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O porquê não podemos aceitar escolas especiais para crianças e adolescentes

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Atualizado às 09:20

"(...) a segregação em face do diferente
impede o colorido da vivência cotidiana,
privando a todos da capacidade de reconhecer o outro"
(Edson Fachin, ADI 5357, STF)

Desde a publicação do decreto Federal 10.502, de 30 de setembro de 2020 (assinado pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro), reformulando a Política Nacional de Educação Especial - PNEE, especialistas, entidades e órgãos estão expondo publicamente contrariedade ao seu texto1.

Além das diversas manifestações em redes sociais, veículos de imprensa e eventos (notadamente por meios remotos, como lives e webinars) a norma também está sendo atacada por dois projetos de decreto legislativo que tramitam no Congresso Nacional, com a finalidade de sustá-la (PDL 437/20 o Senado Federal e PDL 433/20 na Câmara dos Deputados), bem como por uma Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (ADPF 751). Os argumentos são uníssonos, o decreto presidencial viola o direito fundamental de educação inclusiva, os Princípios da Igualdade, Não Discriminação e de Vedação ao Retrocesso.

Inicialmente, e para alguns menos afetos ao tema, pode parecer injustificada a indignação com o decreto, seja pelo nome bonito que o presidente lhe atribuiu: "Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida", seja pelo marketing na cerimônia de lançamento (com direito à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, reproduzindo o pronunciamento em Libras), seja, por fim, pela falsa sensação de liberdade conferida aos pais/responsáveis, legitimados a escolher se querem os filhos na rede regular ou na denominada rede especializada.

Em breve síntese, a PNEE foi divulgada pelo governo federal, em evento no Palácio do Planalto, com um discurso de inclusão, em tese, com a finalidade de garantir o atendimento aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Para tanto, dentre outras coisas, o decreto conceituou alguns termos em seu art. 3º, dentre eles educação especial, escolas especializadas e classes especializadas.

Destaco tais termos porque, embora tenha havido reprodução do conteúdo constitucional relativo à educação especial, como modalidade de educação escolar especializada oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino (art. 208, III CF), o decreto, simultânea e sorrateiramente, reintroduziu as terríveis figuras das escolas e classes especializadas2 como opções a serem consideradas na implementação da política de educação no País, readmitindo a possibilidade de segregação dos alunos com deficiência em ambientes distintos daqueles destinados aos alunos sem deficiência. Consente-se, assim, que alunos com deficiência estudem fora da rede regular/comum.

Numa leitura rápida e superficial do decreto, pode passar despercebida a discriminação havida no retorno desses termos à política educacional brasileira, bem como os perigosos desdobramentos no mundo fático, podendo até suscitar conclusões precipitadas de que a existência de escolas especiais e/ou classes especializadas são boas soluções, absolutamente inofensivas. Isso é compreensível, especialmente porque são sedutoras as promessas do decreto, no sentido de que tais unidades contarão com acessibilidade, equipamento, mobiliário, projeto pedagógico, material didático e profissionais especializados no atendimento do público-alvo (definido no art. 5º).

Não bastasse, é curioso que, tratando-se de um decreto imposto, sem prévia e suficiente oitiva dos interessados e da sociedade civil destinatária3, forja, ardilosamente, um viés democrático (que, na verdade não existe), ao dispor que o aluno e sua família participarão do processo de decisão quanto à alternativa educacional mais adequada (regular ou especializada), com apoio de equipe multidisciplinar, conduzindo à uma ficta impressão de liberdade de escolha4.

Especialistas e interessados em educação, em direitos infanto-juvenis, direitos humanos e direitos das pessoas definidas como público-alvo (com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação), reconhecem que o decreto representa um retrocesso em relação à política educacional anterior, instituída em 20085, cuja principal conquista foi eliminar a segregação total ou parcial desses alunos.

A política até então vigente concebia uma proposta pedagógica inclusiva dentro da escola regular/comum, sendo que eventuais necessidades específicas dos alunos deveriam se viabilizar dentro (e não fora) desse ambiente. Por ela a inclusão pressupunha, necessariamente, um processo de reforma sistêmica, incorporando aprimoramentos e modificações em conteúdo, métodos de ensino, abordagens, estruturas e estratégias de educação para superar barreiras, oferecendo a todos os estudantes (com ou sem deficiência) condições igualitárias de aprendizado e socialização (funções típicas da escola).

Essa perspectiva inclusiva foi resultado da forte influência exercida pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência CIDPD, aprovada pelo decreto legislativo 186/08 e promulgada pelo decreto 6.949/09, primeira norma internacional recepcionada com status de emenda constitucional no Brasil, por força do no §3º art. 5º da CF.

Antes disso, outras normas importantes já sustentavam o direito fundamental à educação especializada, com foco inclusivo, como a Constituição Federal (arts. 205, 206 e 208, III), o Estatuto da Criança e do Adolescente - lei 8.069/90 (art. 54, III), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - lei 9.394/96 e a resolução 2/01, do Conselho Nacional de Educação, o que não impedia, infelizmente, a segregação dos estudantes, cuja escolarização costumava ser oferecida em ambientes separados, em escolas especiais, isolados de alunos sem deficiência.

