A competência da Suprema Corte dos EUA para julgar conflitos entre estados
terça-feira, 23 de dezembro de 2025
Atualizado em 22 de dezembro de 2025 10:48
O Article III da Constituição norte-americana criou o Poder Judiciário federal, investido na SCOTUS - Suprema Corte dos Estados Unidos, e em cortes inferiores1. A segunda seção desta norma detalha as competências daquela corte superior, atribuindo a ela competências originárias. Dentre os cenários em que a Corte recebe, originariamente, um caso - sem trâmite prévio nas cortes federais inferiores - estão os processos ajuizados por estados da federação uns contra os outros e os casos envolvendo embaixadores, cônsules e outros representantes diplomáticos.
A submissão dos conflitos relativos à diplomacia à Suprema Corte tem justamente o objetivo de fornecer um tribunal da mais alta estatura para tais questões complexas. Ressalta-se que, na prática, a Corte raramente exerceu esta jurisdição em casos envolvendo autoridades estrangeiras. Assim, a pauta originária da Suprema Corte tem se dedicado, em grande parte, à resolução de disputas entre estados da federação. É nessa competência que vamos nos ater aqui.
À luz da soberania estadual, moldada pela diversidade entre as colônias norte-americanas que deram origem ao país Estados Unidos, analisa-se aqui os motivos que ocasionaram essa submissão de controvérsias entre estados ao Poder Judiciário federal, notadamente à Suprema Corte.
Pois bem, como ocorrido em muitas das provisões da Constituição norte-americana, a regra acima disposta (Judiciary Article) não foi concebida como parte de um plano ou teoria do governo previamente estruturada, na verdade, adveio do resultado direto das experiências práticas vividas nas colônias americanas nos anos anteriores à sua independência da Inglaterra.
É fato que as colônias norte-americanas se caracterizavam por uma grande diversidade social e econômica, apresentando, inclusive, diferenças linguísticas significativas. Isso, por conta da heterogeneidade demográfica que ocorria com a imigração em massa de indivíduos europeus, em especial os britânicos, em conjunto com os povos nativos que por lá residiam.
Além de conflitos por interesses e afinidades divergentes, as 13 colônias tinham governos próprios2, controlados pela coroa inglesa, e frequentemente disputavam terras entre si, pois suas concessões territoriais se sobrepunham e havia pouco conhecimento da geografia local, o que intensificava, em especial, conflitos de fronteira.
Neste contexto, dada a intensidade dos conflitos territoriais, no início das discussões sobre uma possível declaração de independência, explicitava-se o temor das colônias em serem "engolidas umas pelas outras"3, notadamente as mais fracas pelas mais fortes. Até então, os conflitos territoriais decorrentes das concessões feitas pela monarquia inglesa eram solucionados por meio de um conselho nomeado pelo rei, o King's Privy Council.
Ainda antes da declaração de independência das colônias, Benjamin Franklin, em 1775, já apresentava uma substituição para o antigo Privy Council, sugerindo um Congresso representativo, que deveria ter o poder de solucionar as disputas territoriais.
A ideia evoluiu com os Articles of the Confederation de 17814. Apenas oito dias após a declaração de independência, surgiu um plano para a substituição do antigo conselho real. No Continental Congress, em 1776, John Dickinson apresentou uma proposta que resultou em uma regra nos Articles of Confederation que tornava o Congresso a última instância para disputas de qualquer natureza entre estados. O resultado prático da provisão se deu em um método que se assemelhava mais à arbitragem do que a uma corte, já que não tinha corpo permanente.
Apesar dos esforços na proposta, o modelo quase arbitral previsto pelos Articles se mostrou frágil. Um número que elucida a falha do modelo criado é que apenas três cortes "arbitrais" se formaram a partir dos Articles of Confederation5, sendo que a última foi reunida para solucionar uma controvérsia territorial entre Connecticut e Pensilvânia. Nesse caso, o primeiro estado reivindicava Northumberland e Northampton, condados à época localizados na Pensilvânia. A semi-disputa entre os estados já perdurava anos, e a corte reunida finalmente favoreceu a Pensilvânia, contudo, dada a falta de poder executório do Congresso6, que instituiu a corte "arbitral", não havia força que implementasse o julgamento.
