COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Previdencialhas >
  4. A Reforma da Previdência no STF - Tempo de serviço versus tempo de contribuição

A Reforma da Previdência no STF - Tempo de serviço versus tempo de contribuição

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Atualizado às 08:25

As ações diretas de inconstitucionalidade no STF, com diversos pontos de questionamento relacionados ao conteúdo da EC 103/19, voltaram a motivar debates variados, pois, nessa semana, foi liberada a minuta de voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso.

Em extenso voto, houve cuidado de refutar os diversos argumentos de autores das ações e dos diversos amici curiae. No presente artigo, nos parece importante ressaltar a manifestação do Relator quanto à validade do art. 25, § 3º da EC  103/19, a qual dispõe:

"Considera-se nula a aposentadoria que tenha sido concedida ou que venha a ser concedida por regime próprio de previdência social com contagem recíproca do Regime Geral de Previdência Social mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da correspondente indenização pelo segurado obrigatório responsável, à época do exercício da atividade, pelo recolhimento de suas próprias contribuições previdenciárias."

Sua Excelência, a partir do parágrafo 208 do voto, aborda o tema. Apesar de reconhecer a peculiaridade da previsão, entende, em síntese, que 1) o art. 4º da EC 20/98 não buscou convalidar situações "injurídicas"; 2) a necessidade de compensação financeira entre regimes previdenciários como consectário na sempre necessária contribuição prévia; 3) o aspecto finalístico do art. 4º da EC nº 20/98 como mera regra de transição entre regimes e 4) o aspecto histórico da supressão de ressalvas ao cômputo de tempo de serviço que foram rejeitadas na EC 20/98.

O voto apresenta fundamentação consistente sobre a necessidade de readequação da previdência brasileira e a desigualdade econômica prevalente no país, da qual a cobertura previdenciária é reflexo, e não causa. No tema em particular do presente artigo, apresenta-se o art. 4º da EC 20/98, o qual dispõe:

"Observado o disposto no art. 40,  § 10, da Constituição Federal, o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de contribuição."

Em suma, com a ressalva ao tempo de contribuição fictício, a EC 20/98, ao inaugurar novo paradigma para fins previdenciários, superando a outrora prevalência do tempo de serviço pelo tempo de contribuição, atribuiu ao legislador ordinário a sua regulamentação, o que nunca ocorreu. Por isso, ainda hoje, há diversos eventos sem contribuição efetiva, mas que são computados normalmente. A realidade nos lembra a anedota do saudoso Celso Barroso Leite, na qual a EC 20/98 teria sido a montanha que pariu um rato.

A previsão do art. 25, § 3º da EC 103/19, na sua literalidade, implicaria nulidade de prestações variadas concedidas nas normativas não somente pretérita - mas ainda vigentes - na qual diversos interregnos sem contribuição são ainda computados. Dentro dos argumentos do Relator, podemos contrarrazoar:

1) Naturalmente, o art. 4º da EC 20/98 não buscou convalidar situações "injurídicas", mas diante da dificuldade de estabelecer o conceito de tempo de contribuição, optou a Emenda por delegar ao legislador ordinário tal função. O próprio voto aponta a acirrada divergência da época. Se nada foi feito desde então, não caberia ao STF deliberar, dentro das premissas de autocontenção judicial do próprio voto;

2) A compensação financeira entre regimes - assunto ainda de complexa evolução - não permite ignorar a previsão específica do art. 4º da EC 20/98. Tempo de atividade sem contribuição, mas computado como tal, como afastamentos acidentários, devem ser indenizados no bojo da solidariedade, preceito o qual, até o momento, só surge para restringir direitos e aumentar contribuições;

3) O art. 4º da EC 20/98, indubitavelmente, buscou regra de transição entre regimes previdenciários, a qual se perpetua por inércia do legislativo nacional. A EC 103/19, bizarramente, pretende ignorar essa realidade e criar preceito de eficácia retroativa sem qualquer limitação. Em suma, o legislador é inerte e, por isso, cria-se regra de aplicabilidade retroativa.

4) O aspecto histórico, ao invés de sustentar as conclusões do voto, apontam em sentido contrário, pois justamente em virtude da divergência relatada o regramento adequado do conceito de tempo de contribuição foi transferido ao legislador ordinário, o qual, novamente, nada fez nos últimos 24 anos.

Obviamente, situações nas quais o tempo de atividade, sem contribuição, foi considerado em regimes próprios em contrariedade à legislação da época, devem ser afastados. Não é necessária uma Emenda à Constituição para dispor sobre isso. Já quanto a cômputos de tempo de acordo com a legislação vigente, nada pode-se fazer, até pela proteção constitucional ao ato jurídico perfeito.

Do contrário, se veria o STF na obrigação de rever o decidido no RE nº 576.967, sobre o salário maternidade, no qual o Relator, Min. Luís Roberto Barroso, claramente afirmou que:

"66. Afirmo, ainda, que o tempo de afastamento da mulher no período da licença-maternidade não pode ser deduzido da contagem do seu tempo para fins de cômputo para a aposentadoria. Essa observação, mais que pertinente, serve para, de fato, efetivar o princípio da isonomia sobre o qual fundamento o presente voto. Ressalta-se que se trata de benefício previdenciário e, assim, o período de afastamento em que se recebe o benefício deve ser computado como tempo de contribuição, do mesmo modo como ocorre no auxílio-doença acidentário (art. 29, §5º, da lei 8.213/91). [40] Uma eventual dedução dos períodos de afastamento por licença-maternidade, além de atingir frontalmente o núcleo do direito fundamental aqui debatido, de modo a, mais uma vez, colocar a mulher em situação de desvantagem por questões estritamente biológicas, consistiria em verdadeira intervenção inadequada do Estado na autonomia da vontade da mulher e na unidade familiar. Serviria, ainda, como desestímulo à opção pela gestação, dado que, a cada gravidez, a profissional teria que permanecer quatro meses a mais no mercado de trabalho para alcançar a aposentadoria". (g.n.)

Ou seja, em ponderação das premissas do sistema protetivo, não se pode admitir que as necessidades atuariais de custeio impliquem soluções normativas contrárias a isonomia. Na hipótese do salário-maternidade, o qual contava com previsão expressa de incidência de contribuições (art. 28, § 2º, lei 8.212/91), entendeu o STF por afastá-la e, mesmo assim, assegurar o tempo de contribuição. Seriam as aposentadorias concedidas com os referidos períodos passíveis de nulidade?

Em resumo, das duas, uma: ou se considera o preceito do art. 25, § 3º da EC 103/19 irrelevante, pois benefícios concedidos mediante cômputo de tempo em contrariedade á legislação já seriam nulos ou, alternativamente, o preceito seria inconstitucional, por prever requisito que busca inédita eficácia presente, passada e futura impedindo contagem de atividade profissional sem contribuição, mesmo decorrente de permissivos legislativos ainda válidos. Nos resta aguardar como evoluirá o julgamento.