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Conversando com o constituinte originário: Irapuan Costa Júnior

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Atualizado às 08:15

A comunicação entre seres humanos nem sempre é unívoca. Há quem diga "sim", pretendendo dizer "não". Mensagens virtuais são incompreendidas, ironias às vezes precisam ser explicitadas, intenções subliminares são insinuadas e tantas outras possibilidades tumultuam o processo de compreensão da linguagem escrita. Talvez por isso o Código Civil Brasileiro tenha se preocupado em disciplinar que "[a] manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento" (art. 110). 

Pois bem. 

Se alguém recebe uma mensagem virtual e não a compreende, o normal é perguntar para quem a escreveu. Quando cartas são redigidas e o destinatário tem dúvidas quanto ao significado pretendido pelo remetente, é bastante esclarecedor simplesmente consultar o próprio subscritor da epístola. Na incerteza quanto à correta interpretação de uma cláusula contratual, o Juiz primeiramente colherá daqueles que entabularam a avença as circunstâncias, pretensões e expectativas originadoras do pacto. 

A fonte primária dos significados pode ser a mais segura. 

Ontem, a Constituição Brasileira de 1988 completou 33 anos. Ao longo das décadas de existência da Oitava Constituição nacional, a interpretação desse documento se submeteu a diferentes concepções que flutuaram ao sabor da última tendência no mundo jurídico. 

Lamentavelmente, quase nenhuma delas buscou conhecer, por exemplo, as pretensões dos seus Redatores. Uma Carta Política subscrita por pessoas que estão entre nós, mas que raramente são chamadas ao debate público para que elucidem o conteúdo impreciso da epístola. Um Contrato Social ambíguo, sem que os contratantes sejam levados em consideração. E se existe alguma dúvida de que o poder constiuinte originário tem sido negligenciado na interpretação constitucional, basta examinar os acórdãos proferidos com o desiderato de interpretar a Constituição. Outra opção é consultar o Dicionário de Hermenêutica publicado por Lenio Streck (2017). O glossário não contempla uma definição de originalismo, uma das abordagens mais influentes de Interpretação Constitucional nos Estados Unidos - o que se esperaria a título de refutação. 

A verdade é que a maior porção da comunidade jurídica brasileira ainda tem fingido que o significado atribuído pelo constituinte brasileiro não é um dado relevante na interpretação constitucional, limitando-se a invocá-lo de maneira casuística e conveniente.   

Convém, portanto, tomar em consideração o valioso ponto de vista do constituinte originário. Afinal, ninguém melhor do que o Autor para explicar o conteúdo da sua Obra. Evidentemente, em se tratando de uma obra coletiva, a Carta Outubrina só será compreendida a contento após a coleta da perspectiva de vários autores e atores, inclusive mediante uma rigorosa pesquisa documental. 

Hoje, um primeiro passo será dado. O que o constituinte originário - ou, para ser mais preciso, um deles - pensa sobre o atual papel do STF? Qual a opinião de um constituinte originário sobre "mutações constitucionais"? 

A ver. 

Entrevista com o excelentíssimo constituinte Irapuan Costa Júnior1 

6 de maio de 2021 

1) O senhor imaginava que a Constituição de 1988 teria uma longevidade de mais de 30 anos? 

Pertenci a um grupo de constituintes que era chefiado por Roberto Campos. Ao longo dos trabalhos, logo percebemos que a Constituição de 1988 seria algo mais parecido com um código do que propriamente com uma constituição. Nós sabíamos que ela teria que ser alterada rapidamente em vários pontos, como de fato foi. Se você observar, o texto relativo às emendas constitucionais é mais extenso que a própria Constituição. Nós imaginávamos que muita coisa teria que ser alterada rapidamente. 

2) O senhor sabe, Senador, que, para alterar a Constituição de 1988, é necessário aprovar uma emenda, por 3/5, em dois turnos, nas duas casas. Há Professores de Direito sustentando que a Constituição poderia mudar, também, por uma maneira informal. Ou seja, o texto continua o mesmo - não há emenda constitucional -, mas, ao longo dos anos, o significado das palavras mudaria. Posso exemplificar: aproximadamente 15 anos depois de promulgada a Constituição de 1988, o Ministro Gilmar Mendes escreveu um artigo defendendo que a competência do Senado prevista no art. 52, X (suspender a lei declarada inconstitucional pelo STF) havia mudado. O senhor acredita que uma Constituição possa mudar de significado sem emenda à Constituição? 

Eu não sou um profissional do Direito, como é o seu caso. Então, eu conheço pouco da Filosofia do Direito. O que posso responder é baseado em observações e experiências. Eu acho que esse entendimento não prevalece nos lugares onde as constituições são mais sólidas e mais respeitadas. Eu diria, por exemplo, Estados Unidos ou Reino Unido. Perdoando a minha ignorância - o sapateiro não deve ir além da sandália -, mas eu acho que isso é abrir as portas para uma instabilidade institucional. 