O episódio, então, revelou aos membros da Convenção Constitucional7, em 1787, que se fazia necessário um tribunal permanente com o poder de cumprir suas decisões. Assim, optou-se pela entrega da competência de solucionar as disputas à nova Suprema Corte, recém-criada pela Constituição.
É possível observar a importância deste ato de submissão dos conflitos à Suprema Corte, ao se analisar as declarações de independência dos estados à época. O estado de Connecticut se denominou, em sua Constituição, como uma república, estabelecendo que deveria permanecer um estado soberano, livre e independente. Na mesma trilha, havia declarações de independência dos estados de Massachusetts, Pennsylvania e Virginia8. Assim, ao submeter voluntariamente suas controvérsias a um tribunal federal de direito, sem impor critérios prévios de decisão, os estados deveriam aceitar que essas disputas deixassem o campo político e fossem resolvidas judicialmente. Eles admitiam, assim, a existência de um Poder Judiciário supremo em âmbito federal.
Concluiu-se que a nova jurisdição se justificava uma vez que só poderiam ser solucionados os conflitos por: (i) força; (ii) tratado ou acordo; ou (iii) decisão judicial. Sendo os estados obstados de fazer acordos ou declarar guerra sem consentimento do Congresso, restou apenas a via judicial. E ainda assim, mesmo após a adoção da Constituição, levou-se mais de cinquenta anos para que os estados de fato aceitassem as decisões da Suprema Corte no que tange às disputas territoriais.
Nos primeiros sessenta anos da nova competência, os poucos litígios levados perante a Suprema Corte foram de caráter territorial. Vale, destarte, mencionar a relevância destes casos, visto que os estados nutriam suspeitas quanto à efetividade da corte9.
O caso Rhode Island v. Massachusetts - litígio que já perdurava quatorze anos referente a uma disputa territorial que afetaria mais de cinco mil habitantes -, de 1838, foi de grande destaque para o direito constitucional norte-americano10. O estado de Massachusetts pediu a rejeição do caso sob a premissa de ausência de jurisdição da Suprema Corte, pois o caso trataria de uma questão política. No entanto, a Suprema Corte afirmou sua jurisdição originária para lidar com a controvérsia11. Não suficiente para esboçar a gravidade destes casos, de 1838 até 1939, há registro de quatro disputas semelhantes, nas quais a competência da Corte apenas teria sido invocada após o envolvimento de forças armadas e do derramamento de sangue12.
No início dos anos 1900s, a competência da Suprema Corte para julgar conflitos entre estados começou a se consolidar política e socialmente. Foi uma época em que houve grande diversificação nos casos trazidos perante o tribunal. Isso, especialmente, devido às interligadas questões econômicas entre os estados mediante um novo cenário global - marcado por consequências da industrialização, migração e imigração nos Estados Unidos, período este que se denomina "A Era Progressiva"13 -, resultando em mais casos com discussões acerca de questões ambientais, embargos comerciais impostos pelos próprios estados14 e, majoritariamente e exponencialmente, acerca de recursos hídricos.
Tratemos, portanto, de alguns dos casos mais relevantes do último século envolvendo disputas interestaduais, notadamente em conflitos sobre águas, que passaram a compor grande parte do portfólio de processos de competência originária da Suprema Corte.
O primeiro caso de destaque foi Kansas v. Colorado (206 U.S. 46, 1907), considerado um marco histórico tanto para o direito constitucional quanto para o direito ambiental norte-americano.
Consta que o estado do Kansas ajuizou ação visando impedir o estado do Colorado e certas corporações de desviarem as águas do Rio Arkansas para a irrigação de terras no Colorado, impedindo o fluxo natural do rio para o Kansas15.
Em 13 de maio de 190716, a conclusão da Corte foi a improcedência do pedido, pois não houve prejuízo suficiente ao Arkansas para justificar a intervenção. Isso, sem prejuízo de o Kansas ingressar com uma nova ação/procedimento caso o dano se tornasse excessivo no futuro.
