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As atuais negociações coletivas e o modelo sindical brasileiro

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Atualizado às 08:17

A lei 13.467, de 2017, em seus artigos 611-A e 611-B, possibilitou às negociações coletivas a instituição de regramentos em patamares inferiores aos previstos em lei. Nesse prumo, o artigo 611-A estabelece que "a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei" quando dispuserem, "entre outros", sobre diversos temas elencados, como, v.g., o regime de sobreaviso, o trabalho intermitente, a prorrogação de jornada e a duração dos intervalos.

O artigo 611-B, por sua vez, estipula que a supressão ou a redução dos direitos nele elencados constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. Todavia, no dispositivo consta o advérbio "exclusivamente" (e não "entre outros", como é o caso do artigo 611-A), destacando, pela lógica, a intenção de estabelecer a possibilidade de negociação de outros temas em prejuízo dos trabalhadores.

O parágrafo único do referido dispositivo estabelece que "regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo", com a clara finalidade de esclarecer que as negociações coletivas poderão estipular normas relativas à duração do trabalho e aos intervalos inferiores que aquelas previstas em lei.

A leitura dos dispositivos permite concluir, portanto, que somente são ilícitas as cláusulas negociais que envolvam os temas inscritos nos incisos do artigo 611-B. A nova legislação determina, em outras palavras, que sindicatos e empresários têm liberdade para negociar entre si e fixar condições de trabalho piores do que aquelas previstas na legislação.

O Direito do Trabalho, entretanto, norteado pelo princípio da proteção, tem como característica um critério próprio de hierarquia das normas não distinguindo a eficácia a partir da origem da norma1. No caso de existir mais de uma norma aplicável, deve-se, por princípio, optar por aquela que seja mais favorável ao trabalhador - ainda que não seja a que corresponde aos critérios clássicos da hierarquia das normas2.

As previsões contidas nos dispositivos em análise são contrárias ao texto constitucional. Isso porque, tanto o caput, como o inciso XXVI do artigo 7º da Constituição Federal, direcionam a negociação coletiva para o objetivo de estabelecer condições de trabalho superiores àquelas previamente fixadas em lei. Ademais, a Constituição Federal somente permite a negociação coletiva reducionista no caso daqueles direitos expressamente elencados (como, v.g., o inciso XIV do artigo 7º).

Verifica-se, ainda, que a previsão do negociado sobre o legislado descumpre as normas contidas nas Convenções nº 98, 151, 154 e 163 da OIT, pois o objetivo da negociação coletiva deve necessariamente ser a busca de condições de trabalho mais favoráveis do que aquelas existentes3. E, além da contrariedade às referidas convenções da OIT, essa inovação legislativa viola também outros tratados de direitos humanos, especialmente aqueles que reconhecem o trabalho digno e protegido como dimensões da dignidade da pessoa humana (a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Carta das Nações Unidas e da Convenção Interamericana de Direitos Humanos)4.

Nesse sentido, levando em conta a legislação interna (constitucional) e internacional sobre o tema, bem como o princípio protetivo, somente seria possível aplicar os dispositivos em análise se se considerar que as convenções coletivas de trabalho alcançam prevalência sobre a lei apenas no que puderem oferecer melhores condições sociais em comparação com o previsto na legislação5. 

Impõe-se considerar também que a Reforma Trabalhista objetivamente enfraqueceu o poder dos sindicatos (e, consequentemente, do movimento social e das greves) por meio do artigo 579 da CLT. A revogação do caráter compulsório da contribuição sindical em um ordenamento jurídico regrado pela unicidade sindical pode, sem mudanças culturais e sociais prévias, ocasionar crise em um dos principais e mais tradicionais instrumentos de promoção da transformação social: os sindicatos6.

A legislação, portanto, rompe a teia de proteção social, porquanto provoca a perda da força dos sindicatos para sua organização e mobilização7, além de permitir o estabelecimento de normas coletivas supressivas. Não é possível pressupor, desse modo, que sindicatos de empregados e de empregadores têm iguais condições para negociar entre si - e, por isso, é indispensável a proteção contra o retrocesso social causado por normas coletivas supressivas.

Conforme apontam Ricardo Antunes e Luci Praun8, "quanto mais frágil a legislação protetora do trabalho e a organização sindical na localidade, maior o grau de precarização das condições de trabalho, independentemente do grau de 'modernização' das linhas de produção ou ambientes de trabalho como um todo".

Obviamente, em uma sociedade democrática, espera-se que os sindicatos tenham plena liberdade para negociar com as empresas - no entanto, sem a possibilidade de criar condições inferiores do que aquelas previstas pela legislação trabalhista.

Compreende-se, ainda, que dispositivos como os artigos 611-A e 611-B da CLT somente poderiam ser discutidos, no Brasil, após um processo de reforma sindical. Quer-se dizer: o modelo sindical brasileiro, composto pela unicidade sindical e não-obrigatoriedade de contribuição pelo trabalhador subordinado, é pouco consistente do ponto de vista sistemático, considerando-se também o aumento simultâneo dado à autonomia privada do trabalhador subordinada e à autonomia dos entes sindicais pela Reforma Trabalhista. Ou opta-se por um sistema de normas laborais cogentes e irrenunciáveis, isto é, de intervenção do estado nas relações privadas e subordinadas de trabalho, ou por um sistema de collective laissez-faire (como existente no Reino Unido em boa parte do século XX), privilegiando-se a negociação coletiva9. Ambos, impulsionados de forma conjunta pela lei 13.467/17, constituem verdadeira jabuticaba criada pelo legislador10.

