Stephen Breyer e a essência da autoridade judicial na era da polarização
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
Atualizado em 4 de novembro de 2025 10:53
Tenho enorme apreço pelo privilégio de ter servido no sistema judicial federal - quase 14 anos como juiz de um Tribunal de Apelações e quase 28 anos na Suprema Corte. Encontrei um trabalho desafiador e gratificante, e sempre tive relações cordiais com meus colegas. Ao longo de minha jornada, jamais esqueci a honra de participar, como juiz, na missão de defender a Constituição e o Estado de Direito.1
Stephen Breyer, ministro aposentado da Suprema Corte dos Estados Unidos, presenteou o público, há quatro anos, com seu "The Authority of the Court and the Peril of Politics", uma obra de reflexão profunda e urgente que transcende a mera análise jurídica para se tornar um guia essencial para a preservação da democracia e do Estado de Direito na era da polarização. Fruto de sua aclamada Scalia Lecture de 2021, o livro não se limita a revisitar precedentes e teorias; é, antes de tudo, um testemunho da vasta experiência de Breyer, um jurista que, ao longo de décadas, influenciou de forma indelével o panorama legal norte-americano e, por extensão, o debate sobre o papel do Poder Judiciário em sociedades democráticas.
A relevância da obra "The Authority of the Court and the Peril of Politics" reside, em grande parte, na credibilidade e experiência de seu autor. A carreira de Breyer é um exemplo notável de como a teoria e a prática podem se complementar para aprimorar o sistema de justiça de modo geral. Sua formação em Filosofia em Stanford, complementada pelo rigor acadêmico da Harvard Law School (onde também lecionaria e ainda hoje leciona), forjou um pensamento sofisticado, permeado por uma profunda compreensão dos valores democráticos e da complexidade das relações sociais.
Sua atuação como consultor jurídico do Comitê Judiciário do Senado dos EUA, durante um período crucial da história norte-americana, permitiu-lhe testemunhar de perto os desafios e as nuances do processo legislativo, moldando sua visão sobre a importância do diálogo e do compromisso na construção do consenso. A nomeação para o Tribunal de Apelações do Primeiro Circuito marcou o início de sua jornada no Poder Judiciário, onde aprimorou suas habilidades de análise e interpretação das leis e, sobretudo, dos precedentes, sempre com um olhar atento para as consequências práticas de suas decisões.
A indicação à Suprema Corte, em 1994, pelo então presidente Bill Clinton, representou o ápice de sua carreira, consagrando-o como um dos juristas mais influentes do mundo. Ao longo de quase três décadas de serviço na Corte, Breyer consolidou sua reputação como um juiz pragmático, ponderado, defensor da interpretação da Constituição à luz dos desafios contemporâneos e um firme opositor de leituras excessivamente literais ou ideologicamente enviesadas. Suas decisões, frequentemente marcadas por um senso agudo de justiça e um compromisso com a proteção dos direitos fundamentais, moldaram o cenário legal norte-americano em diversas áreas do saber jurídico.
A experiência multifacetada de Breyer confere a sua escrita uma profundidade e uma praticidade raras, permitindo-lhe abordar temas complexos de forma clara e acessível ao público em geral. "The Authority of the Court and the Peril of Politics" reflete essa bagagem única, oferecendo uma visão abrangente e equilibrada sobre o papel do Judiciário na sociedade, desmistificando o jargão jurídico e conectando as teorias constitucionais com os desafios concretos enfrentados pelos cidadãos.
No coração da obra, Breyer enfrenta a questão central da autoridade judicial, desmistificando a noção de que ela se restringe ao poder formal conferido pela Constituição. Para ele, a autoridade genuína do Poder Judiciário está na complexa interação entre o poder institucional e a confiança que a sociedade deposita em suas decisões. Essa confiança, segundo Breyer, é um bem frágil, constantemente ameaçado por forças que buscam politizar o Poder Judiciário e minar sua legitimidade - esse fenômeno, como se sabe, não se vislumbra apenas no contexto dos EUA.
Para sustentar sua tese, Breyer revisita momentos cruciais da história do direito norte-americano, a exemplo do emblemático caso Marbury v. Madison, que estabeleceu o controle difuso de constitucionalidade, conferindo aos juízes o poder de invalidar leis incompatíveis com a Constituição. A análise desse caso feita pelo autor evidencia a mais não poder a habilidade de John Marshall em equilibrar o poder formal da Corte com a percepção pública de sua legitimidade, afigurando-se fundamental para a consolidação da autoridade judicial.