Assim, por mais que não tenha solucionado a controvérsia, afirmou-se (pela primeira vez) a consolidação da ideia de que a água de rios interestaduais deve ser repartida entre os estados de acordo com o princípio da divisão equitativa (equitable apportionment), e não por soberania absoluta de um estado ou por direito integral do outro. Ao mesmo tempo, a Corte afirmou de modo claro que tem competência originária para julgar conflitos entre Estados sobre uso de águas interestaduais.
Já em New York v. New Jersey (256 U.S. 296, 1921), o estado de Nova York moveu uma ação contra Nova Jersey e contra a agência estatal "Passaic Valley Sewerage Commissioners"17 para impedir a execução de um projeto que pretendia despejar dejetos em parte das águas de Upper Bay de Nova York18. A Suprema Corte reconheceu os riscos de poluição do plano, contudo, absteve-se de intervir em face da apresentação de um acordo firmado entre o Procurador-Geral do Estado de Nova York e a agência ré. Isso, sem prejuízo de nova ação por parte do estado autor caso fatos novos viessem a surgir.19
No século atual, as disputas entre estados sobre recursos hídricos permanecem as mais relevantes. A título exemplificativo, a disputa no caso Texas v. New Mexico continua acirrada desde 201320.
A controvérsia reside na titularidade da água a qual os estados do Texas e do Novo México alegam ter direito sob o Pacto do Rio Grande, assinado em 1938 para alocar as águas do Rio Grande entre os estados. Após anos de litígio, os entes federativos chegaram a um acordo extrajudicial em 2022 para dividir a água liberada do reservatório, contudo, em 2024, reiterando sua competência, a Suprema Corte rejeitou o acordo extrajudicial firmado entre as partes, asseverando que os estados não podem firmar acordos bilaterais sobre recursos hídricos federais. Em um desdobramento do caso, foi anunciado um novo acordo em maio de 2025, desta vez com participação do Poder Federal, contudo, pende de aprovação da Suprema Corte.1
No Brasil, em contraste com o modelo de federação norte-americana, a ideia de uma soberania dos estados não se desenvolveu historicamente a partir da formação do país - os Estados Unidos nasceram federalistas enquanto o Brasil nasceu unitário21. Ao passo que nos EUA, os Articles of Confederation precederam tanto a independência quanto a Constituição de 1787 - essa só entrou em vigor após ser ratificada expressamente pela maioria das antigas colônias, em um processo de negociação e adesão -, a formação da Federação brasileira foi declarada e imposta, sem consulta, negociação ou mesmo adesão formal por parte das províncias. A federação no Brasil foi um ato de vontade do centro político, e não das unidades federadas, como ocorreu nos Estados Unidos.
Tal ausência de soberania dos estados desde a origem se manifesta também na trajetória constitucional brasileira, que jamais afirmou autonomia plena desses entes federativos. No Brasil, a Constituição de 1988, resultado do processo de redemocratização, consagra a soberania como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Contudo, trata-se de uma soberania popular, e não da soberania dos estados federados. O pacto federativo é, assim, preservado como um princípio de organização do Estado, mas não confere aos entes o grau de autonomia e soberania comparável ao modelo norte-americano.
Nesse contexto, não surpreende entender que a competência originária para solucionar conflitos entre estados é centralizada e exclusiva do Supremo Tribunal Federal, conforme se extrai do texto constitucional, que dispõe em seu art. 102, I, "f":
"Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta"
Contudo, conforme já destacado pelo STF22, a competência originária do STF é presente apenas nas situações que se enquadram como Conflitos Federativos Qualificados, com risco ao pacto federativo - excluindo desta hipótese as demandas envolvendo entes públicos, que devem seguir a regra geral de competência prevista na CF e no CPC23.
A respeito das situações que de fato invocam a competência do STF, ao declinar a competência do Tribunal, disse o ministro Nunes Marques no Julgamento da ação cível originária 1.413/BA:
"A configuração da competência originária decorrente daquele preceito pressupõe não apenas a presença de entes federativos ou respectivas entidades da Administração indireta em polos opostos na relação processual, como também a existência de conflito que se mostre grave a ponto de oferecer risco à estabilidade do pacto federativo".
