COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas Norte-Americanas >
  4. O que é o "Chapter 11" em matéria de recuperação judicial?

O que é o "Chapter 11" em matéria de recuperação judicial?

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Atualizado em 9 de maio de 2024 10:19

Em meados de 2020, como amplamente divulgado pela mídia, a holding Latam Airlines (Latam Airlines Group S/A) e diversas de suas afiliadas, inclusive a Tam Linhas Aéreas S/A e a ABSA Aerolinhas Brasileiras S/A, ajuizaram pedido de Recuperação Judicial junto à Corte Federal Distrital Meridional de Nova Iorque (Bankruptcy Court of the Southern District of New York), tendo por base o chamado Chapter 11.  Na esteira da crise da Covid-19, igual caminho seguiram outras empresas latino-americanas, tais como as aéreas Avianca e Aeroméxico, a Rede hoteleira Posadas e, mais recentemente, em janeiro deste ano, a Gol Linhas Aéreas Inteligentes S/A.

Mas por que motivo empresas estrangeiras ajuízam o pedido de Recuperação nas cortes dos EUA; e sendo o "Chapter 11" uma referência a Capítulo, a que se refere?

Antes de mais, é importante notar que, ao contrário do que a percepção popular intui, a recuperação judicial é algo positivo e não deletério.  Revela, por um lado, a dificuldade financeira possivelmente transiente de determinada empresa devedora, mas se apoia, sobretudo, na confiança da própria empresa, dos credores e do mercado quanto à sua capacidade de soerguimento e superação da crise.

Como sabemos, no Brasil, a Recuperação Judicial propriamente dita surge com a promulgação da L. 11.101 em 20051, outrora inexistente sob a égide da antiga Lei de Falências e Concordatas (lei 7.661/45).  Nos Estados Unidos, a legislação é antiga e remonta ao fim do século XIX. E é tratada como espécie do gênero legislativo "falência" (bankruptcy), o qual, muito curiosamente, é um dos poucos temas especificamente elencados no sucinto rol de atribuições legislativas do Congresso definidas pela Constituição dos EUA de 1787 (art. 1, Seção 8, Cláusula 4)2.

Dada a enorme complexidade do tema, incluindo-se a variedade de possibilidades, pedidos, obrigações, perfis, devedores - de indivíduos a conglomerados multinacionais de empresas -, o diploma legislativo que trata do assunto nos EUA é um Código e não apenas uma lei3.  Trata-se do Bankrutpcy Code (Código de Falências)4.   O Bankruptcy Code constitui a totalidade do Título 11 do Código de Leis dos Estados Unidos5, dentro do qual se destacam os seguintes capítulos mais conhecidos:

Chapter 7 - Liquidação

Chapter 11 - Reorganização

Chapter 13 - Reestruturação de débitos do devedor individual

A usual referência ao "Chapter 11", portanto, significa que o pedido inicial feito ao Juízo Federal de Falências tem base no Capítulo 11 do Código, ou seja, com amparo na legislação que trata especificamente da reorganização da empresa devedora. 

Não diferente do nosso sistema, a reorganização prevista no Chapter 11 têm, entre outros, os principais objetivos: (1) oferecer alívio temporário aos devedores em relação a obrigações financeiras que não mais podem suportar em determinado momento, de tal modo que consigam, assim, se reorganizar, captar novos recursos e alongar ou modificar os perfis de suas dívidas, e (2) maximizar o atendimento  aos  legítimos interesses dos credores e demais interessados de forma ordenada, eficiente e ponderada.

As regras de competência do juízo recuperacional norte-americano são muito indulgentes para empresas estrangeiras, bastando, segundo a Seção 109 da Lei, que demonstrem "ter um lugar de negócios" ou "bens" nos EUA, sendo suficiente, assim, um mero escritório, contas correntes ou de investimentos ou, como sói ocorrer, negociação de ações em bolsa de valores.

