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Uma outra análise do caso #ficavivi

terça-feira, 2 de março de 2021

Atualizado às 09:36

No âmbito do Direito da Infância, a hashtag #ficavivi tem dominado as publicações em redes sociais e as opiniões de algumas dezenas de pessoas.

Em resumo, o caso envolve a criança Vivi, que foi colocada em família substituta em decisão liminar e, depois de 06 anos, o Poder Judiciário acolheu pedido da avó biológica para determinar seu retorno à família biológica, sob cuidados da avó. Durante esse período, Vivi estava sob os cuidados de um casal que pretendia a sua adoção. É uma situação difícil, mas o que funcionou como diretriz do Poder Judiciário nessa decisão?

A Constituição da República de 1988 adotou, nos arts. 226 e 227, a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança. A doutrina da proteção integral determina que as crianças e adolescentes tenham os mesmos direitos que pessoas adultas (ou as demais pessoas, para ser exata), enquanto o princípio do melhor interesse diz que as decisões que envolvam crianças ou adolescente devem considerar o melhor para eles.

Na doutrina brasileira existe pouco debate sobre o significado de melhor interesse. Em geral, entende-se que é a decisão que privilegia o que é melhor para a criança ou adolescente, muito embora não haja nenhum parâmetro mais concreto sob o que significa esse princípio.

Na doutrina inglesa, autores como Geraldine Van Bueren, Michal Freedman e John Eekelar, argumentam que o melhor interesse significa o respeito aos direitos ou interesses imediatos da criança ou adolescente, como também o respeito à opção futura e autônoma por eles, quando, adultos, possam fazer as suas próprias escolhas. Esse é o sentido que tem sido usado na União Europeia, quando se analisa, por exemplo, a norma sobre proibição de cirurgia de crianças intersexo, salvo urgências para a funcionalidade corporal. Nesse caso, a orientação é proibir a escolha imediata do gênero ou do sexo, deixando em aberta a possibilidade de escolha futura do gênero e/ou sexo pela própria criança ou adolescente, seja quando ela já tiver maior discernimento ou quanto já tiver alcançado a vida adulta.

Esse sentido de melhor interesse não está presente na doutrina nem na jurisprudência brasileiras, que acaba se pautando por critérios mais subjetivos do julgador na efetivação desse princípio.

Ao tratarmos de adoção e convivência familiar em sentido mais amplo, a efetividade do melhor interesse é realizada pelo art. 19 do ECA, segundo o qual "é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral".

A regra é, nos termos do art. 19 do ECA, que a criança permaneça com a família biológica - isto é, pais e/ou mães - ou com a família extensa - entendida essa como aquela que se estende além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com quem a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (art. 25 do ECA).

A necessidade de respeitar a permanência da criança ou do adolescente na família natural ou extensa ou ampliada é reforçada no § 1º do art. 39 do ECA, que diz: "a adoção é medida excepcional e irrevogável, a qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta lei".

O que aconteceu no caso Vivi para que hoje chegássemos a essa movimentação emocional nas redes sociais?

Uma das possibilidades é que não foi adotada a orientação do ECA de prevalência da família extensa, o que fica mais claro quando se lê as notícias que falam das decisões judiciais determinando o retorno da criança para o convívio da avó biológica.

Infelizmente, por estarmos em direito da infância, o processo é sigiloso, de modo que não conseguimos saber exatamente o que está sendo discutido nele e quais são as provas que estão nos autos do processo. Por isso, precisamos confiar nas informações transmitidas pela imprensa.

Pelas notícias divulgadas, percebemos que a avó paterna pediu judicialmente a guarda da neta, porque o pai da criança está preso e a mãe não teria condições de cuidar de Vivi. Após dois pedidos judiciais negados, ela recorreu, mas o casal que estava com a guarda provisória de Vivi há 06 anos recorreu.

Analisando o caso à luz do ECA, a avó tem razão e a responsabilidade para que a confusão tenha se instaurado é do CNJ, que há anos permite a suspensão cautelar do poder familiar e a inclusão provisória de crianças no sistema nacional de adoção.

O ECA exige o trânsito em julgado para a colocação de crianças ou adolescentes em adoção, o que significa que foram tentadas a reintegração da criança com a família natural ou com a família extensa, mas ela não se mostrou possível ou inadequada porque a violação a direitos da criança permanece. Daí, ocorre a destituição do poder familiar.

Apesar de o ECA exigir o trânsito em julgado (art. 39, § 1º), o CNJ, desde a Resolução 54/2008, substituída pela resolução 289/2019, autoriza a suspensão provisória do poder familiar e a inclusão da criança ou adolescente em disponibilidade para adoção. Ainda que não tenham se esgotados as tentativas de reintegração com a família natural ou extensa.

Ou seja, a história de Vivi e as dificuldades atuais são o resultado de descumprimentos da lei: a falta de tentativa de reintegração com a avó antes da ação judicial e a decisão judicial de colocação em família substituta antes do término da ação de destituição do poder familiar.

Nem a avó nem os pais adotivos são responsáveis pela confusão, que surgiu apenas pela não observância da lei.

E, Vivi, como cuidamos dela? Arriscando uma opinião sem ler o processo e os estudos sociais e psicológicos que devem estar ali, eu acharia melhor manter Vivi com a família adotiva mas preservar a convivência com a avó. É preciso reconhecer que depois de 6 anos, ela formou vínculo de afeto com a família afetiva, mas, com a experiência que os meus 10 anos de defensoria pública me tem ensinado, um dia ela vai querer "saber de onde veio" e por essa razão, e para permitir que ela escolha que no futuro ela mantenha ou não os vínculos com as famílias materna e paterna, o melhor seria manter a adoção mas preservar a convivência constante com as famílias biológica. Mas essa é a opinião de quem analisa como observadora externa, mais olhando para o Direito do que para os fatos que estão acontecendo.