Assim, no Brasil, não é todo conflito entre entes da federação que tem competência atribuída ao STF, muito embora da leitura da Constituição, à primeira vista, seja essa a compreensão. Nos Estados Unidos, o exercício da jurisdição originária nestes conflitos entre estados se assemelha ao Brasil, na medida em que guiado pela interpretação do Tribunal.
Explica-se.
No que tange às jurisdições originária e de apelação da Suprema Corte dos EUA, ambas têm como característica a discricionariedade exercida pela Corte. Contudo, a consolidação histórica dessa característica difere significantemente.
Em relação à jurisdição de apelação, originalmente, à luz do Article III da Constituição dos Estados Unidos, a Corte não dispunha de margem discricionária quanto à seleção dos casos submetidos à sua apreciação, estando compelida a julgar as apelações oriundas das cortes inferiores, tanto estaduais quanto federais. Em virtude dessa extensa jurisdição obrigatória, a Corte era dominada por controvérsias triviais24 - em dinâmica análoga ao que se verificava no nosso STF antes da implementação da repercussão geral.
Somente em 1891, com o Evarts Act a Suprema Corte passou a timidamente escolher quais casos poderia declinar de julgar o mérito via writ of certiorari25. Posteriormente, o Judiciary Act de 1925 ampliou radicalmente a discricionariedade da Corte para recusar o exercício de sua jurisdição recursal em relação à maior parte dos pedidos de certiorari que lhe eram submetidos26. Cumpre salientar que esse remédio processual evoluiu de um verdadeiro direito das partes, destinado ao exercício da competência revisional da Suprema Corte em hipóteses específicas, para um ônus institucional que passou a comprometer sua capacidade decisória, diante do volume excessivo de casos pendentes de apreciação. A solução narrada foi a outorga desse poder discricionário aos Justices, na concessão do writ of certiorari.27
Já na jurisdição originária, a construção dessa discricionariedade se deu de forma mais restritiva e interpretativa, por um processo histórico em que a Corte ao passo que afirmava a força do texto do Article III, gradualmente buscava o encontro de um alcance prático da competência, sem alterações legislativas diretas.
Desde o Judiciary Act de 1789, que implementou a exclusividade para controvérsias entre estados (28 U.S.C. § 1251), a Corte desenvolveu critérios doutrinários, permitindo declinar do exame de casos por ausência de controvérsia real ou seriedade insuficiente. Ressalta-se que conforme estabelecido em Marbury v. Madison (1803), o Congresso não poderia ampliar ou restringir o rol constitucional de casos originários, preservando a autonomia interpretativa da Corte, que avalia a dignidade do pleito e o risco substancial ao pacto federativo para decidir se exerce jurisdição plena - de forma similar como ocorre no Brasil28.
Cumpre destacar que a jurisdição originária da Suprema Corte é muito peculiar visto que não é estruturada como um juízo de primeira instância (trial court) e normalmente se confina a questões puramente legais. Para a maioria destes casos listados no rol de competência originária, por meio de legislação infraconstitucional do Congresso, podem também ser conhecidos pelos tribunais federais de primeira instância. Ou seja, mesmo a quase totalidade dos casos que, em tese, se enquadram na jurisdição originária da Suprema Corte acaba sendo (ou podendo ser) inicialmente apreciada por cortes inferiores.
Dessa forma, conforme esclarece David Hatton29, praticamente os únicos casos examinados efetivamente no âmbito de sua jurisdição originária são aqueles em que um Estado demanda contra outro Estado. E mesmo nestes, a Corte raramente se debruça sobre as questões probatórias que surgem em um processo judicial ordinário, pois é possível que delegue atos de instrução a tribunais inferiores. Justamente por não ser adequada para conduzir procedimentos pré-processuais ou probatórios, os casos de jurisdição originária aceitos pelo tribunal são geralmente encaminhados a um Special Master, um integrante de destaque da elite jurídica, para examinar as provas, conduzir a instrução processual e elaborar um relatório com recomendações acerca da solução a ser adotada pela Corte. Por fim, a Suprema Corte revisa tais recomendações e decide se as acolhe. Tal exercício da jurisdição é nítido por exemplo no caso supracitado Texas v. New Mexico.
Ainda a respeito da jurisdição originária da Suprema Corte dos EUA, cabe destacar que o entendimento da corte reserva que seja tal competência usada com moderação. Deve, assim, ser apenas invocada em casos condizentes com a seriedade e dignidade do pleito30.