E a escolha da jurisdição norte-americana por empresas internacionais deve-se a alguns fatores que lhes torna favorável o uso do Chapter 11.  Em primeiro lugar, estão a praticidade e eficiência do procedimento norte-americano, ao abrigo de proteções conjunturais e estruturais que podem não estar presentes em outros cantos do mundo, como celeridade do rito, ausência de corrupção e a própria eficiência das cortes a partir da experiência adquirida com o elevadíssimo número de casos congêneres, concentrados sobretudo na Corte Distrital Meridional de NY.

Além disso, uma das principais vantagens do rito do Chapter 11 é a proteção dos administradores da empresa recuperanda.  Em primeiro lugar, contra injunções de outras jurisdições mundo afora, o que, na prática, se garante pela proeminência dos EUA no teatro global empresarial e geopolítico, concentrando no juízo empresarial norte-americano as decisões atinentes à reorganização; em segundo lugar, e de enorme importância, é dado à administração permanecer no comando da empresa durante a recuperação, o que, muitas das vezes, não ocorre em outros sistemas legislativos, onde é usual a nomeação de gestor e/ou administrador judicial. 

Outro relevante atrativo, previsto na Seção 364 do Chapter 11, é a possibilidade de se levantarem recursos durante o curso do procedimento, o que é conhecido como DIP (debtor-in-possession) financing, instrumento de gigantesca importância para a reestruturação da empresa e reequacionamento das dívidas.  Sobressaltou a importância dessa ferramenta financeira no caso das empresas aéreas latino-americanas, onde, ao contrário do que se observou nos EUA, Europa e Ásia, o socorro governamental foi ínfimo ou nenhum durante a crise da Covid-19.

Como exemplo, a LATAM Airlines Group oficialmente completou sua recuperação ao abrigo do Chapter 11 em novembro de 2022, tendo recebido a injeção de recursos significativos de shareholders proeminentes e apoio estratégico de suas parceiras Delta Airlines e Qatar Airlines, soerguendo-se com uma frota mais moderna - incluindo a aquisição de 87 Airbus A-320neos - uma posição financeira fortalecida com liquidez de U$2.2 bilhões e dívida total reduzida em cerca de U$ 3.6 bilhões.  O mesmo tendo ocorrido com a aérea Avianca, que logrou levantar investimentos novos da ordem de U$ 1.7 bilhão, reduzir o passivo e adquirir U$ 1 bilhão em liquidez.

O Chapter 11, mundialmente conhecido, é valiosíssima plataforma normativa para empresas americanas e multinacionais em crise, servindo de poderoso instrumento (nobre pelos objetivos e eficiente pelos resultados) para circunstâncias e casos diversos onde se requer uma jurisdição célere, experiente e pró-ativa no exercício de seu papel de solucionar conflitos, em um processo de natureza atípica, pois todos interessados concorrem, em última análise, pelo mesmo resultado: a sobrevivência saudável da empresa.

__________

1 Modificada substancialmente pela L. 14.112/2020

2 Embora o assunto tenha privilegiado tratamento em sede constitucional desde o nascimento da República Norte-americana, ele não constava dos Articles of Confederation (a Carta que precedeu a Constituição dos EUA) e foi pouco tratado na Convenção de Filadélfia, tendo sido incluído na Constituição como uma das competências legislativas do Congresso Federal por sugestão de Charles Pinckney, constituinte da Carolina do Sul.  Cf. Kennedy, Frank R., Bankruptcy and the Constitution, 33 Law Quadrangle.  University of Michigan Law School (1989).  Disponível aqui.

3 Aliás, talvez esse importante aspecto metodológico sirva como boa sugestão de inovação legislativa para futuras revisões de nossa Lei de Recuperação Judicial.

4 A outra importante fonte normativa atinente ao tema são as Regras Federais Processuais de Falências, promulgadas pela Suprema Corte Norte-Americana, a partir de recomendações provenientes da Conferência Judicial dos EUA e seus comitês, e com anuência do Poder Legislativo (Congresso).

5 United States Code, que possui 54 títulos divididos por assuntos.