COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas Norte-Americanas >
  4. O grand jury, indictment e Donald Trump

O grand jury, indictment e Donald Trump

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Atualizado às 08:47

Como amplamente circulado nos jornais e redes sociais, aguarda-se, amanhã, a aparição de Donald Trump perante juízo criminal em Nova Iorque, onde, ao que tudo indica, será instaurada ação penal contra o ex-presidente, fato sem precedentes na história dos E.U.A..

O caso trata de pagamento do chamado hush money, dinheiro utilizado em troca da discrição, silêncio ou omissão de informação a respeito de alguém, via de regra pessoas famosas, artistas, políticos, banqueiros e outros personagens cujas circunstâncias de suas vidas atraem o interesse público midiático.  A acusação ainda não foi trazida a público; todavia, especula-se o cometimento de inúmeros crimes envolvendo falsificação de documentos e que estariam relacionados ao pagamento de 130 mil dólares à ex-atriz de filmes pornográficos, Stormy Daniels, durante as eleições de 2016, em possível violação das regras pertinentes ao processo eleitoral e licitude quanto à utilização de verbas.

O caso, um dos inúmeros em que o ex-presidente figura como réu1, corre na Procuradoria Distrital do Condado de Nova Iorque, também conhecida como Procuradoria Distrital de Manhattan (Manhattan District Attorney) .  Trata-se de órgão estadual que tem função semelhante ao Ministério Público.

A Procuradoria Distrital de Manhattan é comumente confundida com sua congênere e igualmente famosa Procuradoria Federal do Distrito Sul de NY (Office of the U.S. Attorney for the Southern District of New York - SDNY), que trata de crimes federais naquela jurisdição.  Ambas têm peculiar proeminência em razão de ser Nova Iorque a sede financeira dos EUA e, portanto, onde transcorrem grandes causas civis e criminais relacionadas ao mercado financeiro, imobiliário, comercial e atividades adjacentes. 

Os principais jornais nos dão conta do indictment pelo grand jury.  Como sói ocorrer nos processos de transmigração de conceitos e termos jurídicos, muito embora encontrem etimologia comum, são frequentes os falsos cognatos.  Entre nós, "indiciamento" é ato privativo da autoridade policial (delegado) atribuindo autoria (ou participação) de infração penal a uma pessoa, que passa a ser o "indiciado". 

Já no sistema americano, indictment é a própria acusação formal, ato com feições similares à nossa "denúncia" na ação penal pública.  Ocorre que, no sistema processual norte-americano federal, assim como em quase metade dos estados, o oferecimento da denúncia pelo órgão de acusação (promotorias, em função equivalente ao nosso Ministério Público), no caso dos crimes de maior potencial ofensivo, deve ser aprovada por um Grand Jury, figura que não encontramos em nosso sistema.  Trata-se de garantia constitucional, com fundamento na famosa 5ª Emenda à Constituição de Filadélfia:

"No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury(...)".

Ou seja, no processo-crime federal norte-americano, assim como na jurisdição de vários de seus estados, a promotoria deve obter o indictment, também chamado de true bill, através do Grand Jury, e só a partir daí é que o processo criminal pode ser instaurado.  Trata-se de condição de validade do processo-crime.

Embora os fundamentos filosófico-políticos do grand jury sejam os mesmos do "júri" (i.e., o julgamento por seus concidadãos), eles não devem ser confundidos.  O Grand Jury deve ser visto como um órgão ad hoc do processo penal nos EUA, composto por 16 a 23 cidadãos, cuja função é examinar os indícios e provas coletados durante a investigação criminal e que lhes são apresentados pela promotoria, sendo necessário que ao menos 12 membros (federal) ou a maioria (nos Estados, cujo número mínimo varia) aprovem a denúncia, que é o indictment. 

Para a doutrina norte-americana, o Grand Jury integra a fase inquisitiva do processo; logo, seus procedimentos não se submetem ao contraditório, nem à totalidade das regras processuais penais norte-americanas, e correm sob segredo de justiça, não estando nem o indiciado, nem seus advogados presentes.  O Grand Jury tem poderes de intimar (subpoena) documentos e convocar testemunhas. 

O arraignment está agendado para amanhã.  Trata-se de audiência inaugural perante o Juízo Criminal Estadual de NY na qual a Promotoria irá oferecer formalmente a denúncia, e pelo que se iniciará o processo penal contra o ex-Presidente Donald Trump.

O acusado, nesse momento, deverá apresentar um plea (declaração), que poderá ser o de não-culpado (plea of not guilty), culpado (plea of guilty) ou nolo contendere (no contest plea, renúncia ao direito fundamental de defesa em juízo).  Embora funcionalmente semelhantes, a diferença entre a declaração de culpa (guilty plea) e o nolo contendere está em que, neste último, os efeitos quanto à confissão dos fatos não podem ser utilizados na esfera cível em casos correlatos.

A partir daí também abrem-se possibilidades para o conhecido plea bargain, que é bem definido por Orlando Faccini Neto como:

"mecanismo processual por meio do qual a acusação e a defesa têm a possibilidade de entrar em acordo sobre o caso penal, com a consequente imposição de pena, sendo o avençado sujeito à homologação judicial.  O acordo pode assumir diversas formas e, em geral, consiste em o acusado declarar-se culpado de um ou mais crimes, de modo que, como contrapartida, a acusação deixa de lado outras imputações, ou aceita que o réu se declare culpado de crimes de menor gravidade, ou, ainda, não se opõe a que o acusado receba determinada sentença, em patamar inferior àquela que eventualmente exsurgiria de sua normal condenação no processo"2. 

Não é certo, ainda, se o Presidente será recolhido preso na mesma ocasião.  A decisão recairá sobre o juiz do caso, que irá avaliar os termos da acusação e, tipicamente, as circunstâncias pessoais do réu.  Dadas as características extremamente ímpares do caso, é possível que ele seja solto mediante recognizance, que é um acordo perante o Juízo em que o réu se compromente ao pagamento de determinada quantia caso não venha a cumprir intimações futuras, diferenciando-se do bail (fiança) por não haver depósito prévio.

Há inúmeras outras incertezas jurídicas que pairam sobre o caso.  Entre elas, a questão de direito constitucional a respeito da possibilidade de persecução penal contra ex-presidente. Mas parece haver consenso doutrinário no sentido de que, se é que incide qualquer imunidade, ela alcançaria apenas os atos de gestão no exercício do mandato e não os atos praticados em interesse próprio ou particular.

Conta-se, quase que em caráter de anedota, que o Presidente Ulysses Grant foi preso por excesso de velocidade quando a galope em seu cavalo.  Richard Nixon, envolvido no escândalo Watergate, renunciou e, antes de sofrer um provável indictment, recebeu o perdão presidencial de seu sucessor, Gerald Ford. Bill Clinton também escapou de um indictment por falso testemunho no caso envolvendo sua estagiária.

Mas, seja como for, é certo que 4 de abril de 2023 será uma efeméride na história Norte-americana, já que será a primeira vez em que um ex-Presidente dos EUA se tornará réu em ação penal. 

__________

1 O site Just Security lista um rol infindável de ações contra o ex-Presidente Donald Trump, com uma pletora de possíveis ilicitudes tanto na área cível e eleitoral, como criminal.  Disponível aqui.

2 Notas sobre a instituição do plea bargain na legislação brasileira.  Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 166. ano 28. p. 175-201. São Paulo: Ed. RT, abril 2020.