Caso a Convenção nº 87 da OIT fosse ratificada pelo Brasil e, consequentemente, fosse adotado um modelo de ampla liberdade sindical, com sindicatos estruturados e solidificados (como é o caso do modelo Alemão, por exemplo)11, esse tipo de dispositivo poderia ser colocado em debate. Entretanto, com os sindicatos enfraquecidos e diante da precarização do trabalho que tem se agravado com o passar do tempo, como demonstram os dados estatísticos12, não há como considerar legítima a previsão de normas coletivas supressivas de direitos.

Quiçá o Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento do Tema 1046, trará novos horizontes e ponderada análise ao regime negocial trabalhista peculiar estabelecido no Brasil pelos artigos 611-A e 611-B da CLT.

*Bóris Chechi de Assis é advogado no Escritório Krieg da Fonseca Advogados. Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa - Especialidade em Ciências Jurídico-Laborais. Bacharel em Direito pela PUC/RS. Pesquisador na área de Direito do Trabalho. Pesquisador do Grupo de Estudos Araken de Assis - GEAK/IMED. Pesquisador do Núcleo de Pesquisas PUCRS/CNPQ Relações de Trabalho e Sindicalismo. Professor integrante do corpo docente do Instituto Ibero-Americano de Compliance - IIAC. 

**Helena Kugel Lazzarin é advogada no Escritório Lazzarin Advogados Associados. Doutora e mestre em Direito pela UNISINOS. Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Bacharel em Direito pela PUC/RS. Pesquisadora nas áreas de Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital: retrocesso social e avanços possíveis, vinculado à UFRGS/USP/CNPQ. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas PUCRS/CNPQ Relações de Trabalho e Sindicalismo. Integrante do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS. Parecerista da Revista da AGU - Advocacia-Geral da União. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa no Sistema de Saúde Mãe de Deus - CEP/SSMD. Professora integrante do corpo docente do Curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho da PUC/RS.

__________

1 DIAS, Carlos Eduardo Oliveira. A Negociação Coletiva e a Lei 13.467: resistindo à interpretação regressiva. In: SEVERO, Valdete Souto. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz (coords.). Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 455.

2 Ou seja, o princípio da aplicação da regra mais favorável é consectário do princípio da proteção, norte de todo o sistema jurídico-laboral brasileiro (RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1978. p. 43; e DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2020. p. 238).

3 TRINDADE, Rodrigo. Negociado sobre Legislado: o mito de Ulisses e as sereias. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães. TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia. FONTES, Saulo Tarcísio de Carvalho (orgs.). Reforma Trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTr, 2017. p. 178-179.

4 SANTOS, Roseniura. Negociado sobre o Legislado e os Limites Impostos pelas Normas Internacionais do Trabalho e Outros Tratados de Direitos Humanos. In: SILVA FILHO, Carlos Fernando da. JORGE, Rosa Maria Campos. RASSY, Rosângela Silva (orgs.). Reforma Trabalhista: uma reflexão dos auditores-fiscais do trabalho sobre os efeitos da Lei n. 13.467/2017 para os trabalhadores. São Paulo: LTr, 2019. p. 268-270.

5 TRINDADE, Rodrigo. Negociado sobre Legislado: o mito de Ulisses e as sereias. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães. TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia. FONTES, Saulo Tarcísio de Carvalho (orgs.). Reforma Trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTr, 2017. p. 183.

6 MIGUEL, Luís Felipe. Dominação e Resistência. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 166.

7 ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 8ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora Unicamp, 2002. p. 69-70.

8 ANTUNES, Ricardo. PRAUN, Luci. A Sociedade dos Adoecimentos no Trabalho. Disponível aqui. Acesso em: 31 out. 2020.

9 DUKES, Ruth. Otto Kahn-Freund: A Weimar Life. In: Modern Law Review, vol. 80, Issue 6, 2017. p. 1164-1177.

10 ASSIS, Bóris Chechi de. LAZZARIN, Helena Kugel. Estudo Comparado sobre Liberdade Sindical: Espanha, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. In: Revista Fórum Justiça do Trabalho. (No prelo)

11 ASSIS, Bóris Chechi de. LAZZARIN, Helena Kugel. Estudo Comparado sobre Liberdade Sindical: Espanha, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. In: Revista Fórum Justiça do Trabalho. (No prelo)

12 LAZZARIN, Helena Kugel. SANTOS JR., Rubens Fernando Clamer. O Aquecimento da Economia e o Pleno Emprego gerado pela Reforma Trabalhista: mitos e verdades. In: Revista Fórum Justiça do Trabalho, ano 37, n. 438, jun/2020. p. 35-36.