Esse arcabouço normativo foi costurado a partir das evidências sobre a eficácia do sistema educacional inclusivo que, diferentemente do que pode parecer num primeiro momento, não traz vantagens só aos alunos com deficiência, mas a todos que com eles convivam. Somente a convivência com o diferente, sobretudo entre crianças e adolescentes, é capaz de combater a estigmatização e a discriminação, com o desenvolvimento natural de capacidades e habilidades para lidar com o novo. Assim, se por um lado, o aluno com deficiência progride pelo ambiente misto de aprendizado desafiador, conquistando seu espaço e autonomia, por outro lado, os demais alunos e os profissionais da educação superam preconceitos e desenvolvem/aprimoram ferramentas e habilidades emocionais, como a empatia. Sem dúvida, a educação inclusiva é socialmente importante por oferecer uma plataforma estável de conexão entre diferentes, com a percepção da diversidade como um valor, tarefa determinante para a constituição de uma sociedade livre, plural, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação6.

Como resultado da política inclusiva, hoje cerca de 90% dos estudantes com algum tipo de deficiência estão matriculados em escolas comuns e, embora a quase totalidade esteja apenas integrada (inserida no sistema regular de ensino, mas com atendimento em salas exclusivas e atividades específicas), já se verifica um avanço em relação ao contexto que a antecedeu.

São esses os motivos da justificada repercussão negativa, na medida em que a PNEE, ao invés de fomentar medidas capazes de migrar da fase de integração para a efetiva inclusão, acabou ressuscitando as salas e escolas especiais, readmitindo a abolida segregação, em nada compatível com uma política dita inclusiva. Deste modo, além de anacrônica, diverge substancialmente dos documentos e leis que tratam do direito à educação às pessoas com deficiência vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, que impedem práticas discriminatórias e estimulam a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, começando pelo acesso à escola (razão pela qual, inclusive, está sendo questionada no legislativo e impugnada judicialmente).

Ora, nesse momento da história o Governo Federal deveria eliminar as dificuldades encontradas nas escolas regulares e não criar novas barreiras, com um efeito cliquet na proteção do direito fundamental à educação inclusiva. Ao contemplar investimentos para escolas especiais opta, retrógrada e voluntariamente, por drenar recursos que deveriam se destinar ao aprimoramento de instalações físicas, treinamento de professores e outras medidas necessárias à consecução da política de inclusão.

Como consequência do acima exposto, o decreto coloca um peso sobre os pais/responsáveis que, supostamente, podem indicar onde matricular seu filho: podem "optar" entre segregar (escolas especializadas, em tese e pela promessa, beneficiadas com mais investimentos) ou incluir (escolas regulares, cuja estrutura é naturalmente deficitária). Isso aperta o coração, além de revelar covardia, porque não implica em direito de escolha, mas sim na falta de escolha.

Parece cristalino, assim, o porquê não podemos aceitar escolas especiais para crianças e adolescentes.

__________

1 Dentre os diversos atores que se mobilizam contra o decreto, os Ministérios Públicos Estaduais de todo o país lançaram campanha conjunta pedindo sua revogação, como órgão defensor da ordem jurídica e do regime democrático de direito, reafirmando para toda a sociedade a luta, pelos promotores de justiça, em favor da educação das pessoas com deficiência, sem segregação e sem discriminação #SegregaçãoNãoÉEducação #SegregarNãoÉIncluir.

2 Art. 3º, VI e VII, respectivamente, "Instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos)" e "aquelas organizadas em escolas regulares inclusivas, com acessibilidade de arquitetura, equipamentos, mobiliário, projeto pedagógico e material didático, planejados com vistas ao atendimento das especificidades do público ao qual são destinadas, e que devem ser regidas por profissionais qualificados para o cumprimento de sua finalidade".

3 Desde 2018 se cogitava a alteração na PNEE, contudo, a atualização se deu em meio à Pandemia, em contexto absolutamente desfavorável e não prioritário e, consequentemente, sem a discussão necessária com a sociedade e interessados. Segundo a professora da Faculdade de Educação da USP, Carla Biancha Angelucci as reuniões foram realizadas com algumas entidades escolhidas pelo governo e não houve um debate amplo. Disponível aqui . Acesso em 17 out, 2020.

4 A mera previsão de escolas e classes especiais no decreto acaba por estimular os setores da educação a recusarem alunos com deficiência nas escolas regulares/comuns. Lembre-se, dentre outros lamentáveis episódios, que a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino questionou a constitucionalidade do Estatuto das Pessoas com Deficiência e o dever de inclusão, alegando, ainda, medidas de alto custo para as escolas privadas (ADI 5357, julgada improcedente). Ademais, o legislador penal foi obrigado a criar tipo próprio para criminalizar a conduta de escolas públicas ou particulares que neguem a matrícula a aluno com deficiência (art. 8º da lei 7.853/89). Em outras palavras, a liberdade dos pais/responsáveis passará por uma (ligeira e sutil) coação em prol do ensino segregado, e muitos sequer perceberão.

5 Disponível aqui. Acesso em 18 out, 2020.

6 Disponível aqui. Acesso em 19 out, 2020.  O estudo nomeado "Os benefícios da educação inclusiva para estudantes com e sem deficiência", foi coordenado pelo professor Thomas Hehir, da Escola de Educação de Harvard, lançado em 2016 pelo Instituto Alana e ABT Associates. A análise compila resultados de mais de 89 estudos, selecionados num universo de 280 artigos publicados em 25 países, realizados por meio de diversas metodologias e com diferentes populações de estudantes.