3) O senhor considera que o significado de palavras como vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança mudou dos anos 80 para os dias de hoje? 

Eu entendo que não (risos). Essas palavras não mudaram do século XX para os dias atuais. 

4) O senhor publicou um artigo muito interessante comparando o texto da Constituição de 1988 com o da Constituição de 1967/69, mencionando que o novo texto não se diferia, na essência, do anterior. Na sua visão, o "considerável aumento de poder" do Congresso Nacional constituiria "a mais profunda diferença entre as duas constituições". "[...] Indiscutivelmente, se fortalece o Legislativo, ampliando sua influência sobre os outros dois Poderes". Nesse artigo, me chamou atenção o fato de que o senhor não mencionou o Judiciário. Me parece - e por favor me corrija se eu estiver enganado - que o Poder Judiciário da época não tinha o protagonismo que tem hoje. O senhor não acha que, depois da Constituição de 1988, foi o STF que ganhou esse protagonismo? 

Eu concordo inteiramente (entonação de ênfase). Eu não só acho que ganhou protagonismo, como acho também que perdeu muito em funcionalidade. Nosso Poder Judiciário já era um tanto lento e passou a ser ainda mais lento. Desenvolveu um espírito de corpo muito mais aprofundado. Passou a conquistar muitas vantagens que os demais Poderes, a não ser em alguns feudos e núcleos, não possuem. Sem dúvida isso ocorreu. E digo mais: no que diz respeito aos Tribunais Superiores, o processo de escolha que consta da nossa Constituição acabou se tornando muito falho. Já escrevi um artigo, como observador externo, alheio ao campo do Direito, onde manifesto um ponto de vista sobre como seria um modelo mais aperfeiçoado de escolha para esses Tribunais. 

5) Como era a imagem do STF para os constituintes da época? 

A imagem era de uma Corte composta de juízes (ênfase), principalmente pessoas oriundas da judicatura, com larga experiência, que ali chegassem como o topo da carreira judicante. Então, o Supremo era vista como casa dos juízes mais sábios no final de uma extensa e experiente carreira. Essa era visão que nós tínhamos. Hoje é bastante diferente. Eu diria até que, não por culpa dos Ministros atuais, mas em razão do processo de indicação e do processo de escolha. Houve um relaxamento muito grande, principalmente por parte do Senado Federal, por ocasião dos exames curriculares e da sabatina. Acho que o Senado só recusou uma pessoa indicada no século XIX. No século XX, não conheço casos de recusas. 

6) O senhor foi Titular da Comissão de Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, presidida pelo constituinte Jarbas Passarinho e relatada pelo constituinte Prisco Viana. Como o senhor sabe, a Constituição de 1988 estabelece que "São condições de elegibilidade, na forma da lei: [...] a filiação partidária" (art. 14, § 3º, V, CF). Porém, apesar do texto aprovado na Assembleia Nacional Constituinte, o STF vai julgar a possibilidade de candidaturas avulsas para eleições majoritárias. Na sua opinião como constituinte, não seria necessária uma emenda? 

Entendo que sim. Entendo que isso não poderia ser acolhido pelos tribunais eleitorais sem uma emenda à Constituição. Está muito claro na letra da lei. E esse foi o espírito dos constituintes quando redigiram esse artigo: exigir uma filiação partidária. Isso era entendido inclusive como uma declaração de princípios do candidato, que deveria se identificar com o perfil filosófico de um partido. Até para que extremismos fossem evitados. Com isso, extremismos eram tolerados no campo da expressão das opiniões, mas evitados quanto à ação prática. 

7) Suponhamos que um homem, antevendo a sua morte, decida redigir um testamento para partilhar os seus bens. Anos depois, com a sua morte, o Juiz procura saber exatamente qual era a sua última manifestação de vontade e se esforça para conhecer precisamente o que a pessoa falecida pretendia com aquele documento. A Constituição também é um documento que sobrevive ao tempo. Como constituinte, o senhor considera que um Ministro do STF reúne condições para interpretar a Constituição, buscando o espírito do constituinte naquele documento? 

Somente se se tratasse de uma pessoa muitíssimo esclarecida, mas eu diria que, na média dos Ministros, sobretudo dos mais recentes, eu não vi nenhum com essa clarividência e com essa capacidade. Então é algo bastante perigoso de se admitir de uma maneira geral.  

8) Então o senhor considera que há uma dificuldade de buscar esse significado original da Constituição, de uma maneira geral, inclusive pelo perfil atual dos Ministros do STF. Em uma perspectiva ideal, o senhor considera que o jurista que chega ao STF deveria empenhar-se para buscar esse significado original, ou seja, esse espírito da Constituição de 1988? 

