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O contrato nulo que produz efeitos

quinta-feira, 28 de março de 2024

Atualizado às 09:22

A tradicional afirmação de que o nulo não produz efeitos ("quod nullum est nullum producit effectum") é cotidianamente desmentida pela realidade prática. São exemplos recorrentes dessa "eficácia do nulo" o casamento putativo, a chamada "adoção à brasileira", os atos de menor monta praticados por incapazes, aqueles decorrentes de lei declarada inconstitucional, o contrato de trabalho nulo que gera o direito à remuneração, a compra e venda nula que gera posse de boa-fé e a alegação de nulidade que implicar venire contra factum proprium, entre tantos outros. 

A frequência do fenômeno é tamanha que levanta até dúvidas sobre sua excepcionalidade, já reconhecida pela doutrina mais clássica dedicada ao tema1.  Fala-se, assim, de curiosa "eficácia do contrato ineficaz"2, que não é o resultado de uma teimosa realidade que, apartada do plano jurídico, resiste à clareza teórica dos conceitos, mas parte intrínseca da complexidade do ordenamento, a ser analisada não como exceção oculta que se pretende despercebida, mas manifestação de relevantes interesses a serem levados em conta pelo intérprete.

A doutrina contemporânea vem se dedicando ao tema sob perspectiva funcional, de modo a identificar que a norma abstrata e geral que comina a nulidade de determinado negócio atende, em concreto, a um interesse, o qual, em certas condições, pode ser mais protegido pela conservação dos efeitos daquele negócio do que pelo seu desfazimento3.  Daí o entendimento consolidado no enunciado n. 537 das Jornadas de Direito Civil (CEJ/CJF), segundo o qual "a previsão contida no art. 169 não impossibilita que, excepcionalmente, negócios jurídicos nulos produzam efeitos a serem preservados quando justificados por interesses merecedores de tutela". 

Nesse sentido, vem se destacando como determinados princípios podem contribuir para justificar a eficácia do contrato nulo4.  Eduardo Nunes de Souza aponta conservação, boa-fé subjetiva, boa-fé objetiva, enriquecimento sem causa, vulnerabilidade e segurança jurídica como valores idôneos a permitir a modulação de efeitos do negócio nulo, ressaltando tratar-se de rol que não se pretende minimamente exaustivo5.  Marcelo Dickstein, por sua vez, identifica como critérios a preeminência das situações existenciais sobre as patrimoniais, a boa-fé objetiva e a função social do contrato6.  Já Hamid Charaf Bdine Jr. indica como guias "os valores da solidariedade e da cooperação ditados pelo texto constitucional e, em seguida, os princípios da função social do contrato, da boa-fé, da conservação, e o que veda comportamentos contraditórios, bem como os da proporcionalidade e da razoabilidade"7

O disposto no artigo 21 da LINDB parece trazer novo fôlego para esse debate, embora ainda pouco abordado pela doutrina civilista. Introduzido por reforma administrativa de viés pragmático-consequencialista de 2018, passou a determinar que a decisão que invalide um contrato não apenas "deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas", mas ainda deverá "indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais". Regulamentada pelo D. 9.830/2019, a disposição dá ensejo, ainda, à possibilidade expressa de, no âmbito da decisão de invalidação, "I - restringir os efeitos da declaração; ou II - decidir que sua eficácia se iniciará em momento posteriormente definido" (art. 4º, §4º). A inovação vem fundada, segundo a doutrina que embasou o projeto, na constatação de que "decisões irresponsáveis que desconsiderem situações juridicamente constituídas e possíveis consequências aos envolvidos são incompatíveis com o Direito". 

A hipótese é especialmente relevante nos casos de contratos de relevante interesse público viciados na origem por atos de corrupção8.  Não se trata, naturalmente, de deixar de cominar as sanções para os delitos cometidos, mas de resguardar os efeitos do contrato que alcançam interesses metaindividuais de não contratantes. Na imagem caricata, não se destrói uma ponte construída entre dois municípios e que beneficia a coletividade somente porque se descobriu que os responsáveis pela obra superfaturaram preços da construção. Entra em jogo, aqui, para mitigar o impacto da invalidade, a tão vilipendiada figura da função social do contrato9.  Nesse contexto, a conservação dos efeitos do contrato pode atender a um valor social10

É imperioso, entretanto, que essa conservação seja realizada de forma ponderada e com rigor científico, sob pena de transformar-se em instrumento de arbitrariedades, fazendo-se suposta justiça social às expensas do patrimônio dos contratantes. Nesse sentido, já se destacou que a conservação de efeitos do contrato nulo deve ser proporcional à essencialidade e abrangência desses efeitos para os interesses metaindividuais envolvidos, bem como deve ser operada de forma tendencialmente temporária e minuciosamente fundamentada11.  Nesse caminho, espera-se que essa modulação da decisão de invalidação do contrato prevista pela LINDB possa tornar-se instrumento importante de ponderação e não concessão ao arbítrio judicial.

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1 Entre outros, MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, tomo IV, 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 75; AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 64; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade, 9. ed.. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 230-231.

2 DÍEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial, tomo I, 6. ed. Pamplona: Thomson-Civitas, 2007, p. 570-571.

3 BUNAZAR, Maurício. A invalidade do negócio jurídico. São Paulo: Thompson Reuters, 2020, recurso eletrônico: "defende-se que, como corolário do favor negotii, o intérprete-adjudicador deverá deixar de aplicar a sanção de invalidade se, em dado caso concreto, restar evidenciado que a ineficacização implicará contrariar a finalidade da norma jurídica".

4 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 374.

5 SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 294.

6 DICKSTEIN, Marcelo. Nulidades prescrevem? Uma perspectiva funcional da invalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 51, 65 e 80, respectivamente.

7 BDINE JR., Hamid Charaf. Efeitos do negócio jurídico nulo. Tese. São Paulo: USP, 2007, p. 190.

8 MARTINS-COSTA, Judith. Efeitos obrigacionais da invalidade: o caso dos contratos viciados por ato de corrupção. In BARBOSA, H.; SILVA, J. C. F. (coord.). A evolução do direito empresarial e obrigacional, v. II. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 230.

9  Por exemplo, KLIEMANN, Ana Carolina. O princípio da manutenção do negócio jurídico: uma proposta de aplicação. Revista trimestral de direito civil, v. 26. Rio de Janeiro: abr.-jun. 2006, p. 12-13; HADDAD, Luís Gustavo. Função social do contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 246.

10 ZANETTI, Cristiano de Souza. A conservação dos contratos nulos por defeito de forma. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 64.

11 Seja consentido remeter a KONDER, Carlos Nelson. Função social na conservação de efeitos do contrato. Indaiatuba (SP): Foco, 2024.