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Sequência de abusos e postura arrogante aumentam chances de aprovação do PL das fake news

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Atualizado às 08:32

Esta semana, o Projeto de Lei 2.630/2020 (que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet) teve aprovado requerimento de urgência e, sem precisar passar por comissões temáticas na Câmara dos Deputados, seu mérito deve ser colocado em votação já na próxima semana. Se aprovado, teremos uma guinada de rumo na responsabilidade civil dos provedores de internet, mudando completamente o regime jurídico vigente.

Para explicar como se chegou a isso, é preciso traçar uma linha do tempo e compreender que dois fatores contribuem fortemente para a possível aprovação do projeto: os abusos de todas as ordens cometidos pelos usuários e a postura arrogante de algumas empresas para com as autoridades brasileiras.

No início das discussões judiciais sobre a responsabilidade de provedores - especialmente no que diz respeito a conteúdo produzido/publicado por terceiros, os usuários - o entendimento oscilava entre a responsabilidade objetiva (afinal, os provedores permitiram a conduta ilícita e deveriam responder por ela) e a subjetiva, em que o provedor atraía a responsabilidade caso não tomasse as medidas necessárias para bloquear a atividade ilícita após comunicação do usuário.

Nessa época, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) chegou a firmar jurisprudência no sentido de que o prazo razoável para a tomada de providências era de 24 horas. Dois problemas surgiam dessa interpretação: i) como comprovar a comunicação do usuário? Bastaria um e-mail, o preenchimento de um formulário online ou o envio de uma correspondência à sede da empresa? ii) tal prazo poderia ser considerado curto para a análise da postagem e a definição se haveria ou não ilícito, ao mesmo tempo que poderia ser muito longo para, por exemplo, a remoção de imagens de nudez.

Em 2014, entrou em vigor a lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet e internacionalmente festejada como uma das legislações mais avançadas sobre tema. Um de seus destaques é o artigo 19, que estabelece que os provedores de aplicações somente serão responsabilizados se não tomarem as medidas adequadas para supressão do conteúdo ilícito após ordem judicial específica e que indique exatamente o material ofensivo1. Para a internet da época, compreendeu-se que a melhor maneira de fazer essa indicação era a decisão judicial apontar qual o endereço completo da página onde estaria o conteúdo, ou, em termos técnicos, o URL2.

No entanto, nesses últimos nove anos muita coisa mudou. De um lado, os principais problemas hoje encontrados na internet não estão mais em sites, blogs, plataformas de vídeos ou redes sociais que podemos definir como "estáticas", em que o conteúdo publicado permanecia no ar e era facilmente identificado pelo URL. Nos últimos anos, as redes sociais tornaram-se "dinâmicas", ou seja, as postagens são feitas e têm durações muito pequenas, como nos stories do Instagram ou nos vídeos de poucos segundos do Tik Tok. Além disso, sua identificação exata não é mais satisfatoriamente feita por meio do endereço web como antigamente. De igual modo, a disseminação mundial dos aplicativos de mensagens instantâneas3 fez com que se tornasse muito difícil a localização da origem do conteúdo ilícito, bem como seu bloqueio.

Como consequência, aguardar que o ofendido tome ciência da postagem ilícita, contrate advogado, ingresse com pedido de tutela de urgência no Judiciário, obtenha uma ordem de remoção e consiga intimar o provedor para que este cumpra a decisão, não mais funciona para combater as práticas ilícitas, uma vez que o conteúdo ou já foi excluído por atingir o período programado de duração ou já se tornou de tal forma viralizado que sua remoção não mais terá efeitos práticos para a honra e imagem do ofendido.

Junto a este contexto, os abusos cometidos pelos usuários tornaram-se cada vez maiores. Surgiu e rapidamente se desenvolveu uma verdadeira indústria de fake news, na qual os responsáveis contam com as facilidades da rápida disseminação do conteúdo, suposta proteção em nome da liberdade de expressão e da vedação da censura e, o principal, a monetarização do conteúdo falso, na medida em que as plataformas por vezes preocupam-se apenas com o número de cliques e visualizações e não com o conteúdo em si, gerando um círculo vicioso em que o material ilícito é recomendado para outros usuários, indistintamente e cada vez mais, conforme o aumento de seu alcance.

No âmbito da política, depois de algum tempo sem saber o que fazer, a Justiça Eleitoral acertou seu compasso a partir de 2022, com medidas enérgicas - muitas delas objeto de duras críticas - para fazer cumprir a legislação brasileira, especialmente no que diz respeito ao conteúdo que claramente ultrapassa os limites da liberdade de expressão. Mas o problema cresceu a níveis alarmantes em dois episódios recentes: os ataques antidemocráticos aos Três Poderes em 8 de janeiro e os recentes atentados a escolas brasileiras4, ambos divulgados e incentivados pelas redes sociais.

Em paralelo ao aumento da ocorrência de ilícitos digitais, algumas empresas estrangeiras - a minoria, ressalte-se - assumiram uma postura intransigente perante as autoridades brasileiras que culminaram num paulatino recrudescimento das medidas adotadas. Dois exemplos são sintomáticos desta postura: i) os responsáveis por um aplicativo de mensagens que não possuíam representante no país e se recusavam a responder as intimações judiciais brasileiras, o que levou o ministro Alexandre de Moraes (STF e TSE) a determinar o bloqueio do aplicativo em todo território nacional5; e ii) a rede social que, chamada para uma reunião de emergência no Ministério da Justiça após os ataques a colégios, recusou-se a deletar perfis que enalteciam pessoas que cometeram atentados ou que estimulavam a prática de novos homicídios.

Com isso, criou-se um cenário favorável à aprovação do projeto na Câmara dos Deputados, hoje sob a relatoria do deputado Orlando Silva6 (PCdoB/SP). Ainda que, no mérito, muitos de seus pontos certamente mereçam uma maior reflexão e a ampliação do debate - afinal, o projeto de lei altera parte sensível da regulação da internet no país - a conjuntura poderá fazer com que tais pontos fiquem em segundo plano.

Afinal, conforme ouvido recentemente de um juiz paulista: "a situação chegou a tal ponto que não dá para ficar como está. É melhor regular de alguma forma, ainda que não a melhor e, se necessário, o Judiciário afasta os excessos depois".

__________

1 A exceção era o conteúdo conhecido como pornografia de vingança (cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado), que não exige ordem judicial, de acordo com o artigo 21 da lei.

2 O termo URL é a abreviação de Uniform Resource Locator, ou Localizador Uniforme de Recursos. Significa endereço web, ou seja, o texto que você digita na barra de do navegador para acessar uma determinada página ou serviço (fonte: Tecnoblog).

3 Segundo reportagem da revista Veja de agosto de 2022, o WhatsApp está presente em 99% dos celulares em funcionamento no Brasil, o Instagram em 86%, o Messenger em 70% e o Telegram em 65%.

4 "Brasil teve 5 ataques com mortes em escolas em 2022 e 2023", reportagem do site Poder360.

5 Bloqueio que acabou não ocorrendo, pois às vésperas de sua efetivação, a empresa acabou nomeando representante no país e se comprometeu a atender as ordens judiciais.

6 Disponível aqui.