Conforme exposto, nos Estados Unidos, embora a Suprema Corte detenha competência originária para julgar disputas entre estados, isso não implica que ela obrigatoriamente julgue todos os casos em que tal competência existe. Isso porque, a Corte possui margem para decidir quais casos aceitar, na mesma linha do que decidiu o Supremo Tribunal Federal no Brasil.
Explicita-se, todavia, aqui uma diferença significativa entre os sistemas nessas disputas. Nos Estados Unidos, os conflitos entre estados permanecem como uma competência exclusiva da Suprema Corte, mesmo que esta negue a apreciação de um caso. Em contraste, no ordenamento brasileiro, quando o STF declina de sua competência originária em conflitos entre entes federados, o feito é remetido à instância inferior competente, segundo o procedimento previsto no CPC.
Tal conclusão é curiosa por revelar uma ironia particularmente notável: mesmo nos Estados Unidos, país fundado sobre a ideia de soberania dos estados, optou-se pela submissão de disputas interestaduais a uma Suprema Corte federal de forma exclusiva, mesmo quando a Corte declina de sua competência. Enquanto no Brasil, historicamente marcado pela centralização e ausência de soberania estadual plena, tal competência do STF, quando declinada, acaba por remeter o processo para as instâncias inferiores. De forma semelhante, ambas as Cortes têm posturas restritivas quanto à seleção do exercício de suas competências originárias, preservando-se para o julgamento de questões com relevância constitucional e federativa qualificada.
Portanto, à vista do percurso histórico e comparativo desenvolvido, percebe-se que a atribuição da competência originária para julgar conflitos entre estados à Suprema Corte dos Estados Unidos não decorre de uma opção meramente técnica, mas de uma necessidade política e institucional ligada à própria gênese do federalismo norte-americano. A Corte se consolidou como instância capaz de retirar disputas sensíveis do campo da força ou da barganha política, oferecendo um foro jurídico dotado de autoridade, estabilidade e capacidade de execução, especialmente em controvérsias que colocam em risco a coesão federativa.
No contraste com o modelo brasileiro, evidencia-se que, embora ambos os sistemas concentrem na Suprema Corte a competência para conflitos federativos qualificados, os fundamentos históricos e as consequências práticas dessa escolha são substancialmente distintos. Enquanto nos Estados Unidos a exclusividade da Suprema Corte preserva o caráter excepcional e federativo dessas disputas, mesmo diante da recusa de apreciação, no Brasil a declinação de competência revela uma lógica mais flexível e processual, compatível com uma federação de origem centralizada. Essa comparação reforça que a jurisdição originária, em ambos os ordenamentos, não se define apenas pelo texto constitucional, mas pela forma como cada Corte, à luz de sua história e de seu papel institucional, constrói os limites e o significado prático de sua própria autoridade.
_______
1 U.S COURTS. Court Role and Structure. Disponível aqui.
2 The Colonies Under British Rule. U.S. Citizenship and Immigration Services. Disponível aqui.
3 Charles Warren, The Supreme Court and Disputes Between States. World Affairs, Vol. 103, No. 4 (Dezembro, 1940) p. 198
4 Os denominados Articles of the Confederation de 1781 foram a primeira constituição dos Estados Unidos da América. O documento serviu à época como uma ponte entre o governo inicial do Congresso Continental do período revolucionário e o governo federal provido por meio da Constituição norte-americana de 1787. Escritos em 1776 ao ano de 1777, foram apenas ratificados pelos estados em março de 1781 (Britannica, The Editors of Encyclopaedia Britannica, Michael Ray).
5 Charles Warren, The Supreme Court and Disputes Between States, p.9.
6 James Madison (Yates Notes, June 19, 1787) em suas notas de debate a respeito da falta de poder do Congresso para executar decisões: "Has not Congress been obliged to pass a conciliatory Act in support of a decision of this Federal court between Connecticut and Pennsylvania, instead of having the power of carrying into effect the judgement of their own court?", "Have we not seen the public land dealt out to Connecticut to bribe her acquiescence in the decree constitutionally awarded against her claim on the territory of Pennsylvania, for no other possible motive can account for the policy of Congress in that measure?".
