2019 - "Enquanto uns querem adiar a entrada em vigor da LGPD, outros pretendem aplicá-la antes mesmo da necessária regulamentação", onde foi abordada a questão da eventual atuação de diversos órgãos da Administração Pública na proteção de dados pessoais.