O autor também rememora a crise da Suprema Corte durante o governo de Franklin Roosevelt, na década de 1930. Diante da resistência da Corte em aprovar suas políticas do New Deal, o então presidente propôs uma controversa reforma que permitiria a nomeação de novos juízes, buscando "empacotar" a Corte (court-packing) para garantir a aprovação de suas políticas. Breyer demonstra como essa tentativa de politização do Poder Judiciário gerou uma profunda crise institucional, alertando para os perigos de se submeter a Corte aos interesses políticos, em especial os de curto prazo.
Contudo, Breyer não se limita a examinar o passado. Ele lança um olhar atento para os desafios contemporâneos à autoridade da Corte, identificando uma série de ameaças que, se não forem enfrentadas, podem comprometer a capacidade do Judiciário de exercer seu papel de forma imparcial e eficaz. Entre essas ameaças, destacam-se as seguintes: (i) a politização da indicação e confirmação de juízes, com senadores votando cada vez mais alinhados com suas preferências partidárias, em vez de com base nas qualificações dos candidatos, contribui para a percepção de que a Suprema Corte é apenas mais um campo de batalha político; (ii) a proliferação de veículos de comunicação com linhas editoriais cada vez mais radicais e a disseminação de fake news corroem a capacidade dos cidadãos de formar opiniões informadas sobre o trabalho da Corte e de avaliar suas decisões com base em critérios racionais; e (iii) a crescente desconfiança da população nas instituições governamentais, incluindo o Poder Judiciário, alimenta um ceticismo generalizado em relação à legitimidade das decisões da Corte, tornando mais difícil para ela exercer sua autoridade de forma eficaz.
Diante desse cenário complexo, por assim dizer, Breyer propõe um conjunto de medidas para fortalecer a confiança pública no Judiciário e proteger a sua independência, pavimentando um caminho para a ressignificação da autoridade judicial na era da polarização. Essas medidas, que parecem se complementarem e se reforçarem mutuamente, podem ser sintetizadas em quatro pilares fundamentais: (i) o autor defende a necessidade de se revigorar a educação cívica nas escolas, argumentando que os cidadãos precisam compreender o funcionamento do governo, o papel do Judiciário na proteção dos seus direitos e os princípios fundamentais da Constituição; (ii) ele destaca a importância da participação ativa dos cidadãos na vida pública - através do voto, do engajamento em causas sociais, do monitoramento das ações do governo, do serviço em órgãos colegiados, entre outros meios semelhantes; (iii) o autor defende que os juízes têm um papel crucial a desempenhar na construção da confiança pública no Judiciário, cabendo-lhes cultivar a deliberação, a clareza e o compromisso em suas decisões, escrevendo de forma acessível, considerando as diferentes perspectivas em um caso, buscando soluções que conciliem os valores constitucionais em conflito e resistindo à tentação de se deixar influenciar por pressões políticas ou ideológicas; e (iv) Breyer também destaca a importância da transparência e da responsabilidade no trabalho da Corte.
Com efeito, "The Authority of the Court and the Peril of Politics" transcende a análise do sistema jurídico norte-americano para se tornar um guia valioso para qualquer sociedade democrática que busca fortalecer seu Judiciário e preservar o Estado Democrático de Direito. Ao compartilhar suas reflexões sobre o futuro da Suprema Corte dos EUA, Breyer oferece uma contribuição inestimável para a construção de um mundo que se projeta mais justo, democrático e fundado no respeito aos direitos humanos.
O livro - também disponível em português, no Brasil2 - é uma leitura obrigatória para todos aqueles que, como os autores desta breve e elogiosa resenha, se preocupam com o futuro da democracia. A sabedoria e a experiência de Breyer, combinadas com sua prosa clara e envolvente, tornam esta obra um marco no debate sobre o papel do Judiciário na sociedade contemporânea, um farol de esperança em tempos de incerteza e um chamado à ação para todos aqueles que acreditam na importância de um judiciário forte, independente e comprometido com a justiça. É, em última análise, um legado valioso que nos convida à reflexão e à ação, lembrando-nos que a defesa da autoridade judicial é uma tarefa contínua, que exige o engajamento de todos os cidadãos.
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1 Tradução livre de trecho da carta escrita por Stephen Breyer ao presidente dos EUA renunciado ao cargo de Ministro da Suprema Corte daquele país, em 27/1/2022. Disponível aqui.
2 "The Authority of the Court and the Peril of Politics" foi publicado originalmente em inglês, no ano 2021, pela Harvard University Press. Em 2025, essa relevante obra foi traduzida para o português por Georges Abboud, Gustavo Vaughn e Gabriel Teixeira, com publicação pela prestigiosa editora Migalhas, sob o titulo "A Autoridade da Suprema Corte e o Perigo da Política", com prefácio do Ministro Luís Roberto Barroso, então presidente do Supremo Tribunal Federal.