Eu acho que ele estaria ali para isso. Sua principal função em um Tribunal que, pelo menos, deveria ser um Tribunal Constitucional, ele teria que obrigatoriamente fazer isso. Aqui, no Brasil, as coisas não estão ainda muito claras. Eu lhe dou o exemplo de Portugal. Nesse país, tem-se não só uma Suprema Corte, mas também um Tribunal Superior Administrativo, um Tribunal Constitucional, tribunais administrativos e cada um tem o seu campo de atuação muito delimitado, o que evita o que está acontecendo hoje no Brasil. Vou apresentar um exemplo que guarda muita similitude com o caso do Brasil. Recentemente, em razão da pandemia, o Governo Executivo português proibiu viagens entre os Conselhos (regiões administrativas) para evitar a propagação do coronavírus. O residente em Portugal não poderia, então, viajar de um Conselho para o outro durante 15 dias. Era necessário permanecer no seu Município, na sua Província de origem. O "Chega", que é o partido de extrema direta português, entrou com um pedido junto ao Supremo Tribunal Administrativo - exatamente como faz o PSOL hoje no STF -, solicitando que o Tribunal sustasse essa medida. Em uma resposta muito simples, o Tribunal disse: "os senhores constituem um partido político e devem entrar com essa petição no Parlamento Português, que é o teatro próprio de operações de partidos políticos. Os senhores estão requerendo no local errado". E a questão simplesmente foi extinta. Então, eu acredito que a importância de um tribunal como o STF exige dos Ministros um conhecimento muito profundo, não só da Constituição, mas também da abrangência das causas que chegam ali. Do contrário, o que pode acontecer - aliás, está acontecendo - é que o STF está julgando todas as questões que são a ele encaminhadas, sem examinar se ali é o teatro próprio daquele tipo de ação. Uma terceira Casa Legislativa.   

9) O ser humano não tem dons premonitórios, ou seja, ele não prevê o futuro. Muita coisa mudou de 1988 para os dias de hoje. Internet, redes sociais, whatsapp... ...por um lado, as dificuldades de o constituinte, nos anos 80, prever a tecnologia que temos hoje. Por outro lado, o próprio constituinte se valeu de fórmulas atemporais como intimidade, privacidade etc. Alguns até profetizavam que o mundo do futuro seria tomado por câmeras de vigilância. O senhor tem algo a dizer sobre esse desafio? Havia uma preocupação desse tipo? 

A imprevisibilidade de tudo isso era tão grande à época, que essa questão foi abordada muito superficialmente. Mas, sem dúvida, é importantíssima. Na China, a distopia de George Orwell já se tornou uma realidade. Não era a preocupação do constituinte da época. Os microcomputadores ainda estavam surgindo. Poucas eram as residências que tinham microcomputadores. 

10) Hoje nós temos tido problemas de conflitos entre tratados internacionais. Por exemplo, senador, nossa Constituição proíbe a prisão perpétua. O Tratado de Roma admite. Nossa Constituição não permite a extradição do brasileiro nato, mas o Tratado de Roma previu a entrega para o Tribunal Penal Internacional. O senhor tem uma opinião sobre esses eventuais conflitos? 

Tenho. É fundamental para a nossa soberania que, em um caso como da prisão perpétua, haja uma limitação para adequar à pena nacional. Se extraditarmos um preso para que cumpra a pena no país estrangeiro, sem essa adequação, estaremos abrindo mão da nossa soberania. Deve haver uma comutação da pena, para que aplique a nossa pena máxima. Entre os tratados e a Constituição, a primazia é da Constituição. Há países que não precisam se preocupar tanto com a sua soberania. O Brasil tem características continentais, riquezas muito grandes, uma certa divergência de colonização que às vezes até pode ser um incentivo ao separatismo e tudo isso deve ser levado em conta para que a nossa soberania seja uma das nossas principais preocupações. 

11) O STF tem atuado como Guardião da Constituição que o senhor e os demais constituintes promulgaram? Como constituinte, o senhor considera que o STF tem observado os limites que a Constituição estabeleceu para a sua atuação? 

Não. Vou responder com o caso do impeachment. Como constituinte, como quem participou da feitura da Constituição, eu fiquei muito assustado com aquele fatiamento que foi executado pelo ministro Lewandowski, quando simplesmente deram como cassado o mandato, mas não aplicaram inteiramente o dispositivo constitucional que mandava suspender por 8 anos a elegibilidade da Presidente.

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1 Irapuan Costa Júnior foi senador da República e governador do Estado de Goiás. Atuação na Assembleia Nacional Constituinte: Suplente da Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes; Titular da Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica; Titular da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições e Titular da Comissão da Ordem Econômica.