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República em caos, res publica em cacos

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Atualizado às 13:17

Poucas palavras da língua portuguesa têm raízes etimológicas tão conhecidas quanto "República": o termo resulta da união entre os vocábulos latinos res e publica: "res" equivale a uma coisa concreta e existente, "publica" faz referência à posse compartilhada.

Uma República, pois, é coisa concreta, existente e coletivamente possuída por todo um conjunto que a legitima - existe, aqui, um forte teor de comunidade.

Além disso, um teórico mais desanimado poderia explicá-la, corretamente, como um modelo de Estado em que o poder de decisão divide-se entre os cidadãos ou entre representantes eleitos por estes. Até aqui, porém, não há muita noção da complexidade republicana.

Por tal, devemos adicionar mais dois detalhes ao constructo que estamos formando. Primeiramente, é imprescindível que haja um arcabouço jurídico consensualmente estabelecido e capaz de preservar a existência do Estado. Segundamente, os governantes escolhidos se encabem de responsabilidades republicanas perante seus votantes e sob o peso das instituições. Junte à mistura, por fim, algumas pitadas de temperos modernos - tripartição dos poderes, federalismo, garantias fundamentais. Voilà!

Seguindo toda a evolução permitida inicialmente pela seminal noção da res publica, agora está montada, nos melhores moldes modernos, uma República legitimada, representativa, legalista, federativa e estável.

Em contrapartida, se os alicerces de uma República são balançados e testados a todo tempo, a incerteza não demora a atingir mesmo os princípios mais profundos que amparam esta conjuntura.

Nessa perspectiva, a noção da publicidade (no sentido de "característica daquilo que é público") está sempre suscetível a esse tremor: em cenários de instabilidade plantada, é sempre possível que haja uma paulatina distanciação entre indivíduos insatisfeitos e a lei; entre estes e a República; entre estes e as coisas públicas - res publica no sentido literal. Assim, o sujeito passa a ver as leis como opcionais, deslegitima a República por irrazoavelmente não se sentir contemplado e, por fim, esquece completamente que aquilo que é público é nosso e foi pago com nossos impostos. Há um enfraquecimento drástico à primeira pessoa do plural: o "nós, o povo" dá lugar ao reduzido "nós, os meus amigos".

Esta recente fragilização da relação indivíduo-democracia, as ameaças de ruptura constitucional declamadas nos últimos tempos e o consequente desrespeito aos princípios republicanos explicam as tenebrosas cenas testemunhadas durante o dia de ontem.

Uma horda de hooligans partidários invadiu a sede de cada um dos Três Poderes e depredou tudo de belo que passava pela frente: um Di Cavalcanti pertencente ao Congresso foi furado como um queijo suíço, o crucifixo dourado exibido atrás do Plenário do STF foi arrancado da parede, as belíssimas vidraças do Planalto foram reduzidas a cacos de vidro. Foi o desfecho planejado, violento e destrutivo de narrativas descaradamente golpistas que se iniciaram muito, muito, muito antes da hecatombe de 8 de janeiro de 2023.

Em suma, as agoniantes batalhas de Brasília e os eventos que se transcorreram até seu estopim exemplificaram perfeitamente como a inação perante narrativas de teor disruptivo rapidamente traz consequências fáticas.

Uma República em caos rapidamente transformou res publica, literalmente, em cacos. 

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Esta é a primeira coluna do ano de 2023! Gostaríamos de reafirmar nosso compromisso de trazer os melhores conteúdos e textos para nossos queridos leitores durante este ano que se inicia. Muito obrigado pelo apoio em 2022, os resultados têm sido fantásticos!

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P.S: O Migalhas Para Estudantes passou quase um mês preparando uma coluna especial sobre Direito e Inteligência Artificial que seria postada hoje, dia 9 de janeiro de 2023. O problema é que não contávamos com as cenas bizarras de ontem (nem a tranquilíssima polícia do Distrito Federal, pelo que tudo indica). Para a tristeza de todos nós, que gostaríamos de falar sobre temas legais e interessantes, não há clima agora para falarmos sobre robôs & Constituição.

Fica para a próxima.