7 A Convenção Constitucional abriu suas portas na Filadélfia, em maio de 1787, e fechou suas portas em setembro do mesmo ano concluindo um documento de 5 mil palavras que seria a Constituição norte-americana (Notes of Debates in the Federal Convention of 1787). Diante da ineficácia dos Articles of Confederation, se reuniram delegados dos doze estados para rascunhar um novo modelo de governança, estabelecendo um governo federal mais forte a partir da Constituição criada (Mark W. Harrison. Articles of Confederation. World History Encyclopedia, 10 set. 2024. Disponível aqui.).
8 Charles Warren, The Supreme Court and Disputes Between States. World Affairs, Vol. 103, No. 4 (Dezembro, 1940) p. 200.
9 William S. Barnes, Suits Between States in the Supreme Court. Symposium on Federal Jurisdiction and Procedure. p. 494.
10 January term, 1838. The State of Rhode Island Providence Plantations Complaints v. The Commonwealth of Massachusetts, Defendant.
11 Rhode Island v. Massachusetts, 37 U.S. (12 Pet.) 657, 1838.
12 Charles Warren, The Supreme Court and Disputes Between States. World Affairs, Vol. 103, No. 4 (Dezembro, 1940) p.201.
13 A Era Progressiva nos EUA foi um período entre 1890 e 1920, caracterizado por intensa mudança nos EUA. Em face das consequências da industrialização, ausência de regulação de grandes negócios e intensa migração e imigração, o movimento progressista - majoritariamente representado por uma classe média protestante - promoveu reconsiderações acerca de quais seriam as barreiras entre a esfera da vida pública e privada, e qual seria o papel do governo em regulá-las (Gilmore, "Who Were the Progressives?," 3-17).
14 Supreme Court. Louisiana v. Texas, 176 U.S. 1, 1900. Disponível aqui.
15 Kansas v. Colorado, 206 U.S. 46 (1907). Disponível aqui.
16 Sherow, James E., "The Contest for the "Nile of America": Kansas V. Colorado (1907)" (1990). Great Plains Quarterly. 504. Disponível aqui.
17 Os réus constituíam uma agência corporativa estatutária de Nova Jersey, cujos atos e intenções no caso devem ser tratados como do estado. P. 256 US 302.
18 New York v. New Jersey, 256 US 296 (1921). Disponível aqui.
19 STATE LOSES FIGHT OVER JERSEY SEWER; Supreme Court Refuses to Enjoin Emptying of Sewage Into New York Bay. Disponível aqui. p.16.
20 "Texas sued New Mexico over Rio Grande water. Now the states are fighting the federal government." The Texas Tribune, 11 abr. 2024. Disponível aqui.
21 Marco Maciel, as diferenças entre o federalismo brasileiro e o norte-americano foram objeto de análise em Plenário em 18/8/2003. Fonte/Disponível em: Agência Senado.
22 Julgamento ACO 3217 AgR - STF Tribunal Pleno - rel. min. Carmen Lúcia - 10/10/22 - DJe 18/10/22.
23 José Henrique Mouta "Competência para a apreciação dos conflitos entre entes federativos, após a EC 132;23". Disponível aqui.
24 POST, Robert. The Supreme Court's Crisis of Authority: Law, Politics and the Judiciary Act of 1925.
25 A competência da Suprema Corte dos Estados Unidos - sua jurisdição e regimento interno. Revista Forense.
26 Em uma petição que se nomeia writ of certiorari a parte pode pedir a Suprema Corte que revise seu caso.
27 SURIANI, Fernanda "A Suprema Corte Americana e o Writ of Certiorari" Disponível em "publicações da Escola da AGU". P. 203.
28 The Original Jurisdiction of the Supreme Court. Disponível aqui.
29 David Hatton & Jay D. Wexler, The First Ever (Maybe) Original Jurisdiction Standings , 2 Journal of Legal Metrics 19 (2012).
30 Citação da Suprema Corte em 1972, extraída do texto de Eugene Gressman "The Jurisdiction of the Court - The United States Supreme Court". Canada-United States Law Journal, 1980.

